Masp volta a exibir obra-prima do século XVII
3 de setembro de 2009
Por Giovana Pastore
A partir da próxima quarta-feira, o Museu de Arte de São Paulo volta a exibir Himeneu Travestido Assistindo a uma Dança em Honra a Príapo, pintura do artista francês Nicolas Poussin (1594-1665). O visitante que comparecer ao Masp, contudo, poderá ver cores a que talvez apenas os homens do século XVII testemunharam.
Após oito meses de restauro, a grande tela - são 3,72 m de comprimento e 1,66 m de altura - volta a ser uma das principais peças do acervo do museu paulistano. A restautação é parte das atividades do Ano da França no Brasil e ficou a cargo da brasileira Regina Costa Pinto Moreira, radicada na França e profissional do Museu do Louvre, de Paris.
O trabalho de recuperação - patrocinado pela empresa francesa CNP Assurances e sua subsidiária no Brasil, a Caixa Seguros, e orçada em 150.000 euros - poderá ser visto em detalhes no museu. Além da obra, estarão expostos detalhes do restauro, como fotografias que compuseram o dossiê que serviu de embasamento científico ao trabalho e também vídeos. O Sesc também prepara um documentário sobre o processo.
Os críticos garantem que a importância do pintor e da obra justificam o investimento - e também a visita ao museu. "Esse trabalho de conservação, de manutenção, eu diria até de resgate da obra, é muito importante",afirma Elza Ajzenberg, professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Segundo o historiador e crítico da arte Rodrigo Naves, Poussin pode ser considerado um fundador da pintura francesa. "Ele é para a França o que Leonardo Da Vinci é para Itália", explica.
Nascido na França, Poussin realizou boa parte de seus trabalhos em Roma, com os olhos voltados para a cultura greco-romana. As pinturas pelas quais se tornou célebre tratam de temas mitológicos, como a que está no Masp, que retrata um ritual em homenagem ao deus da fertilidade, Príapo. O quadro pertenceu ao rei espanhol Filipe IV e, após as guerras napoleônicas do século XIX, passou pelas mãos de vários colecionadores privados até ser comprado pela galeria de Georges Wildenstein, que o vendeu ao brasileiro Assis Chateubriand, fundador do Masp, em 1953.
A artista - Escalada para recuperar a pintura, a restauradora Regina Costa Pinto Moreira é hoje uma estrela de primeira grandeza no universo da conservação da arte francesa. No currículo, ela acumula a recuperação de obras de gigantes da arte mundial como Goya e Manet. Formada na Espanha, com aperfeiçoamentos no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa e no Instituto Real do Patrimônio Artístico de Bruxelas, ela entrou para o Louvre por concurso, em 1973. Não saiu mais de lá.
O longo e trabalhoso processo de restauração inclui ainda uma curiosidade: encoberto sob camadas de tinta, estava pintada a figura do pênis ereto da figura mitológica Príapo. A camada, chamada de "repinte de pudor", fora acrescentada por volta do século XVIII: portanto, não existia no original e não atendia à vontade do artista.
"A intenção do restaurador é deixar a obra o mais próximo possível da intenção do artista, removendo as intervenções e repinturas da obra. O repinte sobre o falo era uma delas e foi removido", esclarece Karen Barbosa, restauradora do Masp e coordenadora do projeto. A descoberta não supreeendeu os especialistas. "O Príapo é uma figura ligada à fertilidade e sua representação normalmente vem com o pênis bem em evidência. Os gregos e romanos valorizavam muito o falo e a sexualidade. O fato de Himeneu estar vestido de mulher também é comum, isso era uma constante no teatro grego", conta Elza Ajzenberg.
A brasileira que veio do Louvre e 'salvou' Poussin
3 de setembro de 2009
Por Giovana Pastore
Há dez anos o Masp planeja a restauração da pintura Himeneu Travestido Assistindo a uma Dança em Honra a Príapo, realizada pelo pintor francês Nicolas Poussin na primeira metade do século XVII. Desde que a ideia surgiu, a baiana Regina da Costa Pinto Moreira foi o único nome cogitado para realizar o trabalho. "Ela é considerada uma das melhores restauradoras da França. É ela quem coloca a mão nos Leonardos do Louvre", explica Karen Barbosa, restauradora do museu paulistano, referindo-se ao mestre do Renascimento Leonardo Da Vinci. Regina já tocou - e salvou - trabalhos de outros ícones da história da arte, como os renascentistas italianos Rafael e Ticiano e os impressionistas franceses Monet e Manet. Na entrevista a seguir, a restauradora fala de seu trabalho e da emoção de participar da conservação do patrimônio brasileiro.
A senhora teve de abrir mão de muitos projetos na França para vir ao Brasil restaurar a pintura de Poussin. Por que decidiu vir?
À parte a grande importância do quadro, foi por uma razão sentimental. Eu sou brasileira e trabalho no Louvre, então vir para o Brasil restaurar um quadro de Poussin para o Masp foi uma coincidência muito feliz. Eu realmente cancelei muitos projetos, abri mão de muita coisa para poder estar aqui, mas fiz isso porque o projeto me entusiasmou.
Em que estado estava a obra?
O quadro estava muito danificado. Ele tinha rasgos, a pintura estava desgastada. O historiador francês Jacques Thuillier chegou a dizer que era difícil examinar o quadro porque dois terços dele estavam repintados.
Houve alguma particularidade nessa restauração?
Não. Exceto pelo falo de Príapo, que descobrimos sob alguns repintes. Essa foi uma revelação interessante, mas não surpreendeente, afinal Príapo, deus da fertilidade, sempre foi representado com o falo em ereção.
Quem teria coberto o falo?
Sabemos que o quadro ficou até pelo menos 1811 na Espanha e, como há um desenho do século XVIII no qual Príapo já aparece com o sexo escondido, é muito provável que o "repinte de pudor" tenha sido feito na própria corte espanhola.
Houve alguma outra descoberta durante o restauro?
Eu percebi modificações na indumentária do Himeneu. A sua camisa, por exemplo, não era vermelha no original, mas branca.
A senhora já restaurou outras obras de Poussin?
Sim. Eu restaurei Os Instrumentos de Música e A Visão de Santa Maria Romana, ambos do Louvre, e A Tempestade, do Museu de Belas Artes de Rouen.
Qual a importância do trabalho de Poussin?
Poussin é um grande mestre. Na escola francesa, ele tem um lugar muito privilegiado.
A senhora ficou satisfeita com o resultado do trabalho?
Fiquei. A satisfação de ver a obra mais próxima do original é enorme. E ela não é só minha, porque a obra é feita para o deleite do espectador. O fato de eu ter realizado esse trabalho, de tocar na obra, foi uma grande alegria. Além disso, agora a obra está consolidada: os repintes que a descaracterizavam foram retirados e as lacunas, que atrapalhavam a leitura das formas, preenchidas.
A senhora se sente um pouco autora das obras que restaura?
Não, absolutamente. Não devo, nem posso. Eu estou apenas a serviço do pintor. Meu papel é interpretar a obra, estudá-la, compreendê-la e só. Devo interferir o mínimo possível.
A sua restauração tem prazo de validade?
Eu acredito que não, porque empreguei os melhores materiais, que são muito estáveis e cuja aplicação pode ser revertida. Tudo que usamos, inclusive os solventes, vieram da França.
A senhora acredita que seu trabalho abrirá um precedente para outras restaurações de obras brasileiras?
Seria ótimo se isso acontecesse.