OUTRA AULA DO MESTRE CLAUDIO ULPIANO. SAUDADE.  
 Quando eu falo pensamento, corpo e tempo - e faço  uma associação do pensamento com o corpo - aparece uma idéia aparentemente  confusa, porque a tradição da filosofia marcou que o corpo seria o grande  obstáculo do pensamento. Inclusive, quando a filosofia emerge na cidade grega -  com Platão - essa relação entre o corpo e o pensamento é inteiramente  impossível: o corpo seria exatamente aquilo que barraria a passagem do  pensamento. Ainda assim, é essa associação "pensamento e corpo" um dos pontos  principais desse curso que eu vou dar pra vocês. 
 E a terceira questão - o tempo - que irá surgindo ao longo da minha  exposição. 
 Neste momento, eu começo a entrar na aula - e tudo o que eu vou dizer terá  uma importância enorme para a compreensão de vocês. Nesta primeira aula, eu vou  fazer a exposição - e uma pequena experimentação de como vocês estão ouvindo: de  como vocês estão recebendo essa maneira de pensar. Por exemplo: 
 Um músico do nosso tempo - chamado Olivier Messiaen - vai fazer uma  distinção entre quatro tipos de canto de pássaros. Diz ele, que na primavera, os  pássaros, praticamente todos eles, fazem o canto do amor - que é um canto de  sedução, geralmente feito pelos machos. Esse canto de amor - evidentemente - tem  uma função específica: serve à espécie - porque o amor permite a reprodução; e  serve aos prazeres do indivíduo. Seria esse canto - que eu chamei de canto de  amor - que ocorre em todas as primaveras. 
 O outro tipo de canto, diz ele, que é entendido por todo e qualquer pássaro  - é o grito de alarme. Os pássaros - através do gorjeio - fazem o canto de amor  e o grito do alarme: dois cantos que estão a serviço do que eu passarei a  chamar, nesta aula, de CORPO ORGÂNICO. Ambos os cantos estão a serviço do  organismo - das funções dos órgãos; no sentido de que um canto - o canto de amor  - tem como único objetivo prestar um enorme serviço à espécie; ou seja - à  evolução da espécie; e assim por diante. 
 Mas, de outro lado, Messiaen vai falar num terceiro canto (por enquanto, eu  vou deixar o [quarto] entre aspas). Esse terceiro canto, de que Messiaen nos  fala, é o canto que alguns pássaros fazem para o pôr do sol - ou [melhor]: para  o crepúsculo e para a aurora. Esse canto não tem nenhum objetivo orgânico e não  presta nenhum serviço à espécie ou ao indivíduo: é o canto gratuito - que o  pássaro produz, não importa os perigos que ele corra. Segundo Olivier Messiaen,  [o canto gratuito] é de uma extraordinária beleza! E quanto mais forte for o  crepúsculo; quanto mais se espalhar a cor violeta; e quanto mais bonita for a  aurora - mais esplendorosos os temas e motivos que o pássaro canta. 
 A partir dessa colocação, é evidente que há uma diferença do canto da  primavera e do grito de alarme para o canto gratuito - porque esse canto é  gratuito [exatamente] porque não presta nenhum serviço ao organismo ou à  espécie. 
 Se, de algum modo, eu me fiz entender; se alguma coisa do que eu falei  atravessou... (caso contrário, mais adiante eu farei com que vocês entendam!) -  eu marquei claramente a existência - pelo menos nos pássaros - de dois tipos de  corpo: um corpo orgânico, que está sempre a serviço da espécie e do indivíduo; e  um corpo que, por enquanto, eu só posso chamar de um corpo estético. No caso dos  pássaros, é um corpo que fica de tal forma tocado diante das luzes, da claridade  e das cores que o crepúsculo e a aurora produzem, que começa a [emitir] -  Atenção! - ondas rítmicas: ele gera ondas rítmicas, que se encontram com as  forças da natureza. E quando o ritmo se encontra com as forças da natureza -  isso se chama SENSAÇÃO. 
 - O que é a sensação? 
 A sensação é a potência de um corpo vivo, que produz uma onda de  intensidade - que no caso dos pássaros são os ritmos; e no caso das forças  caóticas da natureza, as misturas das cores, dos calores e das luzes... E quando  essas duas linhas se encontram, emerge o que Olivier Messiaen vai chamar de  personagem rítmico. O personagem rítmico não é um sujeito, não é um pássaro. O  personagem rítmico é uma onda, que se serve do corpo do pássaro. 
 Então, através do encontro das ondas estéticas e da composição do  personagem rítmico - que é exatamente o pássaro ao fazer esse canto; com as  forças do sol, as forças da natureza - que eu passarei a chamar de paisagem  melódica - alguma coisa em termos de corpo, em termos de pensamento e em termos  de tempo se produz. 
 Essa mesma exposição (que provavelmente, por enquanto, nem todos puderam  entender...) poderemos encontrar no cinema de um diretor de Nova York - que é o  John Cassavetes. Todo o cinema do John Cassavetes é um cinema do CORPO - mas de  modo nenhum do corpo orgânico. Usando [o que eu falei sobre] os pássaros... - o  cinema do Cassavetes é um cinema do personagem rítmico e da paisagem melódica.  Repetindo: Cassavetes introduz no cinema o corpo - mas de modo nenhum o corpo  orgânico. 
 O nome do pássaro em português é TORDO e em francês "GRIVE". 
 Eu vou passar a chamar o corpo do Cassavetes, da mesma maneira que o corpo  do pássaro... Eu vou chamar o corpo, com que o Cassavetes trabalha -  literalmente - de corpo histérico. E aí, com uma certa facilidade, eu já faço a  distinção de que, no nosso corpo, nós teríamos - misturados - o corpo orgânico e  o corpo histérico. Esse corpo histérico foi apresentado teoricamente no Ocidente  pela obra de Artaud - que dá a esse corpo o nome de CORPO SEM ÓRGÃOS. 
 A nossa apreciação dessa questão não é difícil: de um lado um corpo  orgânico - sempre a serviço da espécie, a serviço do indivíduo; e de outro lado,  um corpo estético, ou melhor, um corpo histérico - ligado à produção da beleza.  
 Nesse começo de aula, eu vou aproximar a obra do Cassavetes da obra do  Tordo. Cassavetes, o Tordo ou o Tordo Cassavetes - tanto faz.
 Da mesma maneira, se eu sair do plano do cinema - desse plano belíssimo do  cinema ([cujos] filmes nós teremos que tentar ver...) - e entrar na pintura, por  exemplo, nós vamos apreender o mesmo processo, porque a pintura traz uma marca  muito clara [dele]. O séc. XX, em termos de artes plásticas - afora certas  tolices que existem por aí - foi um rompimento com a arte figurativa. Pra  facilitar, eu vou chamar, aqui, a arte figurativa de arte propriamente orgânica.  
