|               Foi com              misto de espanto e desejo que os franceses olharam pela primeira vez              para o recém-descoberto Brasil, com sua natureza exuberante, rica do              pau-brasil - útil para a indústria têxtil francesa -, e uma vida              selvagem de fazer corar os pálidos rostos das nobres francesas. Por              um bom tempo, foi assim: fornecíamos o exotismo e eles, a              civilidade. Como toda relação que sobrevive ao tempo, ela evoluiu e              causou impacto sobre a sociedade brasileira em vários aspectos - a              começar pela língua, passando pela filosofia e as ciências humanas,              além da moda, da literatura, das artes plásticas, gastronomia,              arquitetura, do cinema, da política e da economia. "Em todas as              épocas, a França esteve presente em nossa história como sinônimo de              civilização e cultura", diz Mary Del Priore, historiadora com              pós-doutorado na França e autora de "Revisão do Paraíso: os              Brasileiros e o Estado em 500 Anos de              História".                                             Vale do Anhangabaú, em São Paulo, na década de              40: fotografia do francês Pierre Verger integra o calendário              "Fotógrafos Franceses em São Paulo", editado pela Imprensa              Oficial  |             |                                                |               Neste              ano, a aproximação francesa com o Brasil certamente será maior com a              programação que marca o Ano da França no Brasil. Entre 21 de abril e              15 de novembro, o país vai receber exposições de artes plásticas,              espetáculos musicais e de dança, mostras de cinema, eventos              literários e festivais gastronômicos, que deverão expor - e em              alguns casos revitalizar - o fascínio que a França sempre exerceu              sobre o Brasil. Os eventos culturais, no entanto, não vão ocorrer              isolados da agenda político-econômica. Em 7 de setembro, o              presidente Nicolas Sarkozy visitará o Brasil pela segunda vez em              menos de um ano, um sinal de reestreitamento. Afinal, as relações              entre as duas nações são antigas. A Câmara de Comércio França              -Brasil, por exemplo, foi criada na virada do século XX e o              Instituto de Alta Cultura Franco-Brasileiro, em 1922.                |                                               |               Ao longo              dos anos, porém, a força dessa troca político-cultural se dissipou.              Depois da Segunda Guerra, os Estados Unidos conquistaram o espaço              paradigmático que pertencia à França na economia, na política e na              cultura brasileiras, e se consolidaram como a grande referência              mundial. "Vivemos a época da cultura anglófona e a colaboração              cultural e artística entre Brasil e França é bem menor do que já foi              no passado", diz Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da              Universidade de São Paulo (USP).          |                                               |               |                          No              entanto, apesar de hoje o Brasil ser o grande emergente na principal              área de influência dos Estados Unidos, a França é que desponta como              aliada nas ambições de sua política externa. O embaixador francês em              Brasília, Antoine Pouillieute, é categórico ao afirmar que a França              apoia o Brasil em seu objetivo de ter um papel na governança mundial              do século XXI.                                            Rua 3 de Dezembro, no centro de São Paulo, em              registro do fotógrafo francês Jean Mazon, que morou no Brasil nos              1940, para onde se mudou quando tinha 25              anos  |                                               |               A              admiração do Brasil pela cultura francesa ganhou peso em 1808, com a              vinda da família real portuguesa para o Rio, ela própria fortemente              influenciada pelos hábitos e costumes de Paris. Segundo Mary Del              Priore, com a abertura dos portos, o Brasil recebeu artistas,              cozinheiros, modistas, representantes de indústrias e também              emigrados ilustres, vindos da França, o que aumentou a influência              por aqui. "A língua diplomática e literária colaborou ainda mais              para irradiar sua presença entre nós", diz Mary. A partir dessa              fase, na Biblioteca Nacional, os volumes mais consultados passaram a              ser os de Alexandre Dumas (1802-1870), Paul Verlaine (1844-1896) e              Victor Hugo (1802-1885).          |                                               |               Nessa              época, a França era o modelo para a alta burguesia brasileira, que              durante décadas se sentiu quase como uma colônia parisiense. Na              maioria das escolas, o ensino do francês passou a ser obrigatório e              as ciências humanas brasileiras ganhavam musculatura com o              pensamento da terra de Voltaire. Na corte, os cardápios eram              escritos em francês. Daquela época foram herdados os molhos              maionese, madeira e béchamel, além das técnicas - que vão da maneira              de preparar guisados ao estilo de criar molhos. A confeitaria de              bolos hoje feita no Brasil também tem suas raízes na França, com              itens que nunca saíram dos cardápios, como o coq au vin, o escargot,              o croissant e o mil-folhas (mille-feuilles).                                            