Não quero saber de farmácias, nem de outras instituições  suspeitas. Quero saber de música. O Jornal do Comércio deu um brado esta semana  contra as casas que vendem drogas para curar a gente, acusando-as de as vender  para outros fins menos humanos. Citou os envenenamentos que tem havido na  cidade, mas esqueceu dizer ou não acentuou bem, que são produzidos por engano  das pessoas que manipulam os remédios. Um pouco mais de cuidado, um pouco menos  de distração ou de ignorância, evitarão males futuros.
 Um fino espírito deste país, político e filósofo,  definia-me uma vez as nossas farmácias como outras tantas confeitarias. Confesso  que antes as quero confeitarias, que palácio dos Bórgias; não tanto porque  nestes se possa achar a morte, como porque nós amamos os confeitos, e os frascos  vindos do exterior têm ar de trazer amêndoas. É bom encontrar a saúde onde só se  procura gulodice. Se, entretanto, parados e obrigando a fazê-los cá mesmo, pode  suceder que alguns envenenamentos se dêem a princípio, mas todo ofício tem uma  aprendizagem, e não há benefício humano que não custe mais ou menos duras  agonias. Cães, coelhos e outros animais são vítimas de estudos que lhes não  aproveitam, e sim aos homens; por que não serão alguns destes, vítimas do que há  de aproveitar aos contemporâneos e vindouros? Que verdade moral, social,  científica ou política não tem custado mortes e grandes mortes? As catacumbas de  Roma...
 Sem ir tão longe, há um argumento que desfaz em parte  todos esses ataques às boticas; é que o homem é em si mesmo um laboratório. Que  fundamento jurídico haverá para impedir que eu manipule e venda duas drogas  perigosas? Se elas matarem, o prejudicado que exija de mim a indenização que  entender; se não matarem, nem curarem, é um acidente e um bom acidente, porque a  vida fica, e está nos adágios populares que viva a galinha com a sua pevide.  Suponhamos, porém, que uma dessas manipulações cura alguém; não vale este único  benefício todos os possíveis males? Se espiritualmente há mais alegria no céu  pela entrada de um arrependido que pela de cem justos, não se pode dizer que na  terra há mais alegria pela conservação de uma vida que pela perda de cem? Essa  única vida não pode ser a de um grande homem, a de um varão justo, a de um  simples pai de família, a de um filho amparo de sua velha mãe? Reflitamos antes  de condenar, e deixemos as farmácias com os seus meninos antes de condenar, e  deixemos as farmácias com os seus meninos, que assim acham ocupação honesta, em  vez de se perderem na rua. Outrossim, não condenemos os que alugam títulos. Quem  pode alugar uma casa que não fez, que comprou feita, por que não poderá alugar  um título que lhe custou estudos longos, e aprovações completas, que é  verdadeiramente seu? Qual é propriedade maior?
 Mas, fora com tudo isso, trataremos só de música. Não nos  falta música, nem gosto particular em ouvi-la. Queirós deu-nos uma história de  música, resumida em um grande concerto, em que, ainda uma vez apresentou suas  qualidades de artista. Não se contenta Alberto Nepomuceno com os Concertos  Populares. Domingo passado fez ouvir o Visconde de Taunay uma redução do  Requiem, do Padre José Maurício. A carta em que Taunay narra as comoções que lhe  deu a obra do padre, comove igualmente aos que a lêem, e faz amar o padre, o  Alberto, o Requiem e o escritor. Não bastam ao nosso Taunay as letras; a sua  bela Inocência, vertida há pouco (ainda uma vez) para língua estranha e  espalhada pelos centros europeus, repete lá fora o nome de um homem, cuja  família se naturalizou brasileira. Tendo o amor que tem à música, até a morte  quis levar esta semana um pianista a quem nunca ouvi, mas que ouço louvar;  pianista amador, médico de ofício, que às qualidades intelectuais, reunia dotes  morais de muito apreço, o Dr. Lucindo Filho...
Outra morte que não sai da música, ou sai do mais íntimo dela, é a que se espera cada dia do Norte, a do nosso ilustre Carlos Gomes. Os telegramas de ontem dizem que o médico incumbido de o salvar já aplicou o remédio, mas sem esperanças. Dá-lhe os dias contados. Aguardemos a hora última desse homem que levará o nome brasileiro deste para o século novo, e cujas obras servirão de estímulo e exemplar às vocações futuras. A vida dele é conhecida; mas nem todos terão as sensações dos primeiros dias, quando Carlos Gomes chegou de S. Paulo e aqui se estreou na Ópera Nacional, uma instituição mantida com dinheiros de loteria; leiam loteria, não bichos. Tudo é jogo, mas há espécies mais reles que outras, que apenas servem de ofício e comércio à gente vadia. Vivia de loteria a Ópera Nacional; antes vivesse de donativos diretos, mas enfim viveu e deu-nos Carlos Gomes, um pouco de Mesquita, outro pouco de Elias Lobo, não contando as noites em que se cantava a Casta Diva, por esta letra de um velho e bom amigo meu, depois chefe político:
Casta deusa, que derramas
Nestas selvas luz serena...