 O que aconteceu no séc. XX, fundamentalmente nas artes plásticas, foi a  emergência da arte abstrata: Mondrian - que está sendo recuperado agora;  Kandinsky; e, mais pra frente, os expressionistas abstratos: Pollock, e assim  por diante. Mas também, já no final do século, um pintor chamado Francis Bacon -  cuja questão é a mesma do Tordo e a mesma do Cassavetes: a produção, na pintura,  de um corpo histérico. Ou seja, nesse instante, em termos ornitológicos, em  termos picturais e em termos cinematográficos, eu estou começando a constituir  uma nova estética - a estética das ondas rítmicas, a estética das forças da  natureza e a estética das sensações. Se quisermos nos apropriar mais do que eu  estou dizendo, vamos encontrar a mesma questão na literatura, na poesia... - em  Fernando Pessoa, por exemplo, que é chamado o poeta das sensações!?! As  sensações - são a mesma coisa que os ritmos do Tordo e as atitudes e as posturas  das personagens do Cassavetes. 
 A ligação que eu vou fazer do pensamento com o corpo não é a ligação do  pensamento com o corpo orgânico, porque essa separação do corpo e do pensamento  - que tem origem no platonismo - é a separação do corpo orgânico: que se separa  do pensamento. 
 - Mas, o que eu estou chamando de corpo histérico?
 No caso do cinema, o corpo histérico se manifesta por atitudes e posturas -  que se originam numa expressão do Brecht chamada "GESTUS". 
 Gestus - por enquanto - seria [apenas] uma maneira do corpo histérico se  manifestar. E o cinema do Cassavetes não é, de forma nenhuma, um cinema  fundamentado na história, na intriga ou no enredo. Nada disso! O que se dá no  cinema do Cassavetes é uma associação das atitudes e das posturas (que nós vamos  entender de qualquer maneira!). Mas, a partir disso, eu posso dizer que é esse  corpo das atitudes e das posturas - o corpo do gestus, o corpo da deformação do  Francis Bacon, ou então o corpo do personagem rítmico - que vai fazer uma  associação com o pensamento. Ou melhor: esse corpo - que eu chamei de histérico  - força o pensamento a pensar. 
 Essa expressão, que eu acabei de usar aqui, é realmente muito difícil,  porque - classicamente - nós entendemos o pensamento como aquilo que funciona  sempre por sua boa vontade - e eu estou dizendo que não; que o pensamento é  forçado a pensar por este corpo que eu chamei de "corpo histérico" - o corpo das  atitudes e das posturas, o corpo do gestus. Ele força o pensamento a  pensar.
 - Força a pensar, o quê?
 Ele força a pensar o impensado - a pensar o corpo, a pensar a vida. É como  se, de repente - diante de toda essa história pesada da filosofia - nós  tivéssemos a viabilização, a possibilidade do pensamento pensar. E o pensamento,  quando pensa, o que ele pensa é - o corpo e a vida. 
 Então, vocês vão ver - o cinema de Cassavetes é um cinema explicitamente do  pensamento! Quando o Cassavetes se junta com a Gena Rowlands - [onde quer que]  aquele par magnífico se reúna... - pode ser em Glória, Love Streams, Faces - o  que está passando por ali são gestus, posturas e atitudes - e o pensamento dando  conta daquilo. Ou seja, quando eu fiz essa distinção de corpo orgânico e corpo  histérico; e, no caso de Cassavetes, liguei o corpo histérico às posturas e  atitudes, o que eu quiz dizer pra vocês é que - a função do pensamento é pensar  todas as atitudes e as posturas do corpo - insônias, sono, tristeza; todas as  linhas de errância - abstratas e difíceis - que o corpo produz. 
 Então, de um outro lado, a minha aula tem (olhem o nome:) uma postura  ética, - postura é coisa de corpo, não é? -, uma postura espinozista; no sentido  de que - sem temores, sem medo da morte - o que nós vamos fazer é PENSAR O  CORPO. 
 Esse é o meu curso pra vocês!
 Mas quando o pensamento e o corpo começam a fazer essa associação estranha  - associação no cinema, associação no teatro, associação na pintura, na dança,  etc. - quando essa associação começa a se dar - o corpo começa a secretar O  TEMPO. E o pensamento começa exatamente porque ele fez essa associação com o  tempo. Ele invadiu o corpo para pensar e dar conta do que ele é... - esse corpo  começa a gerar o tempo. 
 Então, eu posso falar, sem o menor problema, que o cinema de Cassavetes é  um cinema do tempo - ou o cinema do Godard... etc. Por quê? Porque a composição  do pensamento com o corpo faz com que o corpo secrete tempo. Essa idéia de tempo  é uma idéia absolutamente trágica - porque é ela que nos dá e nos tira a vida.  Pelo menos, é assim que nós pensamos o tempo. 
 Acontece que toda a tradição do Ocidente compreendeu o tempo segundo o  modelo orgânico, ou seja - aquele modelo que não passa; funcional,  organizacional. O tempo foi compreendido, pelos pensadores do Ocidente, em  termos de tempo orgânico ou tempo cronológico. Como? Porque o organismo produz o  tempo que lhe interessa. E o homem, na sua pequena humanidade, não faz nada mais  do que servir a esse organismo. 
 Agora, o que eu estou falando, é que nós vamos romper com esse tempo  cronológico, para encontrar outras formas do tempo, ou melhor - a pura forma  vazia do tempo. 
 - Como eu consegui atingir essa posição nesta aula - a posição de chegar a  um momento e dizer que o corpo secreta o tempo?
 Para Proust, esse tempo secretado pelo corpo - agora vem um enunciado assim  terrível - talvez seja o único índice de imortalidade. Ou seja: Proust afirma  que as religiões não podem - em nenhum momento - nos indicar a possibilidade de  que nossa alma seja eterna. Mas quando o pensamento mergulha no corpo e encontra  o tempo... - ele começa a conhecer os segredos da eternidade. Então, a partir  daqui, eu mostro pra vocês que, ao pensar o tempo, nós pensaremos juntos também  a eternidade. 
 Em função do que eu acabei de dizer, eu acredito que, agora, a aula possa  começar. Eu acho que nós já temos todos os elementos básicos, pelo menos para  esta aula... - corpo, pensamento e tempo. 
 Falar sobre o tempo - entrar no tempo - provavelmente é um dote - e, sem  dúvida nenhuma, filosófico: porque esse procedimento tem início no século IV com  o neo-platonismo - Plotino - que é penetrar no tempo, e entender exatamente o  que é isso; entender o corpo; e entender o pensamento.
 Então, começamos a fazer a nossa viagem...
 Há uma doutrina que provavelmente tem início no séc. I d.C. - chamada  animismo - que afirma que tudo aquilo que existe tem vida. Ou seja, o animismo  coloca a alma em todas as coisas. Essa doutrina, por sua própria maneira de se  apresentar, cai num misticismo exagerado... - e praticamente se perde. E [se  perderia pra sempre,] caso não fosse adotada pela Filosofia do Plotino. 