O Viaduto do Chá, idealizado pelo francês              Jules Martin, é fotografado por seu campatriota Pierre Verger, na              década de 40  |                          |                                               |               Outra              herança daquele período de hegemonia francesa é a linguagem              arquitetônica, uma das que melhor captaram a essência dessa fase. Os              traços "à française" encaixam-se, principalmente, em quatro escolas:              o neoclássico, o eclético, o art nouveau e o moderno. O necolássico              surgiu justamente com a chegada da Missão Francesa, a convite de dom              João VI, pouco depois de sua mudança para o Rio. O grupo de artistas              foi comandado por Grandjean de Montigny (1776-1850), o primeiro              professor oficial de arquitetura no Brasil. Montigny foi o principal              responsável por projetos que reproduziam cânones do neoclássico              francês, o mais moderno de seu tempo, na corte tropical. Essa              inclinação francesa pode ser verificada também em edificações              posteriores, iniciadas com a renovação urbana carioca do início do              século XX.   |                                               |               Antes de              participar da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio, entre 1875              e 1876, o então jovem engenheiro Francisco Pereira Passos              (1836-1913) esteve em Paris para aperfeiçoar-se na prestigiosa École              des Ponts et Chaussées. Na mesma época, o barão Haussmann              (1809-1891), responsável pela reforma urbana de Paris entre 1853 e              1870, reformulava a capital francesa. "O plano de reformas do Rio              fracassou, mas o paisagista Auguste François Marie Glaziou              [paisagista bretão] conseguiu transformar o campo de Santana num              arremedo do famoso Bois de Boulogne, de Paris", afirma Mary Del              Priore.   |                                               |               |                          Anos              mais tarde, entre 1902 e 1904, já como prefeito, Pereira Passos              resolveu criar uma "Paris-sur-mer", respondendo às aspirações de uma              elite que desejava dar nova feição ao país. Abriram-se novas              avenidas - a imponente avenida Central e o início da Atlântica - e              rasgaram-se túneis - como o do Leme -, arrasaram-se cortiços na              Cidade Velha e edificaram-se prédios monumentais, no apreciado              estilo eclético tão em voga nas capitais europeias. "A ideia era              tornar o Rio uma metrópole glamourizada pela decoração, portanto,              uma Paris à beira-mar", afirma Mary.                                            Vista do prédio da Light e do Viaduto do Chá,              em São Paulo, em registro de Pierre Verger: exposição com seus              trabalhos integra a programação do Ano da França no              Brasil  |                                               |               Enquanto              isso, em São Paulo, a elite que enriquecia por causa do café também              procurava reproduzir os hábitos franceses. Muitos filhos de              fazendeiros ou da burguesia da capital estudavam na França e falavam              o idioma. A arquitetura que dominava a paisagem paulistana também              tinha sotaque: a Estação Júlio Prestes, a Catedral da Sé e o Palácio              Campos Elíseos são exemplos contundentes dessa era. O francês Jules              Martin (1845-1935), que idealizou o Viaduto do Chá, e o brasileiro              Ramos de Azevedo (1851-1928), que projetou o Teatro Municipal, a              Pinacoteca do Estado e o Mercado Municipal, são dois nomes              importantes da escola eclética paulistana. Ramos de Azevedo estudou              na Bélgica e teve mestres franceses.            |                                               |               O              curioso na apropriação da estética francesa pelo Brasil é que, na              década de 40, a força cultural da Europa era tão grande que o país              absorveu movimentos franceses que o próprio continente rejeitava. É              o caso da arquitetura moderna desenvolvida por Le Corbusier              (1887-1965), que orientou vários arquitetos brasileiros, como Lúcio              Costa (1902-1998), Carlos Leão (1906-1983) e Oscar Niemeyer. O              estilo moderno surgiu logo depois do art déco no país. "Em 1944, o              Brasil era uma referência nesse estilo de arquitetura", diz a              professora Maria Lucia Bueno, doutora em sociologia e fundadora do              mestrado acadêmico em moda, cultura e arte do Centro Universitário              Senac.   |                                               |               Mas um              dos pontos mais importantes do movimento modernista no Brasil havia              começado anos antes, com a Semana de Arte Moderna de 1922, também de              inspiração francesa. A sugestão de realizá-la partiu da francesa              Marinette Prado, mulher do mecenas Paulo Prado, que se espelhava na              Semana de Deauville. Idealizado por Di Cavalcanti (1897-1976), o              movimento teve participação de Tarsila do Amaral (1886-1973), Anita              Malfatti (1889-1964), Victor Brecheret (1894-1955), entre outros,              que estudaram em Paris, com bolsas patrocinadas pelo governo de São              Paulo.                                            