Gaudêncio Torquato , JORNAL Estado de SP, 20 abril 08
  Primeiro flagrante: mais de 60 milhões de brasileiros - cerca  de um terço da população - estão em salas de aulas. Esta é a soma do contingente  de 55 milhões de alunos do ensino básico com grupamentos do ensino profissional,  da graduação e da pós-graduação. À primeira vista, uma estatística de Primeiro  Mundo. Segundo flagrante: o ensino básico atravessa a maior crise de sua  história. Milhares de alunos concluem a quarta série sem saber ler nem escrever,  muito menos fazer contas. Terceiro flagrante: 33 milhões de brasileiros são  capazes de ler, mas não conseguem entender o significado das palavras. São  analfabetos funcionais. Quarto flagrante: o ministro da Educação, Fernando  Haddad, ao atestar a baixa qualidade do ensino médio, expressa conformismo: "A  escola que temos é melhor do que sair da escola." A educadora Maria Helena  Guimarães de Castro, secretária de Educação do Estado de São Paulo, vai direto  ao desfecho: "Não há alternativa à educação de qualidade." As indicações mostram  que o Brasil está condenado a rastejar na sombra de países que fazem da educação  a locomotiva do progresso, como Reino Unido, Finlândia, Eslovênia, Suécia,  Canadá, Japão e Coréia do Sul.
A crise da educação básica é um fio  esgarçado que prende o País à teia do atraso. Pior é que isso ocorre num momento  em que as condições para a decolagem nunca foram tão propícias. Discurso sobre a  melhoria da qualidade do ensino é o que não falta na boca de governantes e de  educadores. Dinheiro há. A lei obriga Estados e municípios a investirem em  educação 25% de seus orçamentos, enquanto a União deve aplicar, no mínimo, 18%.  Se a lei não é cumprida, isso é outra história. Ademais, o governo proclama que  sua rede social é a maior, de todos os tempos, em tamanho. Por acaso a educação  não integra a rede? A indagação procede: por que a pujança econômica, exibida  como triunfo do governo petista, não puxa o enferrujado trator educacional? O  que falta para se fazer a "revolução" na sala de aula? Porque esse menu, como se  diz no Nordeste, tem "muita farofa e pouca sustança". A fachada da nossa cultura  é de areia sem cimento, o que a transforma numa "cultura de fachada".
A  índole do povo, como alguns apontam, é a raiz da crise. O sentimento de  liberdade, inerente à alma brasileira, seria, assim, incompatível com o arcaísmo  do ensino do bê-á-bá. A aula-padrão quadrada, lousa, giz e saliva perdem  eficácia diante de cognições mais sensíveis à estética. O próprio ministro  Haddad - graças aos céus, caiu na real - levanta a hipótese de um país mais  ligado à imagem do que à leitura, motivo pelo qual seu Ministério organiza amplo  programa de informatização. O fato é que a escola pública, modelo de qualidade  em países como a Inglaterra, é entre nós a cara da ruindade: desaparelhada,  sujeita à violência, professores ausentes, parcos salários, gestão improvisada,  falta de assessoramento pedagógico. As autonomias se esfacelam diante da rígida  hierarquia. Ao fundo, o patronato político ainda tira lasquinhas com a nomeação  de quadros dirigentes.
Por onde começar o redesenho? Pela concepção de  uma nova escola, integrada ao tempo e ao espaço, capaz de construir pontes entre  aluno e seu meio. Uma escola de formação para a vida. Sabe-se que a falta de  conexão entre o estudante e o mundo é responsável por altas taxas de evasão.  Segundo o Pnad-2005, 97% das crianças de 7 a 14 anos estavam matriculadas, mas  apenas 41% dos jovens de 15 anos concluíram o ensino fundamental. E mais: 34%  dos alunos de 10 anos sofreram atraso escolar, chegando esse índice aos 55% na  idade de 14 anos. Como se aduz, a exclusão começa na própria escola. A escola  pública se depara com uma montanha de obstáculos. As grades curriculares não  contam com a participação da sociedade, deixando de incorporar novas fronteiras  do conhecimento. Inexiste uma base curricular comum no território,  impossibilitando a integração de conteúdos. Muitos dos 2,5 milhões de  professores de educação básica, lecionando nas 200 mil escolas públicas do País,  ainda não tomaram conhecimento de que o Muro de Berlim desmoronou. O desestímulo  espanta. Só em São Paulo, cerca de 30 mil professores faltam diariamente à rede  de ensino. E 70% dos formados em licenciatura no País não querem dar  aulas.
A descontinuidade administrativa trava experiências. Somos um país  que preza experimentações isoladas. Mas ações fragmentadas não ajudam a agregar  qualidade. A ausência de compartilhamento entre modelos gera uma anatomia  educacional como a do queijo suíço, cheia de buracos. Por último, uma questão de  fundo ideológico: o conceito da educação para a cidadania, tão enfatizado por  Norberto Bobbio. Certos governantes preferem cidadãos passivos a ativos. Eles  são depósitos de votos a favor, retribuindo migalhas recebidas. Já os cidadãos  ativos filtram a água contaminada por vasos eleitoreiros. Parece incoerente o  fato de que o Brasil estica o cordão da cidadania passiva, quando pelos dutos da  educação corre um sangue inovador saído das veias de lídimos educadores como  Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro.
Nos desvãos da escola  pública reprovada se edificam estátuas de populistas. Sob seus escombros se  desenha o status quo. Não queremos afirmar que seja essa a intenção do atual  governo. Confiemos na boa intenção do ministro Haddad. Remanesce, porém, a  impressão de que há muito esforço para o distributivismo bolsista e falta  vontade para desobstruir os gargalos da educação básica. Sobre um penhasco de  Engadine, nos Alpes, refletindo sobre as correntezas rebaixadoras, Nietzsche  gritava: "Vejo subir a preamar do niilismo." É o que estamos a ver nas águas  turvas do ensino básico. Neste fim de semana, governadores, educadores e  empresários tentarão responder no 7º Fórum Empresarial em Comandatuba, na Bahia,  a uma inquietante pergunta: "O Brasil pode esperar por uma educação pública de  qualidade?" Aventuro-me a responder: difícil, para não dizer impossível. Falta,  sobretudo, vontade para tanto. 
Gaudêncio Torquato é jornalista,  professor titular da USP e consultor político  
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