 Para pensar o tempo, o corpo e o próprio pensamento, eu estou utilizando  agora como instrumento teórico (poderia ser outra coisa!) uma tradição que nasce  com o neo-platonismo no séc. III ou IV d. C. - tradição que vai trabalhar com a  noção de contemplação - que eu vou passar a explicar. Toda a razão de ser da  noção de contemplação está diretamente ligada à questão do tempo. Essa noção já  é platônica... - mas no Plotino ganha uma diferença. 
 Essa tradição que nasce com Plotino, vem até hoje, na obra do Gilles  Deleuze. Ou seja, sem medo de errar - Deleuze é neo-platônico.
 - O que é exatamente isso, e por que eu estou usando esse instrumento  difícil - chamado contemplação - para poder penetrar nas questões do tempo e nas  questões da eternidade; nas questões do corpo e nas questões do  pensamento?
 Essa tradição, que começa em Plotino, prossegue com Santo Agostinho, com os  ingleses - com Samuel Butler na Inglaterra, por exemplo... 
 Samuel Butler diz que uma semente de rosa, jogada na lama - sem mãos, sem  pés e sem nenhum instrumento - é capaz de transformar essa lama na qual ela está  inserida em macias e perfumadas pétalas de rosas, de forma magnífica! O que eu  estou dizendo, é que as rosas são produzidas pelas sementes; e essas sementes  fazem as suas roseiras e as suas rosas com a lama, - a água e a terra -, que é a  matéria que elas utilizam para transformar aquilo num determinado ser: a  roseira, apinhada de rosas... 
 Ao fazer isso, a semente não produz nenhuma atividade. A única coisa que a  semente faz... - é contemplar! 
 Ouvir uma tese dessas, é quase enlouquecedor! Uma tese de que a natureza  produz - não pela atividade - mas pela contemplação. Essa afirmação que eu fiz,  de forma muito ligeira... - nós temos dez aulas para poder sustentar isso... Eu  estou dizendo que, na natureza, a geração não se dá por processos de  atividade... mas por processos contemplativos. Quando a gente fala  "contemplação", vem logo à nossa mente a idéia de narcisismo. 
 Narciso era aquele que contemplava a sua imagem... Por isso, existe uma  distinção, também neo-platônica, entre narcisismo formal e narcisismo material.  O narcisismo material é quando Narciso contempla a sua imagem e se esgota  naquela contemplação. Enquanto que contemplação formal, ou o narcisismo formal,  é quando essa semente de planta - sem olhos - contempla a natureza; e, ao  contemplar, sintetiza os elementos, de tal maneira, que novos objetos começam a  ser gerados. Ou seja, [a partir] da contemplação de uma semente - na lama - uma  série de sínteses irão se processar... - e essas sínteses vão gerar os objetos  que existem na natureza.
 O que eu acabei de [passar] pra vocês, numa apresentação ainda muito  ligeira, foi a idéia de CONTEMPLAÇÃO. É uma idéia muito difícil - sobretudo para  nós, que traduzimos toda a nossa vida em práticas! Nós só acreditamos na  atividade; quando [o que eu] estou dizendo [é] exatamente o contrário. Eu estou  dizendo que a natureza como a arte produzem quando contemplam. Então, entrou uma  nova idéia - a idéia de contemplação. 
 Essa idéia de contemplação - como eu coloquei pra vocês - tem origem no  pensamento platônico; se deforma ou toma outra linha no pensamento neo-platônico  - no pensamento de Plotino; e vai explodir no séc. XVIII. Nesse século, os  pensadores ingleses, os pensadores da ilha - Hume, Locke, mas sobretudo Hume -  tomam essa idéia de contemplação como a idéia fundamental de sua obra.
 (virada de fita...)
 Há uma idéia que nós utilizamos nas práticas quotidianas, mas que é muito  poderosa nessa filosofia que eu trabalho - é a idéia de REPETIÇÃO. Aliás, é a  idéia de repetição física, de repetição psíquica e a idéia de repetição  ontológica. Inicialmente, eu vou trabalhar com essa idéia de repetição - idéia  terrível! idéia terrível! - que praticamente dirige a obra filosófica do  Deleuze. 
 A idéia de repetição. 
 Vamos tentar entender essa idéia e vocês não precisam se preocupar se vocês  tiverem perdido tudo aquilo que eu já disse. 
 Não faz mal - eu vou ajeitando... até que vocês possam tranquilamente  dizer: "Eu estou compreendendo o que está se passando..."
 A idéia de Repetição.
 Pra vocês entenderem, a repetição pode ser exemplificada como a repetição  do barulho de um relógio - tic-tac, tic-tac, tic-tac. Qualquer um de nós - no  silêncio da noite - [percebe claramente] essa repetição do relógio... "tic-tac,  tic-tac, tic-tac" (não é?) - Isso se chama repetição! Quando ouvimos esse  "barulho", passamos a achar que sempre que o tic aparecer, logo em seguida virá  o tac - nosso espírito fica na absoluta convicção de que esse fenômeno vai  ocorrer! Ora, se é tic, em seguida tac, depois tic, depois tac - tic-tac,  tic-tac... - O que faz o espírito? Quando o espírito ouve o tic-tac... - de  tanto ouvir essa repetição... - quando aparece o tic - ele, o espírito -  antecipa o tac; isto é: o espírito não espera que o tac chegue... - antecipa-o.  Ou seja, o processo de antecipação é um processo que se dá - em nosso espírito -  quando a natureza se repete; e nós acreditamos - temos a crença - de que aquela  repetição vai permanecer. Sempre que acreditamos que uma repetição vai  permanecer - antecipamos um de seus elementos. Neste caso - antecipamos o tac.  
 Quem antecipa não é a natureza - quem antecipa é o espírito! Então, quando  o espírito contempla a natureza e a natureza lhe oferece um processo de  repetição... - esse processo é infatigável! A natureza sempre repete [o mesmo  processo...] - e o espírito começa a produzir uma diferença naquilo: começa a  introduzir a retenção e a antecipação. 
 O que quer dizer isso?
 De tanto ouvir tic-tac, o espírito retém o tic, antecipa o tac e junta os  dois - no tic-tac. Isso porque - fora do espírito - o tic e o tac são dois  elementos separados: ou seja, quando aparece o tic; em seguida aparece o tac.  Mas o tic não pode re aparecer, se o tac não tiver des aparecido!... O que  implica em dizer que, o processo de repetição na natureza, pressupõe (Olha lá,  heim?) a noção de INSTANTES DESCONTÍNUOS. A natureza nos mostra isso. Ela nos  mostra o que se chama - "Os Instantes Descontínuos..."
 - O que são os Instantes Descontínuos?