O francês Claude Lévi-Strauss fotografa o              carnaval paulistano na avenida São João, no centro da cidade, em              1937  |             |                                               |               Tarsila              é considerada uma das artistas que melhor souberam traduzir essa              influência nos movimentos artísticos brasileiros. Construiu seu              repertório em escolas e ateliês de Paris, como a prestigiada              Academie Julian, e foi ainda uma das primeiras artistas do país a              ter quadros expostos na capital francesa. O escritor modernista              Oswald de Andrade (1890-1954), um dos articuladores da Semana de              Arte, que também viveu na França, chegou a escrever uma referência à              francesa no "Manifesto do Pau-Brasil": "Os alfandegários de Santos              examinaram minhas malas, minhas roupas. Mas se esqueceram de ver o              que eu trazia no coração. Uma saudade feliz, de Paris."                |                                               |               No              início da década de 30, um passo determinante para o fortalecimento              desse ideário francês no Brasil foi dado pela escola filosófica              francesa, que ajudou a constituir a Faculdade de Filosofia, Ciências              e Letras, a espinha dorsal da USP. Durante quase quatro décadas, o              Departamento de Filosofia da USP teve professores franceses              remunerados, pelo menos parcialmente, pelo governo da França.                |                                               |               O peso              da cultura do país era tão grande nas salas de aula que os mestres              ministravam seus cursos na língua de Flaubert. Entre os professores              estavam mitos da intelligentsia europeia, como Gilles-Gaston              Granger, Claude Lefort, Fernand Braudel (1902-1985), Lucien Febvre              (1878-1956) e Gérard Lebrun. "A filosofia ali ensinada era rigorosa,              republicana e talvez de esquerda", observa Renato Janine Ribeiro. "O              caráter republicano era tipicamente o da 3ª República Francesa, com              seus valores de educação universal, de laicidade do Estado e de              incorporação das massas na cidadania."            |                                               |               A              participação dos professores franceses na vida acadêmica da USP,              segundo Janine, pode ser dividida em dois tempos. A primeira fase              ocorreu na década de 30, quando os jovens Roger Bastide (1898-1974),              Claude Lévi-Strauss e Jean Maugüé destacaram-se como professores de              ciências humanas. "O professor convidava seus estudantes a uma              imersão na cultura: assistiam a filmes, a peças de teatro, liam              romances e os comentavam com o professor." Essa etapa, observa, foi              vital para a formação de uma geração extremamente criativa na cena              intelectual do Brasil.    |                                               |               O mais              celebrado professor dessa geração é, sem dúvida, Lévi-Strauss, que              no fim do ano completou 100 anos, em Paris, onde mora. Considerado o              antropólogo mais importante do século XX, o autor de "Tristes              Trópicos" deu aulas na USP por três anos, de 1935 a 1938. Nesse              período, organizou uma lendária expedição etnográfica a Mato Grosso,              onde estudou os índios cadiuéus e os bororos.              |                                               |               A              segunda etapa, mais científica, foi introduzida por professores com              uma convicção estrita do que é a filosofia. "Há de se destacar a              participação de Michel Debrun, que lecionaria até o fim da vida na              Unicamp, e de Gérard Lebrun, na 'Revista Brasilense' e nas              discussões políticas prévias ao golpe de Estado de 1964'", diz              Ribeiro.   |                                               |               Outros              nomes que colaboraram para a construção do pensamento nacional são              os dos filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir              (1905-1980), que em 1960 desembarcaram no Brasil. Além do casal              existencialista, Danielle Ancier - hoje Rancière - e Jean Galard,              mais tarde diretor do serviço cultural do Museu do Louvre, também              fizeram a cabeça dos intelectuais brasileiros.              |                                               |               O apogeu              dessa presença francesa na universidade daqui se deu em 1966, quando              o jovem - e já polêmico - Michel Foucault (1926-1984) ministrou um              curso, com abordagem estruturalista, sobre o assunto do livro que              publicaria no ano seguinte: "As Palavras e as Coisas".                |                                               |               A partir              da década de 70, porém, o vínculo francês começou a diminuir.              