 Outra morte que não sai da música, ou sai do mais íntimo dela, é a que se espera cada dia do Norte, a do nosso ilustre Carlos Gomes. Os telegramas de ontem dizem que o médico incumbido de o salvar já aplicou o remédio, mas sem esperanças. Dá-lhe os dias contados. Aguardemos a hora última desse homem que levará o nome brasileiro deste para o século novo, e cujas obras servirão de estímulo e exemplar às vocações futuras. A vida dele é conhecida; mas nem todos terão as sensações dos primeiros dias, quando Carlos Gomes chegou de S. Paulo e aqui se estreou na Ópera Nacional, uma instituição mantida com dinheiros de loteria; leiam loteria, não bichos. Tudo é jogo, mas há espécies mais reles que outras, que apenas servem de ofício e comércio à gente vadia. Vivia de loteria a Ópera Nacional; antes vivesse de donativos diretos, mas enfim viveu e deu-nos Carlos Gomes, um pouco de Mesquita, outro pouco de Elias Lobo, não contando as noites em que se cantava a Casta Diva, por esta letra de um velho e bom amigo meu, depois chefe político:
Casta deusa, que derramas
Nestas selvas luz serena...
Naquele tempo ainda Bach nem outros mestres influíam como  hoje. Não tínhamos essa música de que anteontem à noite nos deram horas  magníficas os nossos dois hóspedes. Moreira de Sá e Viana da Mota, no Teatro  lírico. Hoje a crítica das folhas da manhã dirá deles o que couber e for de  justiça, e estou que não será frouxo, nem pouco. Eu não tenho mais que ouvidos,  e ouvidos de curioso, que não valem muito: mas, em suma, mais terei desprendido  com os olhos que com eles. Sinto que escutei dous homens de grande talento e  grande arte, severos amados, ambos cheios pela natureza e confirmados pelo  estudo para intérpretes de obras mestras. Não é de crer que os não ouçamos ainda  uma vez ou mais. Li que vão a São Paulo, em breve; é de rigor. São Paulo é  estação obrigada, é metade do Rio de Janeiro, se estas duas cidades não formam  já, como Budapeste, artisticamente falando, uma só capital. Há tempo,  entretanto, para que, antes de tornarem ao seu país Viana da Mota e Moreira de  Sá dêem ainda ao povo do Rio uma festa igual à de anteontem, em que recebam os  mesmos aplausos.
E continua a música. Hoje é o terceiro dos Concertos Populares, instituição que o público aceitou e vai animado  em benefício seu, é verdade, não se podendo dizer que faça nenhum favor em ouvir a palavra clássica dos mestres. Antes deve ir cheio de gratidão. Há uma hora na semana em que alguns homens de boa vontade dispõem-se a arrancá-lo à vulgaridade e ao tédio, para lhe dar a sensação do belo e do gozo. São favores que lhe fazem. Para si mesmos, bastava-lhes um pouco de música de câmara, entre quatro paredes, e a boa disposição de meia dúzia de artistas.
Assim como a história política e social tem antecedentes, é de crer que esta parte da história artística do Rio de Janeiro tenha os seus também e quer-me parecer que podemos ligá-la ao quarteto do Clube Beethoven.
 
Esse clube era uma sociedade restrita, que fazia os seus saraus íntimos em uma casa do Catete, nada se sabendo cá fora senão o raro que os jornais noticiavam. Pouco a pouco se foi desenvolvendo, até que um dia mudou de sede e foi para a Glória. Aquilo que hoje se chama profanamente Pensão Beethoven, era a casa do clube. O salão do fundo, tão vasto como o da frente, servia aos concertos, e enchia-se de uma porção de homens de várias nações, várias línguas, vários empregos, para ouvir as peças do grande mestre que dava nome ao clube, e as de tantos outros que formam com ele a galeria da arte clássica. O nome do clube cresceu, entrou pelos ouvidos do público; este, naturalmente curioso, quis saber o que se passava lá dentro. Mas, não havendo público sem senhoras, e não podendo as senhoras penetrar naquele templo que o não permitiam as disciplinas deste, resolveu n clube dar alguns concertos especiais no Cassino.
