Você tem inveja? 
 Roberto DaMatta
A inveja é um sentimento básico no Brasil. Está para nascer um brasileiro sem inveja. A coisa é tão forte que falamos em 'ter' - em vez de 'sentir' - inveja. Outros seres humanos e povos sentem inveja (um sentimento entre outros), mas nós somos por ela possuídos. Tomados pela conjunção perversa e humana de ódio e desgosto, promovidos justamente pelo sucesso alheio. Nosso problema é o sujeito do lado, rico e famoso, que esbanja reformando a casa, comprando automóveis importados e dando 'aquelas festas de tremendo mau gosto!'. Ou é o sujeito brilhante que - estamos convencidos - 'tira' (rouba, apaga, represa, impede) a nossa chance de fulgurar naquela região além do céu, pois residindo no nirvana social dos poderosos (mesmo quando são cínicos e fracos); dos ricos (mesmo quando pobres e sofredores); dos belos (mesmo quando são feios); dos famosos (mesmo quando são fruto promocional das revistas e jornais); e dos elegantes (mesmo quando são cafonas), estariam acima de todas as circunstâncias.
Estou seguro que não é o patriotismo mas a inveja, o sentimento  básico de nossa vida coletiva. Para começar a gostar do Brasil, tínhamos que  invejar a França, a Inglaterra, a Rússia, a Alemanha, a Itália e os Estados  Unidos. Era, sem dúvida, a inveja que nos fazia torcer pela queda do Brasil no  tal abismo de onde ele sairia melhor do que todo mundo. Antes do sexo, o  brasileiro, tem inveja. Ela antecede a sensualidade e o erotismo, sendo básica  na formação de nossa identidade pessoal. Você sabe quem é, leitor, pela inveja  que sente todas as vezes que encontra o tal 'alguém' que, pela relação invejosa,  te faz sentir um bosta: um 'ninguém'.
 Como as nuvens em volta das montanhas, a inveja se adensa em torno  de quem é visto como importante, de modo que, ser invejado, é equivalente a 'ter  poder', 'charme', 'prestígio' e 'riqueza'. Dizem que a inveja é perigosa, mas o  fato concreto é que não há brasileiro que não goste de ser invejado por alguma  coisa. Pelo salário, pelo poder, pela beleza, pelo sucesso, pela inteligência e  até mesmo pelas sacanagens, injustiças, calúnias, e descalabros que comete. Num  seminário recente sobre 'Ética e Corrupção', eu disse que é justamente a vontade  de ser invejado que descobre os corruptos. Pois diferentemente dos ladrões de  outros países, que roubam e somem no mundo, os nossos são forçados pela 'lei  relacional da inveja' a retornar ao lugar natal para mostrar aos seus parentes,  amigos e, acima de tudo, inimigos, como estão ricos e, nisso, são denunciados,  presos, soltos e finalmente colocados no panteão cada vez mais extenso dos  canalhas nacionais. Dos infames que comprovam como a inveja e o desejo de ser  invejado é o motor da vida brasileira.
 Minha tese é a de que até a canalhice é invejada no Brasil. Richard  Moneygrand, o grande brasilianista, escreveu no seu diário filosófico, Voyage  Into Brazil que: 'Para os brasileiros, um dia sem inveja, é um dia sem luz. A  inveja confirma a idéia nacional do sucesso para poucos, como antes confirmava o  berço e o sangue para a aristocracia e a superioridade social para os  funcionários públicos e senhores de engenho. Todos a condenam, mas ninguém pode  passar sem ela.'
 A inveja, digo eu, é o sinal mais forte de um sistema fechado, onde  a autonomia individual é fraca e todos vivem balizando-se mutuamente. O controle  pela intriga, boato, fofoca, fuxico e mexerico é a prova desse incessante  comparar de condutas cujo objetivo não é igualar, mas hierarquizar, distinguir,  pôr em gradação. O horror à competição, ao bom senso, à transparência e à  mobilidade, é o outro lado dessa cultura onde ter sucesso é uma ilegitimidade,  um descalabro e um delito.
 O êxito demarca, eis o problema, um escapar da rede que liga todos  com todos. Essa indesejável individualização tem mais legitimidade quando vem de  quem já está estabelecido. Daí ser imperdoável que Fulano - 'aquela figurinha' -  o faça, destacando-se pelo disco, novela, livro ou empreendimento desse mundo  onde todos são pobres e miseráveis por definição e por culpa do 'social'. O  pecado mortal das sociedades relacionais é justo essa individualização que  separa o sujeito de uma rede hierárquica. Rede que nos persegue neste e no outro  mundo.
 Como, então, não sentir inveja do sucesso alheio, se estamos  convencidos que o êxito é um ato de traição a um pertencer coletivo conformado e  obediente. Como não sentir inveja se o exitoso é aquele que recusa ser o bom  cabrito que não chama atenção e passa a ser o mais vistoso - esse símbolo de  egoísmo e ambição? Ademais, como não ter inveja, se o sucesso é um sinal de  pilhagem de um bem coletivo? Essa coletividade que, entra ano e sai ano,  continua a ser percebida como mesquinha, subdesenvolvida, pobre e atrasada? Como  um bolo pequeno e que jamais cresce, destinado a ser comido somente pelos que  estão sentados à mesa? 
