Compilação traz textos sobre teatro escritos no início  da carreira pelo autor de "Dom Casmurro" 
JOÃO CEZAR DE CASTRO  ROCHA
ESPECIAL PARA A FOLHA 
É exemplar a organização realizada por João Roberto  Faria da produção de Machado de Assis relativa ao teatro ["Machado de Assis: do  Teatro - Textos Críticos e Escritos Diversos", ed. Perspectiva, 679 págs., R$  92]. A iniciativa valoriza os anos de aprendizagem do futuro autor de "Dom  Casmurro": "Tudo indica que Machado acompanhou de perto a vida teatral do Rio de  Janeiro, a partir do segundo semestre de 1856, e que isso foi decisivo em sua  formação".
Demonstrar a relevância do palco no desenvolvimento da visão do  mundo machadiana é um dos maiores méritos da alentada e desde já indispensável  introdução, "Machado de Assis e o Teatro do Seu Tempo". Em primeiro lugar, antes  de principiar a produzir seus romances, Machado consagrou-se como crítico  -literário e teatral.
Além disso, atuou como censor do Conservatório  Dramático, recomendando ou desaprovando a encenação de obras.
E não se pense,  anacronicamente, que a ótica corrosiva do Machado mais celebrado tenha  favorecido pareceres a contrapelo dos preconceitos da época. Pelo contrário, "o  censor rigoroso negou a licença a três peças, que considerou imorais".
Basta  um único exemplo, difícil, mas revelador, do longo caminho que o Machadinho  precisou vencer antes de converter-se no autor das "Memórias Póstumas de Brás  Cubas".
Ao avaliar o drama "Mistérios Sociais", Machado não hesitou em  recomendar a "alteração da condição social do protagonista (...) de escravo para  homem livre".
Assim, além de ganhar em verossimilhança, a trama ficaria mais  adequada às complexas condições de uma sociedade escravocrata, porém com uma  retórica liberal. 
Universidade
Nesse sentido, não surpreende que  Machado compreendesse o teatro como uma espécie de universidade sem muros, capaz  de exercer uma função civilizadora segundo o corte clássico "da velha máxima de  Horácio (...), deleitando e ao mesmo tempo instruindo".
Contudo, reconhecer  esses impasses conservadores ou, no mínimo, observar a timidez calculada de seus  princípios não esgota o interesse da presente compilação.
No tocante à  crítica teatral, dois fatores ocupam o centro da cena.
"Machado foi um  crítico preocupado com todos os aspectos da montagem teatral. Seus folhetins  quase sempre seguem um padrão: ele faz um estudo da peça, do ponto de vista  literário e dramático, (...) e em seguida um comentário sobre a encenação,  destacando porém (...) as interpretações dos artistas."
E, mesmo em relação à  análise da atuação dos atores, Machado também construiu um modelo próprio:  "Passando aos artistas do Ginásio, os comentários (...) obedeceram a uma  constante".
O ponto é fundamental: a crítica machadiana supôs o  desenvolvimento de um método particular de análise, em busca do equilíbrio entre  a fatura literária e o interesse dramático, sem jamais perder de vista a  performance no aqui e agora do espetáculo.
Mesmo em sua fase menos ousada,  portanto, o autor de "O Alienista" começou a esboçar o caminho que lhe seria  próprio, aliando narração e reflexão, intriga e análise, criação e  crítica.
Como os temas tratados na introdução e, sobretudo, os próprios  textos críticos e escritos diversos ultrapassam os limites de uma resenha,  apenas menciono o que talvez seja a hipótese mais fascinante proposta pelo  organizador. 
Refiro-me à descoberta machadiana de um novo Shakespeare por  meio das memoráveis atuações do célebre Ernesto Rossi. 
Dicção  autobiográfica
O elogio de Machado possui dicção autobiográfica: as  encenações do ator italiano revelavam um autor que o público brasileiro conhecia  sobretudo por meio de "partituras musicais. Esta verdade deve dizer-se:  [William] Shakespeare está sendo uma revelação para muita gente".
Esse texto,  escrito em 1871, vale por uma confissão. 
De fato, no ano seguinte, na  publicação de seu primeiro romance, "Ressurreição", sua epígrafe é tomada de  empréstimo ao dramaturgo inglês de "Medida por Medida". 
Desde esse momento,  Shakespeare ocupou o centro do palco do museu imaginário de Machado. 
João  Roberto Faria vai ainda mais longe e sugere uma conexão surpreendente: "O Otelo  que Bentinho vê no teatro, pelos olhos de Machado, é o de Ernesto Rossi".
Em  artigo de 1896, Machado escreveu palavras definitivas: "Quando não se falar  inglês, falar-se-á Shakespeare". Nos tristes trópicos, devemos aprender a falar  Machado. 
Mas, a partir de agora, contamos com uma gramática indispensável: a  primorosa edição desses "Textos Críticos e Escritos Diversos".  
Folha SP 02/02/2009
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