sempre gostei muito desse texto e guardei por  anos uma xerox muito ilegível  da publicação original de 1999. Agora o  encontro digitalizado e o incluo aqui.
 Como escrever a tese certa e vencer  
 José Murilo de Carvalho 
 Ter que fazer uma tese de doutoramento na incerteza  de como será recebida e na insegurança quanto ao futuro da carreira é  experiência traumática. Quando passei por ela, gostaria de ter tido alguma  ajuda. É esta ajuda que ofereço hoje, após 30 anos de carreira, a um hipotético  doutorando, ou doutoranda, sobretudo das áreas de humanidades e ciências  sociais. Ela não vai garantir êxito, mas pode ajudar a descobrir o caminho das  pedras. 
 Dois pontos importantes na feitura da tese são as  citações e o vocabulário. Você será identificado, classificado e avaliado de  acordo com os autores que citar e a terminologia que usar. Se citar os autores e  usar os termos corretos, estará a meio caminho do clube. Caso contrário, ficará  de fora à espera de uma eventual mudança de cânone, que pode vir tarde demais.  Começo com os autores. A regra no Brasil foi e continua sendo: cite sempre e  abundantemente para mostrar erudição. Mas, atenção, não cite qualquer um. É  preciso identificar os autores do momento. Eles serão sempre estrangeiros.  Atualmente, a preferência é para franceses, alemães e ingleses, nesta ordem.  Cito alguns, lembrando que a lista é fluida. Entre os franceses, estão no alto  Chartier, Ricoeur, Lacan, Derrida, Deleuze, Lefort. Foucault e Bourdieu ainda  podem ser citados com proveito. Quem se lembrar de Althusser e Poulantzas, no  entanto, estará vinte anos atrasado, cheirará a naftalina. Se for para citar um  marxista, só o velho Gramsci, que resiste bravamente, ou o norte-americano F.  Jameson. Entre os alemães, Nietzsche voltou com força. Auerbach e Benjamin, na  teoria literária, e Norbert Elias, em sociologia e história, são citação  obrigatória. Sociólogos e cientistas políticos não devem esquecer Habermas.  Dentre os ingleses, Hobsbawm, P. Burke e Giddens darão boa impressão. Autores  norte-americanos estão em alta. Em ciência política, são indispensáveis. Robert  Dahl ainda é aposta segura, Rorty e Rawls continuam no topo. Em antropologia, C.  Geertz pega muito bem, o mesmo para R. Darnton e Hayden White em história. Não  perca tempo com latino-americanos (ou africanos, asiáticos, etc.). Você  conseguirá apenas parecer um tanto exótico. Da Península Ibérica, só Boaventura  de Souza Santos, e para a turma de direito. Brasileiros não ajudarão muito mas  também não causarão estrago, se bem escolhidos. Um autor brasileiro, no entanto,  nunca poderá faltar: seu orientador ou orientadora. Ignorá-lo é pecado capital.  Você poderá ser aprovado na defesa da tese mas não terá seu apoio para negociar  a publicação dela e muito menos a orelha assinada por ele, ou ela. Se o  orientador ou orientadora não publicou nada, não desanime. Mencione uma aula,  uma conferência, qualquer coisa. 
 O vocabulário é a outra peça chave. Uma palavra  correta e você será logo bem visto. Uma palavra errada e você será esnobado.  Como no caso dos autores, no entanto, é preciso descobrir os termos do dia. No  momento, não importa qual seja o tema de sua tese, procure encaixar em seu texto  uma ou mais das seguintes palavras: olhar (as pessoas não vêem, opinam,  comentam, analisam: elas lançam um olhar); descentrar (descentre sobretudo o  Estado e o sujeito); desconstruir (desconstrua tudo); resgate (resgate também  tudo o que for possível, história, memória, cultura, deus e o diabo, mesmo que  seja para desconstruir depois); polissêmico (nada de 'mono'); outro, diferença,  alteridade (é a diferença erudita), multiculturalismo (isto é básico: tudo é  diferença, fragmente tudo, se não conseguir juntar depois, melhor); discurso,  fala, escrita, dicção (os autores teóricos produzem discurso, historiadores  fazem escrita, poetas têm dicção); imaginário (tudo é imaginado, inclusive a  imaginação); cotidiano (você fará sucesso se escolher como objeto de estudo  algum aspecto novo do cotidiano, por exemplo, a história da depilação feminina);  etnia e gênero (essenciais para ficar bem com afro-brasileiros e mulheres);  povos (sempre no plural, "os povos da floresta", "os povos da rua", no singular  caiu de moda, lembra o populismo dos anos 60, só o Brizola usa); cidadania  (personifique-a: a cidadania fez isso ou aquilo, reivindicou, etc.). Para maior  efeito, tente combinar duas ou mais dessas palavras. Resgate a diferença. Melhor  ainda: resgate o olhar do outro. Atinja a perfeição: desconstrua, com novo  olhar, os discursos negadores do multiculturalismo. E assim por diante.  
 Como no caso dos autores, certas palavras  comprometem. Você parecerá démodé se falar em classe social, modo de produção,  infra-estrutura, camponês, burguesia, nacionalismo. Em história, se mencionar  descrição, fato, verdade, pode encomendar a alma. 
 Além dos autores e do vocabulário, é preciso ainda  aprender a escrever como um intelectual acadêmico (note que acadêmico não se  refere mais à Academia Brasileira de Letras, mas à universidade). Sobretudo, não  deixe que seu estilo se confunda com o de jornalistas ou outros leigos. Você  deve transmitir a impressão de profundidade, isto é, não pode ser entendido por  qualquer leitor. Há três regras básicas que formulo com a ajuda do editor S.T.  Williamson. Primeira: nunca use uma palavra curta se puder substituí-la por  outra maior: não é 'crítica', mas 'criticismo'. Segunda: nunca use só uma  palavra se puder usar duas ou mais: 'é provável' deve ser substituído por 'a  evidência disponível sugere não ser improvável'. Terceira: nunca diga de maneira  simples o que pode ser dito de maneira complexa. Você não passará de um mero  jornalista se disser: 'os mendigos devem ter seus direitos respeitados'. Mas se  revelará um autêntico cientista social se escrever: 'o discurso multicultural,  com ser desconstrutor da exclusão, postula o resgate da cidadania dos povos da  rua'. 
 Boa sorte. 
 (Publicado em O Globo com o título "Como escrever a  tese certa e vencer", em 16/12/1999, 7).
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