 ESTADO DE SP 31 outubro 2007
A crônica da inveja e a inveja da crônica 
 Roberto DaMatta
Ao escrever sobre a inveja, essa companheira do ciúme, do despeito, do ódio e do horror (como diz Lupicínio Rodrigues, em Nervos de Aço), eu não tinha idéia da reação que iria provocar. Somente me dei conta do peso do assunto quando recebi sugestões precisas de como escrever e que autores usar para discorrer sobre esse sentimento tão básico, quanto complexo, da experiência humana.
Como tudo o que se localiza na difícil arena do que, nós cristãos e  cartesianos (que imaginamos ser, acima de tudo, sujeitos dotados de razão),  chamamos de 'sentimentos', a inveja abre um oceano de questões, a começar pela  própria definição do que é isso que chamamos de sentimentos, por oposição aos  nossos interesses explícitos que seriam racionais e objetivos. O coração, dizia  Pascal, tem razões que a razão desconhece. O mesmo ocorre com o corpo como uma  usina de sentimentos egoístas e anti-sociais, como disseram muitos estudiosos. A  alma seria motivada pela razão e sempre altruísta mas, como compensação, quem  tudo realiza, para gozar ou sofrer, é o corpo!
 Por exemplo. Um sujeito deseja intensamente uma mulher. Segue  então, da conquista ao motel uma impecável linha de racionalidade: escreve  bilhetes, envia flores, mente para a esposa, economiza dinheiro e enfeita-se.  Mas no motel, diante do objeto de suas fantasias, confronta-se com uma  inesperada ausência de libido: tem - apesar do impulso fremente - uma brutal e  incorrigível inibição sexual. O choque, para quem passou pela experiência, é  dramático. Se tudo no mundo é determinado pelo desejo individual, com sua  diabólica clareza, se o sujeito, afinal sentia a flama inquestionável do desejo  e tinha a mais absoluta certeza dele; se durante meses moveu Seca e Meca e  equacionou meios e fins para concretizar o encontro erótico, de onde vinha essa  indesejada incapacidade impeditiva do pecado que tanto queria  perpetrar?
 Para tornar ainda mais contundente essa questão, citemos o exato  oposto. O caso do sujeito que sente uma atração irresistível pela pessoa errada:  pela irmã ou cunhada. Mas sem nenhuma inibição realiza o desejo que se  concretiza em incesto promovendo culpa, expiação, tragédia e, talvez, reparação.  De onde vem esse impulso proibido e indesejável que configura, a uma só vez,  pecado, tabu e crime?
 Se estamos conscientes de nossa condição social, se sabemos quem  somos e, se o mundo é mesmo tocado a interesses que chegam límpidos ao  consciente, de onde vêm as emoções que não combinam com tais projetos de  comportamento?
 Se a sociedade teme a inveja e o ciúme que seriam por definição  destrutivos ou anti-sociais, como dizia, por exemplo, o eminente antropólogo  George Foster, que escreveu um ensaio importante sobre o tema, por que eles  surgem na consciência social de modo tão intenso e de forma tão  exemplar?
 Seria a inveja (e os sentimentos em geral) os motivadores das  instituições sociais que serviriam para moldá-los e resolvê-los; ou seria o  exato oposto: as instituições - leis, regras, proibições, mandamentos, rituais e  prescrições em geral - é que engendrariam esses sentimentos indesejáveis que  delas escapam como as faltas e os pênaltis nos jogos de futebol?
 Muitos dos que comentaram minha crônica supõem que a inveja é um  sentimento inato e natural, pronto a ocorrer onde quer que existam seres  humanos. Deste ponto de vista, o cronista que aborda a inveja como sendo  dependente da sociedade, não apenas incorria em erro, mas produzia uma matéria  incompleta. Se eles, os leitores, escrevessem sobre tal assunto, o ponto de  partida seria certamente diverso.
 De fato, conheço pessoas que não cessam de me indicar temas e  pessoas sobre os quais eu deveria escrever. Os mais impacientes chegam mesmo a  dizer que eu deveria 'meter o pau', insinuando que tenho sido leniente (ou  covarde) com o momento em que vivemos. Outros, porém, me perguntam - como fez um  ex-aluno, ex-revolucionário das festivas utopias hoje em crise, filhinho de  papai e companheiro zeloso em acusar quem fica na coluna 'do bem' ou 'do mal' -  por que eu escrevo coisas tão 'reacionárias'.
 Falando de inveja, eu não poderia deixar de repensar essas memórias  da crônica, ao vivo e em cores, dizendo primeiramente aos leitores que, como  todo ser humano, o escritor não faz o que quer, mas o que pode. A diferença  entre querer e poder inventa o abismo que permite aproximar ou tornar distante o  que ocorre conosco e, por projeção, com os outros.
 Pena que cada qual não possa ser simultaneamente leitor e cronista.  Uma situação - aliás - que, fica a sugestão, pode ser corrigida pelos jornais  que se dispusessem a selecionar e publicar as crônicas do jornalista e escritor  latente (e infelizmente, às vezes, desconhecido) que jaz dentro de cada um de  nós. Aí o leitor veria como é fácil sugerir e falar de temas bons para  'cronicar' e como é duro realizá-los em letra de forma, tirando-os daquela zona  maravilhosa da possibilidade e do sentimento que faz da inveja algo concreto e  altamente produtivo.
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