 É a aparição de um elemento... e a des aparição desse elemento - para que  um outro elemento surja. Ou seja: os dois elementos jamais apareceriam ao mesmo  tempo na natureza! Isso se chama - descontinuidade dos instantes. O espírito  contempla essa descontinuidade dos instantes - [antecipa] um instante e retém o  [outro]. Na natureza, esses dois elementos estão separados; no espírito, eles se  juntam. No espírito, não existe mais um tic e um tac - porque o tic e o tac  formam uma pequena extensão. Na filosofia do tempo, de Bergson, esta "pequena  extensão" chama-se DURAÇÃO; ou seja - o espírito, que reteve e antecipou...,  reteve e antecipou esses dois elementos descontínuos produzidos pela natureza.  Esse "procedimento espiritual" é - simultaneamente - a INVENÇÃO DO TEMPO. 
 (Eu sei que foi muito difícil!...) 
 O que eu acabei de dizer pra vocês, é que, para que o tempo surja, ou  melhor: a condição para que surja o tempo - é que exista o espírito que  contempla.
 (Eu ainda não espero nenhum resultado dessa afirmação que eu fiz pra vocês.  Esses resultados, nós devemos obter na segunda aula!) 
 O que eu falei agora pra vocês, é que NA NATUREZA existiria um processo de  REPETIÇÃO: um processo de repetição descontínuo. O espírito contemplaria essa  repetição descontínua, juntaria os elementos que na natureza estão separados, e  ao juntar esses dois elementos, o espírito formaria uma pequena linha: uma  pequena extensão, ou seja - formaria uma DURAÇÃO. 
 Ou melhor: o tic aparece. Quando o tic des aparece, o tac aparece; quando o  tac desaparece, o tic aparece, (não é?) Então, o tic e o tac - cada um deles é  um presente que se dá na ausência do outro; ou seja: cada instante, quando  aparece, para que o outro instante apareça, ele tem que desaparecer. 
 Quando esses dois instantes se juntam no espírito, o instante anterior  passa a se chamar passado; e o instante posterior passa a se chamar futuro. O  tic - que é presente na natureza; e o tac - que é presente na natureza; no  espírito - tornam-se passado e futuro. Ou seja: o espírito - que contempla -  produz O TEMPO!
 (Ninguém se preocupe que, na próxima aula, eu vou voltar a isso  daqui!)
 - Como o espírito produz o tempo?
 Ele produz duas dimensões - o passado e o futuro. Esse momento, em  filosofia, é simultaneamente de uma dificuldade extremada... e a grandeza do  pensamento: é o pensamento perdendo os seus limites - e indo além deles - para  alcançar o impensado: o tempo e o corpo. 
 (Agora - para obter um pequeno resultado - nós vamos voltar para uma outra  maneira de pensar... que acompanha essa que está aqui.)
 Eu chamei a natureza de um processo de repetição. Mas ela é um processo de  repetição muito estranho - porque ela é um processo que aparece e desaparece  para que o outro apareça. Então, é como se a natureza fosse um permanente  piscar. Essa maneira de ser da natureza constituiria os instantes - um separado  do outro. Então, nós teríamos uma sucessão de instantes... e cada instante  estaria eternamente separado do outro instante. A presença do espírito seria o  que se chama - SÍNTESE.
 - O que quer dizer síntese?
 Síntese quer dizer - juntar aquilo que está separado. O espírito pratica  uma síntese, porque junta - dentro dele - os instantes que estão separados. E ao  juntar os dois instantes... - ele faz uma síntese; mas acontece que o espírito  não produziu nenhuma atividade. Ele fez essa síntese apenas por contemplar. Por  isso, essa síntese é chamada de síntese passiva.
 - O que quer dizer passivo?
 Passivo quer dizer - aquilo que não produz modificação no objeto  contemplado, ou seja: o espírito não produz nenhuma modificação na repetição da  natureza - mas ele próprio se modifica. Então - a repetição da natureza e a  diferença do espírito. 
 Voltando: eu disse contemplação; disse que o espírito contempla; e disse  que o espírito faz uma síntese. 
 Hume, o filósofo que eu estou citando, chama - orgulhosamente - essa  síntese de Espírito ou Imaginação Contraente. O espírito tem o poder de  contemplar os instantes separados na repetição da natureza..., contraí-los no  seu interior, e, ao fazer essa contração - dentro de si - ele gera o tempo. O  tempo emerge: o tempo emerge no espírito.
 (É um momento difícil... Claro, que é um momento difícil... porque,  subitamente, vocês saíram da cidade - dos movimentos da cidade - para cair  dentro de sínteses passivas e das contrações do espírito!...)
 Nós ficamos praticamente assustados. Mas, por quê? Porque - quando o  pensamento se associa com o corpo; ao pensar o corpo... - ele verifica que o  corpo secreta tempo: abandonamos definitivamente o senso comum! 
 Ou seja - tudo aquilo de que eu estou falando, é impossível de ser  compreendido pelo senso comum! Por quê? Porque são as experiências mais  possantes que o espírito humano pode fazer. Essas experiências, que eu estou  mostrando pra vocês, é a repetição da natureza - que seria a eternidade; e a  contemplação do espírito - que seria o nascimento do tempo.
 Esse nascimento do tempo - que evidentemente não ficou claro... que  evidentemente produziu uma dificuldade imensa, (não é?) - é difícil de  entender... Mas é exatamente esse nascimento do tempo que vai ser a maneira como  eu poderei explicar pra vocês o canto do tordo, o personagem rítmico, a paisagem  melódica, as atitudes e posturas do Cassavetes, a deformação do Francis Bacon, e  assim por diante. 
 Ou seja: o que faz o pensamento - sua única questão - é conquistar o  tempo.
 Parece uma coisa simplória..., mas não é, porque o modelo do organismo  predomina inteiramente sobre nós - e nós não podemos compreender o tempo  exatamente por causa do modelo que ele projeta sobre a gente. 
 A primeira aula é dificílima... - é dificílima! -...porque nós começamos a  fazer um contato, um agenciamento: cada um de nós se torna o intercessor do  outro - o olhar de vocês é intercessor pra mim, as minhas falas são  intercessoras pra vocês! Nós começamos a fazer uma combinação, que começa a  nascer num determinado período da aula - onde alguns começam a sentir maiores  facilidades, outros maiores dificuldades em entrar na questão levantada. 
 Claudio: Quanto tempo eu falei?
 Aluno: 45 minutos...
 Eu vou fazer o seguinte: eu vou falar mais vinte minutos, depois vocês  tomam um café, uma coisa qualquer... - porque essa aula pesa muito. Ela pesa! É  preciso ter uma certa pacificação...
 Al.: Claudio, a idéia de contemplação?... 
 Cl.: Não conseguiu?
 Al.: Ainda não!... 
 Cl.: Vamos tentar, então. 
 Al.: Partindo da semente da... 