Não relembro o que eles foram, nem estou aqui contando a crônica desses tempos passados. Pegou tanto o gosto dos concertos Beethoven, que o Clube, para obedecer aos estatutos sem infringi-los, determinou construir no jardim aquele edifício ligeiro, onde se deram concertos a todos sem que a casa propriamente da associação fosse violada. Os dias prósperos não fizeram mais que crescer; entrou a ser mau gosto não ir àquelas festas mensais. Mas tudo acaba, e o clube Beethoven, como outras instituições idênticas, acabou. A decadência e a dissolução puseram termo aos longos dias de delícias.
A primeira vez que vi o fundador daqueles concertos, foi de violino ao peito, junto de um piano, em que a senhora tocava; lá se vão muitos anos. Ele vinha do Japão, magro, pálido... "Não tem seis meses de vida" disse-me em particular um homem que já morreu há muito tempo. Outros morreram também, alguns encaneceram; o resto dispersou-se, a senhora reside na Europa... Só a música pode dar a sensação destas ruínas. O verso também pode, mas há de ser pela toada do florentino, que assim como sabe a nota da maior dor, não menos conhece a da rejuvenescência, aquela que me faz crer, nestas sensações de arte.
Rifatto sì, come piante novelle
Rinnovellate di novella fronda..
 E continua a música. Hoje é o terceiro dos Concertos Populares, instituição que o público aceitou e vai animado  em benefício seu, é verdade, não se podendo dizer que faça nenhum favor em ouvir a palavra clássica dos mestres. Antes deve ir cheio de gratidão. Há uma hora na semana em que alguns homens de boa vontade dispõem-se a arrancá-lo à vulgaridade e ao tédio, para lhe dar a sensação do belo e do gozo. São favores que lhe fazem. Para si mesmos, bastava-lhes um pouco de música de câmara, entre quatro paredes, e a boa disposição de meia dúzia de artistas.
Assim como a história política e social tem antecedentes, é de crer que esta parte da história artística do Rio de Janeiro tenha os seus também e quer-me parecer que podemos ligá-la ao quarteto do Clube Beethoven.
Esse clube era uma sociedade restrita, que fazia os seus saraus íntimos em uma casa do Catete, nada se sabendo cá fora senão o raro que os jornais noticiavam. Pouco a pouco se foi desenvolvendo, até que um dia mudou de sede e foi para a Glória. Aquilo que hoje se chama profanamente Pensão Beethoven, era a casa do clube. O salão do fundo, tão vasto como o da frente, servia aos concertos, e enchia-se de uma porção de homens de várias nações, várias línguas, vários empregos, para ouvir as peças do grande mestre que dava nome ao clube, e as de tantos outros que formam com ele a galeria da arte clássica. O nome do clube cresceu, entrou pelos ouvidos do público; este, naturalmente curioso, quis saber o que se passava lá dentro. Mas, não havendo público sem senhoras, e não podendo as senhoras penetrar naquele templo que o não permitiam as disciplinas deste, resolveu n clube dar alguns concertos especiais no Cassino.
Não relembro o que eles foram, nem estou aqui contando a crônica desses tempos passados. Pegou tanto o gosto dos concertos Beethoven, que o Clube, para obedecer aos estatutos sem infringi-los, determinou construir no jardim aquele edifício ligeiro, onde se deram concertos a todos sem que a casa propriamente da associação fosse violada. Os dias prósperos não fizeram mais que crescer; entrou a ser mau gosto não ir àquelas festas mensais. Mas tudo acaba, e o clube Beethoven, como outras instituições idênticas, acabou. A decadência e a dissolução puseram termo aos longos dias de delícias.
A primeira vez que vi o fundador daqueles concertos, foi de violino ao peito, junto de um piano, em que a senhora tocava; lá se vão muitos anos. Ele vinha do Japão, magro, pálido... "Não tem seis meses de vida" disse-me em particular um homem que já morreu há muito tempo. Outros morreram também, alguns encaneceram; o resto dispersou-se, a senhora reside na Europa... Só a música pode dar a sensação destas ruínas. O verso também pode, mas há de ser pela toada do florentino, que assim como sabe a nota da maior dor, não menos conhece a da rejuvenescência, aquela que me faz crer, nestas sensações de arte.
Rifatto sì, come piante novelle
Rinnovellate di novella fronda..
Machado de Assis 5 de julho de 1896
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