Rio, 17 de setembro de  1854
 Estamos na primavera, dizem os folhetins dos  jornais, e a folhinha de Laemmert, que é autoridade nesta matéria. Não se pode  por conseguinte admitir a menor dúvida a respeito. A poeira, o calor, as  trovoadas, os casamentos e as moléstias, tudo anuncia que entramos na quadra  feiticeira dos brincos e dos amores.
 Que importa que o sol esteja de icterícia, que a  Charton enrouqueça, que as noites sejam frias e úmidas, que todo o mundo ande de  pigarro? Isto não quer dizer nada. Estamos na primavera. Os deputados, aves de  arribação do tempo do inverno, bateram a linda plumagem; a Sibéria fechou-se por  este ano, os buquês de baile vão tomando proporções gigantescas, as grinaldas  das moças do tom são perfeitas jardineiras, a Casaloni recebe uma dúzia de  ramalhetes por noite, e finalmente os anúncios de salsaparrilha de Sands e de  Bristol começam a reproduzir-se com um crescendo animador.
 Come, gentil spring! Vem, gentil quadra dos  prazeres! Vem encher-nos os olhos de pó! Vem amarrotar-nos os colarinhos da  camisa, e reduzir-nos à agradável condição de um vaso de filtrar água. Tu és a  estação das flores, o mimo da natureza! Vem perfumar-nos com as exalações  tépidas e fragrantes da Rua do Rosário, da Praia de Santa Luzia, e de todas as  praias em geral!
 Doce alívio dos velhos reumáticos, esperança  consoladora dos médicos e dos boticários, sonho dourado dos proprietários das  casinhas dos arrabaldes! Os sorveteiros, os vendedores de limonadas e  ventarolas, os donos dos hotéis de Petrópolis, os banhos, os ônibus, as gôndolas  e as barracas, te esperam com a ansiedade, e de suspirar por ti quase estão  ficando tísicos (da bolsa).
 Esta semana já começamos a sentir os salutares  efeitos de tua benéfica influência! Vimos uma estrela do belo céu da Itália  eclipsada por uma moeda de dois vinténs, e tivemos a agradável surpresa de ouvir  o 1º ato do Trovatore e um epeech da polícia, tudo de graça.
 Alguns mal intencionados pretendem que a noite não  foi tão gratuita como se diz; mas deixai-os falar; eu, que lá estive, posso  afiançar-vos que o espetáculo foi todo de graça, como ides ver,
 A autoridade policial depois de participar que  ficava suspensa a representação e que os bilhetes estavam garantidos, sendo por  conseguinte aquela noite de graça, como esta notícia excitasse algum rumor,  declarou formalmente, e com toda a razão, que se acomodassem, porque a polícia,  quando tratava de cumprir o seu dever, não era para graças.
 Os namorados que tiveram duas noites de namoro pelo  custo de uma, os donos de cocheira que ganharam o aluguel por metade do serviço,  o boleeiro que empolgou a sua gorjeta sem contar as estrelas até a madrugada,  aqueles que lá não foram, não só riram-se de graça, como acharam nisto uma graça  extraordinária.
 Muito olhar suplicante vi eu nos últimos momentos,  humilhando-se diante de um rostozinho orgulhoso e ofendido, clamar com toda a  eloqüência do silêncio: grazia! grazia! É preciso advertir que o olhar estava no  Teatro Provisório, e por isso não se deve admirar que falasse italiano; além de  que, o olhar é poliglota e sabe todas as línguas melhor do que qualquer  diplomata.
 Finalmente, para completar a graça deste  divertimento, as graças com os seus alvos vestidinhos brancos se reclinavam  sobre a balaustrada dos camarotes, cheias de curiosidade, para verem o desfecho  da comédia. E a este respeito lembra-me uma reflexão que fiz a tempos, e da qual  não vos quero privar, porque é curiosa.
 Os gregos, como gente prudente e cautelosa,  inventaram unicamente três graças, e consta que viveram sempre muito bem com  elas. Nós, de mal avisados que somos, queremos ter em todos os divertimentos,  nos bailes, nos teatros e nos passeios uma porção delas, sem refletir que, logo  que se ajuntarem muitas, podem formar necessariamente um grupo de dez  graças.