 Cl.: É o seguinte: esse autor que eu citei - chama-se Samuel Butler - é  inteiramente desconhecido dentro do campo da filosofia. Na literatura, ele tem  um certo conhecimento... Butler é um pensador dessa tradição neo-platônica. E  ele diz o seguinte: você joga uma semente na lama: a semente cai na lama... Essa  lama é água, terra, luz e ar. Ou - quimicamente mais bem explicado - é fósforo,  é carbono, etc. E a semente está ali! Qual é o procedimento que essa semente tem  para se transformar numa rosa, sabendo-se que a matéria da qual ela vai se  servir, para que a rosa nasça, é a lama que a circunda? É essa a questão! Ou  seja: quando você encontra uma roseira, essa roseira se originou numa semente; e  essa semente retira da lama os componentes para produzir as suas rosas.
 Al.: A Contemplação dá uma idéia de passividade! 
 Cl.: Inteira passividade! Você não viu que, quando eu falei no espírito, eu  disse que ele era passivo?É exatamente isso: é uma contemplação passiva! A  dificuldade inicial que nós temos para entender isso, é que todas as tradições  psicológicas são de uma psicologia ativa. A psicologia não parou de rejeitar a  contemplação. Então, a dificuldade é exatamente essa. Mas se você pensar uma  coisa... - é muito simples! - você joga... uma semente de qualquer coisa na  terra... e ali vai brotar alguma coisa!...
 Al.: Não há uma interação?
 Cl.: Como, interação!? A terra cede seus elementos pra semente. 
 Al.: E a semente não faz nada?
 Cl.: Faz! Ela.. contrai! Da mesma maneira que esse espírito contraiu...  Depois você vai entender perfeitamente isso: o processo da semente é um processo  de contração. Ela contrai os elementos - e ao contrair esses elementos - ela  começa a gerar esse mundo lindíssimo que nós temos. Da mesma forma que um  pássaro canta para o sol - uma semente contempla a natureza. É o mesmo  procedimento!
 (Eu estou tentando mostrar pra vocês que o nascimento do tempo pressupõe o  espírito; - e se fundamenta na contemplação. Eu não quero nenhuma vitória  excepcional numa primeira aula!?... Evidente, que não! O meu procedimento nessa  aula é, inclusive, muito estratégico!) 
 Alº.: Quer dizer que o corpo histérico força o pensamento a pensar?
 Cl.: Força! 
 Alº.: O corpo orgânico também?
 Cl.: Não! Pelo contrário! O corpo orgânico se submete ao organismo; e o  órgão principal é a consciência. Ou seja: o corpo orgânico é todo governado pela  consciência. 
 Alº.: E a natureza humana?
 Cl.: A natureza humana é orgânica - e dominada pela consciência. É preciso  romper com o humanismo para chegar a essa posição que eu estou colocando. O  maior adversário dessa posição é, sem dúvida nenhuma, o humanismo; porque o  homem enquanto tal é orgânico e - como diz Nietzsche - a consciência é o órgão  mais jovem. O que eu estou mostrando pra vocês... é que o pensamento só pode  pensar se a consciência for paralisada - porque a consciência é um obstáculo  para o pensamento. 
 O homem projeta o organismo que ele é - projeta sua "pequena humanidade"  sobre a natureza... - e quer encontrar nela o espelho de si próprio: é o  NARCISISMO MATERIAL. O homem quer se rever por toda a natureza e, a tal ponto,  que nós vimos nascer, neste século, essa coisa notável, que foi a descoberta do  inconsciente... - para afinal o inconsciente ser barbaramente HUMANIZADO:  passamos a ter um inconsciente humano... 
 Eu vou tentar mostrar pra vocês que não é nada disso! O que nós temos que  [fazer] é produzir a libertação do pensamento, através das forças do corpo que  forçam o pensamento a pensar... O pensamento é forçado pelo corpo: pense! Mas  pense, o quê? Pense a mim! Pense a mim - o corpo. O pensamento pensar as  posturas e atitudes do corpo - e é nesse procedimento que nós ultrapassamos o  humanismo. 
 O que o M. citou... (não é?) - e eu acredito que a resposta foi precisa...  - porque se nós tomarmos a consciência como um órgão, a função da consciência é  - permanentemente - a mesma: servir ao organismo! Em termos nietzscheanos, a  consciência é uma força reativa. Em termos espinozistas, a consciência é uma  força conservativa. [Enquanto que] o pensamento é avassalador, é conquistador, é  criador. Ou seja, a única questão do pensamento é criar e inventar - não importa  como! 
 Então aí a gente teria - nitidamente - não uma dialética, não um confronto  do pensamento com a consciência, porque o pensamento - em momento nenhum - faz  confrontos. Quem faz confrontos é a consciência, que vive sob regime das  opiniões. O pensamento, não! Por isso, a questão de um pensador não é apresentar  opiniões - para serem debatidas; mas constituir problemas - para serem pensados.  Não haveria nem possibilidade de dizer dialética entre o pensamento e a  consciência... porque a oposição, a dialética - esses conceitos - eles pertencem  à consciência: não pertencem ao pensamento. 
 De uma outra maneira, para vocês entenderem... Vou citar até uma aluna  minha, que está aqui. No século XVI, se eu não me engano... - parece que é uma  loucura o que eu vou dizer, viu? No século XVI, a indústria têxtil americana  estava funcionando exacerbadamente; magnificamente. E ela produzia bordados. O  bordado são linhas que se põem sobre os tecidos... Ela produzia vestidos que  eram só bordados. Eram de uma beleza extraordinária. Mas chegou um momento em  que a indústria têxtil entra em crise... Quando isso ocorre, começa a  desaparecer o pano, surge o PATCHWORK. 
 Os patchworks são [feitos de] remendos... (certo?) Eu diria... - há uma  certa dificuldade!... -...que o bordado se origina no organismo... - e o  patchwork, no pensamento. 
 Numa outra linguagem, quando nós acompanharmos esse curso vocês vão ver,  que vai haver uma distinção - que eu vou fazer - entre espaço nômade e espaço  sedentário. O espaço sedentário é exatamente o espaço do organismo, que quer, a  todo tempo, a conservação. Quer tanto a conservação que inventou a vida depois  da morte. Vida orgânica, depois da morte. E de outro lado, o pensamento - cuja  questão é nomádica, a questão dele é - sempre - inventar e criar. 
 (Então, agora vocês vão tomar um café!)
 O procedimento desta aula se assemelha às atitudes e posturas - que forçam  o pensamento a pensar. Ou seja, o que eu objetivo nesta aula é fazer com que  vocês pensem - não importa o caminho que eu siga! Por exemplo... eu já recebi  uma observação magnífica, feita por E., onde ela encontrou uma semelhança entre  a semente contemplativa e os pássaros da primavera - sem dúvida nenhuma! 
