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Mãe branca de Yemanjá

Fonte: O Estado de SP - 17 de maio de 2009

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Mãe branca de Yemanjá

Ela é a síntese França-Brasil: trocou o grand monde de Paris por um terreiro na Baixada Fluminense

Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo

Durante uma festa em 1959, sentiu um vazio que a derrubou no chão: havia 'bolado o santo'

 

SANTA CRUZ DA SERRA, RJ - De Gisèle Cossard Binon, cidadã francesa, mulher de diplomata, herdeira de uma mansão no Parc des Sceaux, nos arredores de Paris, branca de olhos azuis, nasceu Omindarewá, mãe-de-santo, dona de terreiro e moradora da Baixada Fluminense. A concepção dessa nova e inusitada persona talvez remonte aos ecos de sua infância no Marrocos, onde nasceu e viveu até um ano e meio de idade. Ou pode ter sido gestada durante sua passagem pela África, onde morou oito anos com os dois filhos e o marido, funcionário do serviço exterior francês. Quando a "outra" finalmente veio à luz, numa viagem ao Brasil, Gisèle a manteve escondida da própria família e dos colegas da fina flor da sociedade franco-carioca. Assim subsistiu por mais de uma década, até sua possessão irrefreável e definitiva.

A trajetória da socialite francesa que virou autoridade do candomblé daria um filme. E deu. O documentário, dirigido por Clarice Ehlers Peixoto, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), foi produzido com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa (Faperj) e será lançado em setembro no âmbito das comemorações do Ano da França no Brasil. "O que mais me impressionou foi a ruptura que ela fez com o mundo burguês e intelectual para ir viver em Santa Cruz da Serra, na Baixada Fluminense, no meio de gente simples e de pouca instrução", conta Clarice.

Aos 86 anos, Omindarewá ou Gisèle Francesa, como é conhecida pela vizinhança da cidade à beira da estrada Rio-Petrópolis, comanda um arborizado terreiro, decorado "com gosto francês", na definição da diretora do filme: móveis rústicos, luminárias de garrafões de vidro cortados, esculturas e máscaras africanas. Um mobiliário coletado ao longo de uma existência aventurosa, orientada, como Gisèle diz logo no início do documentário, por um "desejo ardente de evasão para uma outra vida, não-conformista".

Filha de pai professor e mãe pianista, ela cresceu em Paris entre aulas de violoncelo e balé, mas sem grande entusiasmo pelo savoir-vivre francês. "Só tinha olhos para as brincadeiras, as pessoas e a vida lá fora." Esse desejo de evasão esteve presente desde sempre: "Meus pais falavam muito do tempo que vivemos no Marrocos como uma época encantada. Então, fiquei com essa lembrança sem ter." Essa rebeldia difusa iria encontrar uma causa durante a 2ª Guerra Mundial e o jugo nazista sobre a França.

A família toda se engajou na Resistência e Gisèle, vinte e poucos anos, cruzava as ruas de Paris de bicicleta, com mapas sobre as posições alemãs escondidos em um fundo falso na sola do tamanco. Foi nessa época que conheceu o jovem professor de geografia com o qual se casaria em 1945. Nos dois anos seguintes, Jean Binon deu-lhe dois filhos, Bertrand e Claude, e, em seguida, recrutado pelo Ministério das Relações Exteriores, realizou-lhe o sonho de morar na África - pesadelo de nove em cada dez mulheres de diplomatas brasileiros. Em 1949, a família se mudava para a República dos Camarões para tocar um projeto de educação na então colônia francesa. Três anos depois iriam para o Chade, onde viveriam mais cinco.

"Eu estava felicíssima, caçava, nadava no Rio Chari e tentava entender aquela realidade tão diversa", lembra Gisèle, que logo perceberia, no entanto, que brancos e negros viviam em mundos separados. E os primeiros se julgavam superiores e não faziam nenhum esforço para compreender a mentalidade africana. Se o calor não incomodava o casal Binon, a temperatura política começava a escalada que culminaria nas guerras coloniais de libertação. A sensação se confirmou durante a viagem de Land Rover que o casal fez pelo continente em 1956. Com Gisèle ao volante e cuidando da mecânica -- "meu marido não era nada prrrático", diz, com o sotaque que nunca perdeu - percorreram 14 mil quilômetros de estradas precárias, cruzando países como o Congo, Uganda e Quênia. Na volta, decidiram "ir embora antes de levar um pontapé".

O intervalo em Paris não duraria mais que dois anos, até que Jean Binon fosse nomeado conselheiro cultural da Embaixada da França no Rio de Janeiro, em 1959. Gisèle chegou ao porto do Rio numa Quarta-Feira de Cinzas. "Uma sujeira, gente dormindo na rua com as fantasias rasgadas e a maquiagem derretendo, aquilo me impressionou muito mal", lembra. Começou uma vida entediante, feita de recepções e canapés, que viraria de cabeça para baixo ao conhecer Abdias Nascimento, dramaturgo, poeta e ativista negro que a iniciou na cultura dos morros e subúrbios cariocas.