 Maldito calembur! Não vão já pensar que pretendo  que as graças tenham sido a causa de tudo isto, nem também que todo aquele  desapontamento fosse produzido por alguma graça da Charton. A prima-dona estava  realmente doente, e, aqui para nós, suspeito muito os meus colegas folhetinistas  de serem a causa daquela súbita indisposição com o formidável terceto de elogios  que entoaram domingo passado. Lembrem-se que os elogios e os aplausos comovem  extraordinariamente um artista. Ainda ontem vi como ficaram fora de si as  tímidas coristas, unicamente porque lhe deram duas ou três palmas!
 Em toda esta noite, porém, o que houve de mais  interessante foi o fato que vou contar-vos. Um velho dilettante do meu  conhecimento, ainda do tempo do magister dixit, e para quem a palavra da  autoridade é um evangelho, teve a infeliz lembrança de justamente nesta noite  encomendar um magnífico buquê para oferecer à Charton no fim da representação.  Apenas se declarou o relâche par indisposition, o homem perdeu a cabeça, e, o  que foi pior, com os apertos da saída perdeu igualmente a bengala, que lá deixou  ficar com os ares de novo um chapéu comprado pela Páscoa.
 No outro dia, o homem, que tinha seus hábitos  antigos de comércio, viu-se em sérias dificuldades. Não podia deixar de  acreditar, à vista da declaração da polícia, que o espetáculo da noite  antecedente fora de graça; mas, ao mesmo tempo, tinha de dar saída no livro de  despesas ao dinheiro que gastara com o aluguel do carro, com a gorjeta do  boleeiro, com o par de luvas, com o buquê da Charton, o custo da bengala e o  estrago do chapéu. Coçou a cabeça, tomou a sua pitada, e afinal escreveu o  seguinte assento: Importe de um espetáculo gratuito no Teatro Provisório -  26$000!
 O meu dilettanti ainda não sabia que a palavra  grátis é um anacronismo no século XIX, e, quando se fala em qualquer coisa de  graça, é apenas uma graça, que muitas vezes torna-se bem pesada, como lhe  sucedeu. Provavelmente, depois deste dia, o velho lhe aditou ao seu testamento  um codicilo proibindo terminantemente ao seu herdeiro os espetáculos  gratuitos.
 Assim a crônica futura desta heróica cidade  consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854,  tivemos um divertimento de graça. Os nossos bisnetos, não falo dos militares de  boca aberta, hão de pasmar quando lerem um acontecimento tão extraordinário, e,  se nesse tempo ainda estiver em uso o latim, clamarão com toda a força dos  pulmões: Miserabile dictu!
 Depois de uma semelhante noite, era natural que os  dias da semana corressem, como correram, monótonos e insípidos, e que o baile do  Cassino estivesse tão frio e pouco animado. Entretanto aproveitei muito em ir,  pois consegui perder as minhas antipatias pela valsa, a dança da moda. É verdade  que não era uma mulher que valsava, mas um anjo. Um pezinho de Cendrillon, um  corpinho de fada, uma boquinha de rosa, é sempre coisa de ver-se, ainda mesmo em  corrupios.
 Fiz a amende honorable de minhas opiniões antigas,  e, vendo nos rápidos volteios da dança voluptuosa passar-me por momentos diante  dos olhos aquele rostinho iluminado por um sorriso tão ingênuo, não pude deixar  de fazer uma comparação meio sentimental e meio cosmogônica, que talvez  classifiqueis de original, mas que em todo o caso é verdadeira.
 Quando o mar, que Shakespeare disse ser a  imagem da inconstância, revolveu o globo num cataclisma e cobriu a terra com as  águas do dilúvio, foi uma pomba o emblema da inocência, que anunciou aos homens  a bonança, trazendo no bico um raminho de oliveira. Se algum dia uma paixão de  loureira vos revolver a alma, e deixar-vos o desgosto e a desilusão, há de ser  um anjinho inocente como aquele quem vos anunciará a paz do coração, trazendo  nos lábios o sorriso do amor o mais casto e mais puro.
Obtido em "http://pt.wikisource.org/wiki/Ao_Correr_da_Pena/I/II"
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