 Esse cinema do Cassavetes, que eu chamei de cinema de "atitudes e posturas"  - ele secreta tempo. O que eu estou dizendo aqui? A obra de Deleuze sobre cinema  traz uma divisão definitiva: o cinema que não produz tempo e o cinema que produz  tempo. O Cassavetes estaria entre os cineastas do tempo. Mas por que eu estou  dizendo isso? Porque haveria um cineasta - que eu pediria demais que vocês  vissem - é o Joseph Losey. E o filme, que eu gostaria que vocês vissem, tem em  vídeo, é O Criado. Certo? Quer dizer, se vocês puderem... não digo já pra depois  de amanhã - isso vai ser demais, não é? Mas, vamos dizer, pra segunda-feira que  vem, já ter um Cassavetes e um Losey vistos, já é bastante para mim. Do  Cassavetes, Glória - que tem em qualquer vídeo. 
 Por exemplo: vejam a estratégia desta aula. O mecanismo desta aula, é como  se ela fosse quebrada. Ela produz um espaço assim rompido... e esse é meu  objetivo. 
 (fim da fita 1) 
 Fita 2 
 O Proust considera que a prática do artista é inicialmente um confronto que  o artista faz consigo próprio. É o sujeito artista buscando quebrar o domínio do  pessoal em nós: romper com a personalidade, romper com a pessoa, quebrar esses  esquemas - para poder produzir a obra de arte. 
 É muito semelhante a tudo o que eu passei pra vocês... - ainda que com  certa equivocidade... - quando eu falei no pássaro, quando eu falei no histérico  do Cassavetes, quando eu falei no figural do Francis Bacon. O que eu vinha  mostrando a vocês é que - por exemplo, Proust; por exemplo, Cassavetes; por  exemplo, Olivier Messiaen - todos eles sabem que qualquer homem que queira fazer  uma obra arte, que queira produzir uma obra filosófica ou mesmo produzir uma  obra científica, o confronto fundamental que ele faz é consigo próprio. Um  confronto consigo mesmo. Esse confronto consigo mesmo é um confronto terrível,  um confronto dificílimo, mas que seria a única maneira, diz o Proust, que  poderia surgir o sujeito artista. Então, o artista, o histérico, o tordo - esses  se marcariam pelo deslocamento que eles fariam em relação à vida pessoal. É o  rompimento com a estrutura psicológica, rompimento com a história pessoal,  rompimento com o passado. Outra vez: rompimento com a história pessoal,  rompimento com o passado. 
 - Por que eu estou insistindo nisso? Porque esse filme do Cassavetes - o  Glória - é exatamente isso: exatamente uma personagem (a Glória) e outra  personagem (o garotinho chamado Phil), e o que eles fazem no filme é romper com  a história pessoal, romper com todo o passado deles, e - a partir daquele  rompimento - através das atitudes e das posturas - eles produzem história; ou  seja: as atitudes e as posturas não se originam numa história pessoal, as  atitudes e as posturas rompem com a história pessoal - e começam a gerar mundos  novos. 
 Essa citação do Proust e essa associação do Proust com o Cassavetes é pra  vocês poderem arrancar desse filme, vocês vão verificar que tanto a Glória -  personagem-título - sobretudo ela, vai romper com sua história pessoal para  poder gerar as atitudes e as posturas que são um conjunto de gestus. Isso, que  eu estou dizendo, marca o grande inimigo do pensamento, do corpo e do tempo -  que é o sujeito pessoal, o sujeito psicológico, a história pessoal. É exatamente  [contra] essa figura que Proust - ao longo de toda a obra dele - faz uma guerra  sem quartel. Romper com tudo aquilo que gera, em nós, o medo da morte - no  sentido de que o medo da morte é aquilo que produz Deus; e aquilo que produz  Deus nos paralisa. E ao nos paralisar, nos impediria de produzir uma obra de  arte. 
 Então, é de uma radicalidade excessiva, é como se de repente o pensamento  estivesse afirmando que - a única saída que ele tem - seria o ateísmo radical; e  esse ateísmo radical revelaria para nós outros mundos - mundos que não  apareceriam se não houvesse o sujeito artista para produzí-los. A arte - que  seria conquistada através do pensamento; e de um pensamento radical - seria a  produção do que Proust chama, do que Leibniz chama de MUNDOS POSSÍVEIS. Esses  mundos possíveis pertenceriam ao nosso espírito - fariam parte do nosso espírito  e não da nossa história pessoal. A função do pensamento seria extrair, colocar  no mundo esses mundos possíveis. Proust diz isso de uma maneira radical, e o  motivo pelo qual eu estou levando esta aula para esse caminho, é para fazer um  acordo ou um desacordo entre nós: é que - se não houvesse o artista - nós  seríamos forçados a viver num só mundo: sempre no mesmo mundo. Quem produz os  novos mundos, os novos afetos, as novas formas de vida, é exatamente a arte.  
 Então, o que se torna primeiro para a vida de cada um de nós, é a liberação  das forças da psicologia, para o exercício dessa liberdade do pensamento. Essa  prática não precisa ser feita por um grande filósofo ou por um grande artista.  Ela pode ser feita por qualquer um de nós: é fazer do pensamento a busca de  novos mundos; e, a produção desses novos mundos, gerando o que é inteiramente  impossível fora da arte - a comunicação entre as nossas almas. 
 O que eu estou dizendo pra vocês, é que nós todos estaríamos encerrados num  solipsismo assustador, nós todos estaríamos encerrados na mônada que nós somos -  sem portas e sem janelas - e sem possibilidades de comunicação de um homem com  outro homem. Isso não seria alcançado, diz Proust, nem pela amizade nem pelo  amor... Ele vai a extremos, quando rompe com a possibilidade de o amor e da  amizade nos dar as composições com outros homens. Isso só aconteceria na obra de  arte. Na obra de arte haveria como que a comunhão das almas - comunhão essa que  não seria possível nem na amizade, nem no amor. 
 - Por que, nesse momento, eu citei Proust? Eu abandonei todos os meus  interesses teóricos da primeira parte da aula, para usar Proust como instrumento  estratégico pra vocês. Para que vocês percebam, que um pensador - Proust -  altamente contemplativo - que fez da obra dele aparentemente um trabalho de  memória, um trabalho de recordação, é simultaneamente de uma agressividade  assustadora, querendo romper com os quadros da psicologia, que impediriam a  nossa liberdade.
 Então, a minha aula é simultaneamente teórica - como eu mostrei na primeira  parte pra vocês; mas passa também um quadro existencial e figuras práticas, no  sentido de que ouvir a minha aula como se fosse alguma coisa que pudesse ser  ouvida... e deixar de lado - não teria o menor sentido. O que a minha aula  fundamentalmente objetiva - é a modificação das subjetividades. É nós sairmos  desse modelo de dominação que existe sobre nós, desde que nós nascemos até que  nós morremos - que é uma subjetividade material - toda constituída em termos de  hábitos e sentimentos; para produzir uma subjetividade espiritual - capaz de  lidar com o pensamento, com o corpo e com o tempo.