Primeiro, o governo passou a manter apenas duas cátedras na              Faculdade de Filosofia da USP, depois a reduziu para apenas uma              cadeira e a fez itinerar por Campinas antes de extingui-la              definitivamente. Ainda assim, os professores franceses teriam              cumprido um papel determinante em dois planos principais: na              formação técnica dos alunos e na formação de um ideal de intelectual              atuante na cena pública, cidadãos em contato com a sociedade. "Dessa              forma, o legado francês na filosofia brasileira continua tendo a sua              importância", afirma Janine.          |                                               |               Assim              como na filosofia, a influência francesa no campo da estética foi              determinante no Brasil e seu legado ainda é visível. Berço da              alta-costura e das maisons de maior prestígio do mundo, como              Christian Dior (1905-1957) e Coco Chanel (1883-1971), a França, é              claro, tem uma relevância extraordinária na construção do imaginário              fashion nacional - e ocidental. Mas antes desses dois ícones, Mary              Del Priore relembra o peso de Paul Poiret (1879-1944), que desfolhou              os grandes vestidos rodados e elegeu a imagem da mulher-sílfide,              longilínea e magra, em oposição às curvilíneas do fim do império. Em              pleno início do século XX, Poiret afrouxou a silhueta e propôs novas              modelagens, como as calças de odaliscas e os vestidos em forma de              quimonos.   |                                               |               A              libertária Coco Chanel seguiu revolucionando a roupa feminina,              propondo um vestuário menos rígido e mais casual, que se utilizava              de tecidos pouco nobres - caso do jérsei, usado por ela para              confeccionar vestidos, que até então só era usado para fazer              lingeries. Coco adaptou peças do guarda-roupa masculino para o              feminino, como o suéter - que nos trajes delas era usado sobre saia              reta. O visual ornava com a aparência pessoal da estilista, que era              magra, de seios pequenos e cabelos curtos, "à la garçonne".                |                                               |               "A              América é a grande responsável pela difusão da moda francesa nesse              momento", diz Maria Lucia Bueno. A moda casual, com toques              esportivos, feita por Coco Chanel, foi muito valorizada no novo              continente. Até os anos 60, a moda francesa ditou o gosto não só no              Brasil, mas no resto do mundo. "Para se ter uma ideia, na década de              20, 70% da produção da alta-costura francesa era exportada."                |                                               |               Na              época, as elites brasileiras e americanas consumiam o prêt-à-porter              de luxo, que chegava pelos grandes magazines. "As casas francesas de              moda, como a Lanvin, tinham representantes no Brasil, e o Masp tinha              uma escola de moda que mostrava os desfiles de Elsa Schiaparelli              [1890-1973] e Christian Dior."          |                                               |               Esse              fenômeno começou a configurar-se de outra forma a partir da década              de 60, quando a moda passou a buscar suas referências no              comportamento jovem. "A partir daí, não foi mais somente a elite a              ditar o que era chique e a moda passou a ser vista como elemento de              identidade de um grupo."          |                                               |               A              presença da França ainda é forte na cultura nacional quando se pensa              em moda de luxo, apesar de, atualmente, à frente das maisons              tradicionais estarem criadores ingleses - John Galliano, na Dior -,              alemães - Karl Lagerfeld, na Chanel - e americanos - Marc Jacobs, na              Louis Vuitton.   |                                               |               No              cinema, o período de maior irradiação da produção francesa foi              durante a nouvelle vague, nos anos 60. Cineastas como Jean-Luc              Godard e François Truffaut (1932-1984), que realizavam um cinema              mais autoral, foram os que mais marcaram o cinema brasileiro,              sobretudo com os filmes que fizeram no início da década, avalia o              crítico Inácio Araújo. "O diretor Davi Neves tem muito a ver com              Truffaut; Rogério Sganzerla [1946-2004] e Carlos Reichenbach têm              muito a ver com Godard, apesar de essa influência ser difusa e estar              misturada com outras, vindas do cinema italiano, do europeu de forma              geral e do americano", analisa Araújo.            |                                               |               E antes              que alguém desconfie de que o Ano da França no Brasil esconde tão-só              um novo olhar de cobiça, como foi em meados de 1500, a              curadora-geral do evento, Anne Louyot, esclarece: "A França não quer              dominar, quer compartilhar. Podemos trabalhar juntos em vários              campos, como na arquitetura e na moda sustentável." E, de quebra,              saborear juntos o que França e Brasil têm de melhor.                |    | 
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