Em enquete promovida pelo portal do 'Estadão',  leitores dizem que sim; para escritores, no entanto, não importa a resposta  
 João Luiz Sampaio  
 E, afinal, Capitu traiu Bentinho? Em Dom Casmurro,  Machado de Assis optou pela dúvida. E desde então leitores de diversas gerações  se perguntam: o ciúme de Bentinho era mesmo justificado? Ezequiel era de fato  filho de Escobar, fruto de uma aventura extraconjugal de sua mulher? Na semana  passada, o Cultura deu início à publicação da seção Meu Machado de Assis, em que  personalidades do mundo cultural darão mensalmente depoimentos sobre sua relação  com a obra do escritor, de quem se lembra este ano o centenário de morte. Em seu  texto, a escritora Lygia Fagundes Telles relembrou a leitura de Dom Casmurro, a  confecção do roteiro do filme Capitu, nele inspirado, e a dúvida que a persegue  desde então: Capitu traiu Bentinho?
 De domingo até quinta-feira, o portal do Estadão  fez a pergunta aos internautas. Ao todo, 1.796 pessoas participaram da enquete -  50% acreditam que, sim, Capitu traiu Bentinho; 32% afirmaram que não; e, 18%,  como Lygia, responderam que não sabem. A escritora se diverte com a enquete e  arrisca uma interpretação para o resultado. 'Acho que há um liberalismo maior  por parte das pessoas; em outras épocas, dificilmente tanta gente aceitaria  abertamente a traição de uma mulher', diz. Já o escritor Moacyr Scliar  relativiza os resultados. 'Aparentemente a maioria acha que sim, que Capitu  traiu Bentinho; mas é metade das pessoas. A outra metade se divide entre o 'não'  e o 'não sei'. Ou seja, o resultado é mais equilibrado do que parece', diz. Mas,  e ele, o que acha? 'Bem, acho que Capitu não traiu.'
 Já para o crítico Ronaldo Bressane , 'ao pé da  letra morta do romance, é claro que o Bentinho levou chifre' - afinal, o  Ezequiel é a cara do Escobar. Mas ele mesmo acrescenta: 'Temos a perspectiva do  corno, e só. Conheço muito caso de pseudocorno, nego que vê chifre na própria  cabeça.' No fim das contas, diz Bressane, 'voto que todos tenham culpa no  cartório'. Falando em culpa, o escritor Fabrício Carpinejar carrega uma desde a  infância: 'Eu participei de um júri na escola sobre Dom Casmurro. Era o advogado  de defesa - e Capitu foi condenada.' E hoje? Para ele, a leitura sempre gira  entre duas hipóteses: Bentinho era paranóico ou Capitu realmente foi infiel.  'Acredito, agora, que Bentinho era louco assim como Capitu o traiu. Machado  criou a dúvida usando duas certezas.'
 Há, no entanto, aqueles que não se interessam por  uma resposta definitiva. 'Quem não sabe se Capitu traiu o marido, como eu, e nem  se interessa por isso, simplesmente está curtindo a genial trama de Machado, que  deve ter se divertido muito plantando essa dúvida na cabeça da burguesia  carioca', diz o compositor Gilberto Mendes. O escritor Nelson de Oliveira  concorda. 'Na coletânea Dinorá, Dalton Trevisan publicou um artigo sobre essa  espinhosa questão. Discordo totalmente de sua opinião. Para ele, Capitu traiu.  Na opinião de muita gente, de acordo com a enquete, Capitu não traiu. Na minha  opinião, o romance só vale a pena ser lido, comentado, estudado, indicado,  reeditado, ou seja, canonizado, se a balança permanecer imóvel', diz. Com a  palavra, a psicanalista Maria Rita Kehl: 'Minha resposta vai na terceira coluna,  dos que disseram 'não sei'. Aliás, não sei e não quero saber. Afinal, Machado  escolheu escrever seu Dom Casmurro do ponto de vista de Bentinho de modo a  conduzir o leitor por um caminho tão incerto quanto o do protagonista. O tema de  Dom Casmurro, a meu ver, não é uma investigação sobre a infidelidade conjugal, é  uma observação muito aguda sobre a cegueira masculina a respeito da sexualidade  feminina.'
 Também em defesa da dúvida partem as professoras  Leyla Perrone-Moisés e Leda Tenório da Motta. 'O que faz do livro uma obra  fascinante é a dúvida. A ficção não obedece à lógica do sim ou não, mas permite  a lógica do sim e não. Só na ficção verdades conflitantes podem coexistir,  lembrando-nos a complexidade do ser humano ', diz Leyla. 'A esse tribunal  ideológico escapam as metáforas machadianas, por exemplo, o 'riso azul claro' do  Rubião, o herói de Quincas Borba, quando ele entra em surto. Eu nunca vi nada  mais forte nem mais surpreendente para se dizer a loucura... e nunca vi ninguém  mencionar isso!', acrescenta Leda.
 E, como ficamos? De volta a Moacyr Scliar. 'Para  ter certeza, seria bom perguntar ao Machado. Infelizmente, ele não tem vindo às  reuniões da ABL. Em algum lugar o bruxo deve estar rindo sozinho.' 
 ESTADO de SP, 03 fev  2008
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