 Eu acho que aqui não há nem um tema de dificuldade... Essa exposição, que  eu estou fazendo pra vocês, é pra mostrar que não pertence a homens excepcionais  essa potência de fazer da arte o caminho da sua vida. Ou seja - quando lemos a  obra de Deleuze, ela - literalmente - não pode ser compreendida, se nós não  fizermos uma modificação [nas nossas vidas]. Ou seja: se nós não fizermos uma  modificação, nós não a compreendemos. Não é que ela queria modificar alguém - é  porque o ato de passagem dela, imediatamente produz uma imensa modificação, como  vocês vão passar a assistir na próxima aula.
 Eu considero a primeira aula como uma aula impossível - uma aula impossível  de ser compreendida - porque todo um jargão, todo um modo de me expressar, que  vocês nunca ouviram - que a maioria nunca ouviu... - citando pássaros, sementes,  contemplações, espíritos, repetições, que parece que entramos num grande  delírio... Muitos podem pensar assim - entramos num grande delírio! Mas não é  exatamente isso. O meu procedimento - ao dar uma aula - visa fazer, daquele que  está estudando comigo, torná-lo uma espécie de heterônimo meu, fazer dele um  intercessor. Ou seja: fazer com que ele exerça os procedimentos dele - mas  seguindo essa linha que eu passo pra vocês. 
 A história da arte, com muito mais potência que a própria história da  filosofia, marca a distinção de uma arte clássica - que ela chama de arte  orgânica; e de uma arte gótica - que ela chama de potência histérica. Se nós  começarmos a entender os procedimentos de conflito entre o instinto e a  inteligência - entre as nossas forças instintivas e as nossas forças  intelectuais - nós vamos começar a verificar que a arte não é apenas um  procedimento de entretenimento. Ela é uma luta, um confronto no interior de cada  um de nós, e os objetivos dela são sempre os mesmos: a liberdade. A história da  arte nos revela que - permanentemente - houve um confronto entre o instinto e a  inteligência. O instinto predominou na arte primitiva ao ponto de produzir uma  arte inteiramente angustiada, uma arte sofrida, uma arte dilacerada, uma arte  instintiva, em que o homem se julgava uma metade separada da natureza... e, por  causa disso, nasceria uma arte profundamente angustiada. 
 Quando esse tipo de arte aparece entre os gregos... - e os gregos são  aqueles que superaram os instintos e elevaram o intelecto, elevaram a razão  -...nasce o que se chama a arte orgânica - a arte da felicidade; uma arte em que  o homem e a natureza fazem uma harmonia - porque o homem é dotado de razão e a  natureza de racionalidade. Então, a natureza e o homem formam um bloco só - e é  nessa arte, nesse momento, que nasce a arte que eu chamei de arte orgânica - uma  arte em que o homem projeta o seu organismo sobre a natureza. 
 A arte gótica - que vai romper com essa arte orgânica - é como se fosse o  retorno das forças instintivas. As forças do instinto retornam, mas já não  retornam como eram no primitivo; elas retornam para produzir uma nova arte, uma  nova geometria, uma nova figuração, ou seja - a arte gótica é de tal forma  criativa, que ela investe no Caos, para do Caos gerar novas linhas. À diferença  da arte grega, que é uma arte representativa - que supõe um modelo - um modelo  da natureza, que deve ser copiado; a arte gótica é uma arte que se supõe lidar  com o Caos; e ao lidar com o Caos, o que ela pretende é produzir no Caos novas  formas. Então, esse exemplo que eu dei agora, da diferença da arte orgânica para  a arte gótica - a arte gótica, sendo a arte histérica - é que é uma arte que  lida com o Caos e uma arte que supõe que lida com um universo inteiramente  formado. 
 O que o gótico traz de original e magnífico é a liberação do Caos. Essa  posição é que o pensamento, quando se produz, a sua matéria não é uma matéria  organizada e harmônica. O que o pensamento lida é com o Caos. A matéria do  pensamento é o Caos. Nós, os humanos, procuramos, ao longo das nossas vidas,  encobrir [essa questão através de] um jogo incessante de opiniões, onde  procuramos nos proteger das forças insaciáveis desse Caos. O que Deleuze  comunicou pra nós, é que o pensamento tem afinidade com o Caos; e que as razões  principais das nossas infelicidades não são a relação do pensamento com o Caos,  mas a relação da opinião com as harmonias. 
 O que eu disse para vocês, é que não é só a produção do pensamento - o  pensamento sendo forçado a pensar o corpo - mas é o pensamento nos dirigindo  para um "sem volta", para um "sempre", nos dirigindo para o Caos. O Caos que  levaria o homem a produzir cidadelas, guarda-chuvas, proteções, é, segundo a  obra de Deleuze, a única linha possível de salvação para a vida. É nós nos  confrontamos com o Caos e produzimos, nele, um ritmo e uma melodia. 
 Esse final de aula, em que eu citei o Proust, quando Proust fala no sujeito  artista, e no confronto que o sujeito artista vai fazer com o sujeito  psicológico, e esse confronto vai se passar sempre em nossa vida; e de outro  lado, o pensamento quando ele se confronta com o Caos. Se, de outro lado, o  nosso pensamento não se confrontasse com o Caos, e do Caos arrancasse novos  mundos, nós estaríamos sempre prisioneiros da mesma forma de viver. Então, tudo  aquilo que dizem para nós, que o mundo orgânico nos diz - que só existe um mundo  - mundo esse que precisa ser reformado e restaurado, se origina nos ideais  orgânicos. Mas nós não temos que restaurar e reformar esse mundo: o que nós  temos que fazer é inventar outros. 
 Ou seja, o processo da associação da vida, do corpo e do pensamento é um  processo que exalta a nossa própria existência. Exalta, no sentido de que nós  saímos do nada de vontade, saímos das tolices, que geralmente governam a nossa  existência, para compreender que essa passagem que nós fazemos aqui é um  processo de criação permanente. 
 Eu agora vou – como um processo só da primeira aula, na segunda e na  terceira eu não farei isso - eu abro pra vocês me fazerem perguntas.
 Alº.: Claudio, aquilo em relação ao tempo, que você falou no final da  primeira parte, esse tempo produzido seria o tempo cristalino?
 Cl.: Seria o tempo cristalino. A sua pergunta de tempo cristalino, é um  conceito deleuzeano, é um conceito que vem num livro dele chamado Imagem Tempo,  é o cristal do tempo, onde ele opõe tempo cristalino ao tempo orgânico. Sem  dúvida nenhuma, seria o tempo cristalino, eu não pude mostrar isso hoje, na  próxima aula eu vou mostrar.