Foi numa dessas ocasiões, durante uma festa de candomblé no terreiro de Joãozinho da Goméia, em Caxias, que outra pessoa surgiu de dentro de Gisèle. Sob as batidas hipnotizantes dos atabaques, ela sentiu um vazio no estômago que lhe tomou os sentidos e a derrubou no chão. A francesa havia "bolado no santo", no dizer dos adeptos da religião afro-brasileira: Yemanjá "tomou sua cabeça" para dizer que a havia escolhido, conforme explicou Joãozinho da Goméia. "No início, tentei resistir. Disse a ele que minha família não sabia de nada e não podia deixar minhas obrigações na embaixada. Mas nos dias seguintes fui sentindo tonteiras, e virou uma coisa que eu não podia mais evitar."

Em outubro de 1960, a "embaixatriz", como o pai-de-santo a chamava, aproveitou uma viagem de Jean Binon a Paris para "fazer a cabeça", sua iniciação, na casa de Goméia. "Disse a ele que não poderia raspar o cabelo todo para ninguém perceber. Só aqui em cima, onde coloquei um coque postiço", ri. "Eu tinha duas vidas, a de mulher de diplomata e a de filha de santo." O marido, obcecado com a carreira, nem notou. Enquanto isso, madame aprendia a depenar galinha, pegar lenha e matar "bicho de quatro pés". Mas não seria tão cedo que ela iria incorporar sua nova personalidade.

Em 1962, a administração francesa chamou seu funcionário de volta e a família retornou a Paris. Os filhos já estavam criados e Jean e Gisèle, compreensivelmente, tinham virado dois estranhos. Veio a separação. Mais dolorosa para Gisèle, porém, era a saudade dos terreiros. Decidiu estudar o assunto na faculdade: "Era uma maneira de me manter ligada ao candomblé, para não afundar."

Sem sequer conhecê-lo, marcou um encontro com o sociólogo Roger Bastide, que havia feito parte da missão francesa trazida ao Brasil em 1938 para a fundação da Universidade de São Paulo, ao lado de Claude Lévi-Strauss e Fernand Braudel. Bastide era autor de um estudo clássico, O Candomblé da Bahia. Gisèle pediu que ele a orientasse e desembestou a falar sobre sua experiência. O professor a interrompeu: "Minha senhora, escreve, escreve, que já está sabendo mais do que eu."

Em 1970, Gisèle defendia tese de doutorado em antropologia na Sorbonne, intitulada Candomblé Angola (publicada no Brasil em 2006 pela editora Pallas, em versão ampliada, com o título Awô: O Mistério dos Orixás). Fez amizade com o fotógrafo e etnógrafo Pierre Verger, que também desembarcara na Bahia, em 1946, para documentar as religiões afro-brasileiras. Mas, como não queria voltar ao País com uma mão na frente e outra atrás, prestou concurso e esperou até 1972 para conseguir um posto no Rio.

Quando finalmente voltou ao Brasil, como conselheira pedagógica do serviço cultural francês, Joãozinho da Goméia já havia morrido e ela dificilmente seria aceita por outro babalorixá. A oportunidade viria pelas mãos de seu amigo Pierre Verger, que se hospedou no apartamento de Gisèle na Lagoa com o pai-de-santo baiano Balbino Daniel de Paula, sobre quem o fotógrafo fazia um filme. Um acidente, porém, se interporia no caminho.

No dia 8 de dezembro de 1973, no meio de uma tempestade, o carro de Gisèle rodou numa curva da Rodovia Washington Luís. Ela feriu a cabeça, teve cinco costelas quebradas e sofreu perfuração do pulmão. Balbino se prontificou a ajudá-la. Gisèle convalescia havia 11 dias sem sair da cama, na casa que acabara de comprar em Santa Cruz da Serra, quando o pai-de-santo trouxe oferendas para o orixá da amiga. "Então, ele soltou fumaça de charuto no meu rosto e a minha Yemanjá veio. Eu levantei, dancei e ele se encantou." Pai Balbino completou a formação de Omindarewá - que quer dizer "água límpida" - e ela passou a se dedicar exclusivamente aos orixás depois que se aposentou do serviço público francês, em 1980.

Hoje, em seu terreiro que tem mais de três décadas, ela diz não sentir banzo de sua França natal. "Só dos queijos", ressalva - que troca sem susto pelo xinxim de galinha e o caldo de siri favoritos. Se deixou dois varões em Paris, ganhou os mais de 250 filhos-de-santo que já iniciou. E, embora valorize a cultura europeia e a formação intelectual que recebeu, acha tolice compará-las ao universo mágico afro-brasileiro: "Os negros viviam das folhas, observando os passarinhos, sabiam se ia chover pelo frêmito da maré. São dois pesos que não se devem colocar na mesma balança." Roger Bastide, Pierre Verger, Claude Lévi-Strauss... por que tantos de seus conterrâneos interessados nesse universo? "É uma característica do espírito francês, não só de intelectuais", analisa a doutora do candomblé: "Sempre procuramos um outro jeito de ver o mundo."

Em 30 anos, a mãe-de-santo viu sua pátria adotiva se transformar. Depois de sofrer dois assaltos à mão armada no terreiro - em um dos quais seu filho Claude, que estava de visita, levou uma coronhada e teve o tímpano perfurado - , concluiu que a violência é hoje o grande demônio brasileiro. "Eu vi tudo piorar", diz ela. "Era tão bonito antes, tão agradável..." E o futuro, infelizmente, não está nos búzios de Omindarewá.

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