Notas de aulas, trechos de conversas: as muitas idéias e conceitos do filósofo foram em grande parte passados de forma oral
Renato Janine Ribeiro
Na adolescência tive uma professora  estupenda, que me incutiu amor pelas coisas do conhecimento: dona Lia de Almeida  Prado, que lecionava latim e português no Colégio Alberto Levy, em São Paulo.  Quando prestei o vestibular de filosofia eu sabia que um irmão seu era professor  destacado no departamento da USP, embora relativamente moço, mas demorei a  conhecê-lo. Não cheguei a ser aluno de Bento Prado - nem de Giannotti, os dois  cassados nossos de abril de 1969: eu entrava no segundo ano, eles não lecionavam  no primeiro e, na verdade, pude ter apenas três aulas com Bento antes que a Voz  do Brasil anunciasse a sua exclusão, arbitrária e criminosa, da universidade.  
Assim, nunca fui próximo dele, que agora se extinguiu novo, aos 60 e  poucos anos. Quando voltou à universidade, foi pela Federal de São Carlos,  dirigida por um grande reitor, Saad Hossne, que se antecipou à USP na  reintegração dos antigos cassados. Ficou em São Carlos, assinando seus textos de  "Vila Pureza". Mas seus textos não foram, não são, pelo menos por ora, muitos.  Espero que a família e os mais chegados providenciem a edição do que ficou  inédito. 
Só que o inédito de Bento nem sempre é um texto por ele  escrito. Ao contrário de Giannotti, que publicou e publica em dimensão  comparável à fama de que desfruta, Bento editou relativamente pouco. Paulo  Arantes, num artigo que já tem anos, comentava a freqüência com que Bento  presenteava algum aluno com um artigo inédito, após uma longa conversa. Deve  haver inéditos dessa ordem. Mas também há notas de aula, lembranças de conversas  e, embora possa parecer um pouco arcaizante a sugestão de que para o acesso às  idéias de Bento seja preciso passarmos pelos depoimentos, como os que Diógenes  Laércio coletou sobre os grandes pensadores antigos, é fato que muito da  intervenção de Bento foi oral. 
Era um grande conversador, que com  facilidade imaginava idéias. Freqüentava não só a literatura, mas também o  cinema e até o romance policial. Com ele, os gêneros se misturavam. Retirava  conceitos e filosofia de quase qualquer matéria. Num ambiente em que os  conceitos se prendem muito aos autores, em que a filosofia se tornou refém da  história da filosofia (é assim que eu e alguns colegas vemos os impasses da  filosofia no Brasil), Bento Prado era exemplar, porque, conhecedor profundo dos  pensadores passados, circulava em meio a eles e a outros criadores como se todos  fossem vivos.
Sua própria produção publicada o atesta. Tive a honra de  editar seu Bergson pela Edusp, há uns vinte anos. Dirigia a comissão de  publicações da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e nos  empenhamos em fazer que teses notáveis, ainda inéditas, viessem a lume. Acabamos  convencendo a Editora da USP, que até a época só atuava em co-edição, isto é,  não tomava a iniciativa de editar mas ia a reboque de editoras comerciais, a  criar uma série de teses das áreas de Humanas, que na verdade durou pouco. Cada  faculdade escolheu um livro e a FFLCH, por seu tamanho maior, teve direito a um  quinhão mais amplo, onde por sinal também figurou Antonio Candido. 
Digo  isso porque Bergson foi um dos filósofos mais afeitos à literatura, às artes,  que houve. Pensador algo esquecido ao longo do século 20, foi contudo alguém  que, 100 anos atrás, ajudou a estabelecer ou reforçar os laços entre o filosofar  e o criar artístico. Também é significativo que Bento, a par dessa tese de  livre-docência defendida nos anos 60, dedicasse especial carinho a dois outros  tipos de escritos.
O primeiro são os escritos em torno da literatura, que  aparecem em Alguns Ensaios, que publicou nos anos 80, e são complementados em  edição posterior, na qual surgem novos artigos, tendo como eixo a ligação da  filosofia com a literatura - por exemplo, de Guimarães Rosa com Heidegger. O  segundo são os ensaios que dialogam com questões candentes de nosso tempo. Aqui,  destaco duas vertentes. Uma é a do senso comum. Trata-se de um debate lançado  entre nós especialmente por seu amigo e colega Porchat, que ao se tornar cético  passou a celebrar as qualidades do senso comum sobre as da pretensão filosófica.  Como muitos sabem, o diálogo aqui é difícil, não pelas personalidades (eram  amigos), mas pela dificuldade de alguém de tradição européia continental, isto  é, alemã até meados do século 20 e francesa desde inícios do mesmo século,  fazer-se entender de (ou entender) alguém de tradição anglo-saxônica.  
Porchat, formado embora na escola francesa (de Goldschmidt), fez-se  próximo da visão mais prática dos anglo-saxões (um exemplo notável dessa  diferença de posições saiu neste jornal há duas décadas, quando Gérard Lebrun  resenhou o livro de Olivier Todd - jornalista francês de simpatia inglesa -  sobre a filosofia de seu quase-pai adotivo, nada menos do que Jean-Paul Sartre,  a quem Todd respeitava como pessoa mas cujas idéias não lhe pareciam  simplesmente fazer sentido). Bento tinha escuta. O livro de ambos é um dos mais  empolgantes da filosofia brasileira nos anos 90, debatendo eles com alguns  colegas sobre a visão filosófica e a do senso comum sobre o mundo.  
Falando em escuta, outra vertente que empenhou Bento foi a da  psicanálise. Não só porque seu departamento em S. Carlos a trabalha em relação  com a filosofia, e pelo conhecimento que sua esposa, Lucia Prado, tem do  assunto, mas talvez porque esse movimento de idéias tão decisivo do século 20  apontasse bem os limites do diálogo. Em suma, tivemos em Bento alguém da boa  tradição socrática (do diálogo, da conversa, da intervenção tanto mais forte  porque oral), mas também com a suspeita que Freud deita sobre o diálogo, ao  criar formas de escuta mais carregadas de dúvida.
Um comentário final e  inevitável é: como Bento se dava num mundo em que cada vez mais se preza a  publicação, a produção? Feita a ressalva de que a filosofia praticamente nasce  com um grande mestre hiper-oral, Sócrates, é preciso também lembrar que Bento  foi assessor do CNPq (onde deixou a lembrança de um "homem único,  extraordinário, de fineza rara, inteligência aguda e espantosa simplicidade") e  presidente da associação de pós-graduações em filosofia. Transitou no oral e no  informal, mas também na instituição. 
Mas creio sobretudo que há um  grande erro em pensar que nosso tempo se divide entre o "publish or perish" de  exigências que não levam em conta a qualidade e uma criação inefável,  imensurável, de quem nunca presta contas em público. Primeiro, publicar  trabalhos ruins não é valorizado por nenhum grupo científico. Segundo,  personalidades como Bento são raras e não servem para justificar a  improdutividade de quem nada faz. Mas termino, com o risco de me repetir: é hora  de coletar as memórias, aulas, presenças de Bento Prado. Isso não é repetir  Diógenes Laércio. Afinal, temos livros tanto de Hegel quanto de Heidegger,  escritos a partir de notas de alunos. Se não me engano, a certa altura um  estudante presenteou Bento com um livro pronto, do próprio Bento, que reunia  aulas dele. É disso que, agora, precisamos. 
Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia Política na USP e diretor de Avaliação da Capes
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