 Alª.: Na disposição de trabalhar e ver trabalhados, vamos dizer, esses  conceitos... não seria que nós estaríamos sempre empenhados em não refazer, mas  repetir --? -- quer dizer, todas as conquistas que se possa ter, em determinadas  situações, elas não deixam de fazer valer a necessidade de entrar novamente  nessa luta?
 Cl.: Eu não diria luta. É um processo expressivo, permanente. Ainda não  ficou claro, na minha exposição, mas nós teríamos como que duas subjetividades.  Uma subjetividade psicológica - que está o tempo todo marcando seus sentimentos,  seu organicismo; e uma subjetividade propriamente espiritual - de onde sairiam  os processos de pensamento; ou seja: uma subjetividade que expressaria os mundos  possíveis. No procedimento que eu expliquei sobre Proust ou mesmo Cassavetes, ou  Godard, ou que importa quem seja... - são as mesmas coisas que eles estão  pensando. 
 Alª.: O que eu queria colocar é que você não pode pensar em fazer um acervo  de contemplação, você está entendendo? Fazer um arquivo de contemplação... A  contemplação é sempre novamente aquele desconhecido que impõe a você... se você  contempla!? É sempre "de novo"! A experiência já feita, ela retornará a ser  necessária...
 Cl.: Essa experiência da contemplação recebe, inclusive, uma nomenclatura  diferente. Porque o campo experimental, que nós temos, é a experiência do mundo  que nos é dado. Essa experiência da contemplação chama-se experimentação  fantástica - experimentação transcendental. Você vai como que penetrar em novos  mundos. Na próxima aula, nós já vamos entrar nisso! Essa aula de hoje foi uma  aula inteiramente inicial, onde eu apenas trabalhei de uma maneira que vocês  pudessem ouvir, com certa tranqüilidade, aquilo que eu estava dizendo... - mas  devido à velocidade do nosso curso, quarta-feira já é um processo de entrada  mesmo dentro do campo da filosofia, sem retorno! 
 Então, o que eu peço pra vocês, a única coisa que eu peço pra vocês, é um  filme - um Losey, um Cassavetes, pode ser um Godard, também, no lugar do  Cassavetes... Se vocês quiserem olhar, nessas revistas de pintura, o Egon  Schiele, o Francis Bacon, o Lucien Freud. Esses - entre aspas - figurativos...,  tá? Em questão de música, uma música eletrônica - bastaria um Stockhausen...  porque, em matéria de arte, são os elementos que nós vamos trabalhar na próxima  aula.
 Eu vou tentar ajudar um pouco fazendo projeções. Enquanto eu estou dando a  aula, as projeções serão feitas... Eu não estarei falando sobre aquilo, mas  vocês estarão observando para "preencher" [os dados], (não é?) devido à pequena  quantidade de tempo que nós temos.
 Alª.: Você já ouviu aquela... Monk? 
 Cl.: Meredith? A Meredith Monk é minha namorada há muitos anos! 
 (risos...) 
 Al.º Eu tenho a impressão de que o pensamento não tem nenhuma função  utilitária... 
 Cl.: Nenhuma!... 
 Alº.: Eu vou pensar no que esta aula vai ser útil para mim, para o meu  trabalho! 
 Cl.: Nada! 
 Al.: No entanto, a gente vai continuar a ouvir, para abrir as portas...  
 Cl.: Do paraíso???
 Alº.: Do amor... do dinheiro...
 Cl.: O que nós vamos fazer, em função dele, é uma distinção muito grave  entre intelecto e pensamento. É uma distinção que nós vamos fazer! A noção de  intelecto e a noção de pensamento não se recobrem. Ou melhor, de outra maneira:  isso é um modelo do Nietzsche, ouviu? A razão é um instrumento propriamente  platônico. O Nietzsche não identifica razão e pensamento. A razão é o pensamento  a serviço do orgânico. Acho que já dá para entender o que eu disse... 
 Alº.:Ah, dá! 
 Cl.: Perfeitamente!A razão é filha do orgânico. Por isso, a razão trabalha  com dois elementos - conhecimento e moral. Pronto! Dê-me conhecimento, dê-me  moral! Dê-me um fio de Ariana! É isso que a razão quer: ela quer conhecer e quer  moralizar. Por isso o Nietzsche diz: "a razão é o pensamento governado pelo  organismo". Acho que eu respondi a vocês, certo?
 Alª.: Claudio, você falou que a obra de arte é única coisa que traz a  comunicação entre as almas. (Cl.: Isso!) Al.: E a filosofia?
 Cl.: Olha, classicamente, a filosofia quando nasceu, ela nasceu em função  do amor. O filósofo é aquele que ama a sabedoria. Como existiam, na Grécia,  diversos amantes da sabedoria, formou-se um bando de filósofos - que eram os  amigos, os homens da philia. E esses homens eram - simultaneamente - rivais.  Logo, eles não se comunicavam: eles tinham uma rivalidade entre eles. O que eu  disse, é que a filosofia, segundo o seu modelo clássico - o modelo do intelecto  e o modelo da rivalidade - ela não produz a possibilidade da intersubjetividade,  nem da comunicação. Pelo contrário! O que eu estou querendo mostrar, é que é  preciso romper com os quadros clássicos das nossas faculdades - liberar o  pensamento - e essa figura complexa, (não é?) da comunicação entre as almas -  que o amor parece não conseguir realizar, pela sua própria inconstância, pelo  próprio fugidio, que é o amor... O amor assim, mais ou menos, segundo os versos  do Bizet - ele foge, sempre, não é? 
 Essa questão que o Proust levantou acerca do amor e da amizade tem uma  gravidade imensa! Porque todos nós - ao longo das nossas vidas - o que nós  exaltamos é a amizade e o amor. E Proust radicaliza: os amigos estão sempre de  acordo uns com os outros... e os amantes estão permanentemente em inconstância.  
 Olha, há uma saída para o amor... amar a inconstância. É a saída...
 (risos...)
 Cl.: Eu sei que é grave, isso que eu estou falando, (não é?) Eu  aconselharia, aqui, um livro que saiu em português - é sobre Proust - de um  autor chamado Grimaldi - O ciúme. Leiam esse texto: é muito bonito! É um texto  sobre Proust, mas só a questão do ciúme. Porque o ciúme é devorador, (não é?) O  ciúme é devorador! O Proust chega ao extremo! Ele diz: o ciúme não se origina no  amor. O amor é uma produção do ciúme. O ciúme inventa o amor... - para ele poder  passar. 
 Quando nós nos deparamos com esse tipo de pensamento, é como se nós nos  entrássemos em linhas tão diferentes do senso comum, que elas nos assustam, elas  nos assustam! 
 Então, esse livro do Grimaldi vai ser magnífico pra vocês! 
    
  Aula de 4/01/1995
primeira aula do Curso de Verão
primeira aula do Curso de Verão
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  IMAGEM  foto de Micheline Torres no México, julho  09

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