Desencantado com o País, príncipe francês dizia em 1838 que aqui só a natureza prestava
Lilia Moritz Schwarcz
O Brasil sempre significou um bom  espelho invertido a atazanar a imaginação dos franceses. Enquanto 'eles' tinham  muita 'civilização e pouca natureza', 'nós' éramos o local da 'grande flora, mas  da falta de civilização'. Por isso, a narrativa de viajantes setecentistas, como  Léris, Gandavo ou Thevet, acabou por germinar todo um imaginário acerca dessa  colônia perdida na América; uma espécie de paraíso perdido. Tal simbologia  tenderia a se arraigar ainda mais quando Rousseau, pautado na leitura dos  viajantes do 16 e no ensaio de Montaigne, chamado Os Canibais - verdadeiro  tratado elogioso sobre a maneira como os tupinambás faziam a guerra -, cunhou a  idéia do 'bom selvagem'. É fato que esse era um modelo e não uma realidade  empírica, mas a imagem romântica colou-se ao nosso território, associado à idéia  do sublime e do maravilhoso. Sublime era a natureza, porém estranhos eram seus  homens - nus e de costumes bizarros, ou ainda misturados em suas crenças e  raças.
A vida dos franceses nesses trópicos americanos não seria, porém,  fácil. Com a vinda de d. João ao Brasil em 1808 e com a declaração de guerra à  França no mesmo ano, os compatriotas de Napoleão passaram a ser tratados como  inimigos e sofreram, eles sim, um bloqueio transcontinental. A situação só  começaria a mudar a partir de meados de 1814, quando, após o Congresso de Viena,  o príncipe regente português anunciava que as relações entre os países seriam, a  partir de então, 'amigáveis'; o que permitiria o livre trânsito de franceses em  Portugal e também na rica colônia americana. Data desse momento o começo das  novas relações oficiais franco-brasileiras, assim como se aceleram as trocas  culturais, econômicas, científicas e comerciais entre as duas  nações.
Entrariam no Brasil de d. João, de Pedro I e, sobretudo, de Pedro  II viajantes, naturalistas e curiosos franceses que pareciam querer redescobrir  um país descoberto há muito tempo. Para os franceses, que conheciam a América  espanhola por intermédio de Humboldt mas desconheciam o Brasil, esse era o país  mais 'exótico' do continente - com canibais, serpentes e natureza singular -  mas, paradoxalmente, o mais 'civilizado': uma monarquia cercada de  repúblicas.
É imbuído do desejo de entender uma nação tão particular que  aporta no Rio, em 1838, o terceiro filho do rei-cidadão Luis Filipe de Orleáns;  monarca que governou a França de 1830 a 1848. François Ferdinand Filipe Louis  Marie d'Orleáns, futuro príncipe de Joinville, era na época um jovem tenente da  marinha, e com apenas 20 anos mal sabia que, no futuro, iria se casar com a irmã  de Pedro II, d. Francisca, que nesse momento achou desengonçada e com dentes  horríveis.
Esta primeira viagem ao Brasil foi talvez aquela que causou  maior impacto ao príncipe. François esteve no País de 1º de janeiro de 1838 a 22  de fevereiro e relatou as impressões da estada em um livro que está sendo  lançado pela José Olympio, Diário de um Príncipe no Rio de Janeiro (84 págs., R$  19). Nele, legou um relato espirituoso e escrachado, correspondente à atitude do  viajante que traz sempre em sua mala os próprios costumes e traduz tudo a partir  de suas lentes culturais, que o fazem oscilar entre o deslumbramento, o choque,  a imaginação e a rejeição.
E no caso de nosso príncipe não seria  diferente. No ano em que François desembarca, vivíamos a maior das crises  regenciais. Feijó se demitira em 1837 e fora substituído interinamente por Pedro  de Araújo Lima, que não dera conta de debelar as rebeliões do período: a  Cabanagem no Pará, a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Revolta dos Malês na  Bahia, além da Sabinada que eclodira em novembro daquele ano na mesma província.  Não sem uma ponta de sarcasmo, Luis François refere-se a d. Pedro como 'o  pequeno imperador', lamenta o estado de 'abandono e isolamento' do futuro  monarca e de suas irmãs, assim como aposta que o País não ficaria integrado e  coeso por muito tempo. 'As províncias comerciais do Pará, de Pernambuco e da  Bahia vão separar-se, a do Rio Grande do Sul já se libertou e Santa Catarina  seguirá seu exemplo. Restará então um império composto do Rio, São Paulo, Goiás  e Matocross (sic) e alguns lugares cujo nome esqueci.'
François conhecia  pouco mas julgava muito. Já na chegada, começa a debochar do jovem d. Pedro  dizendo que, desde que havia sido anunciada sua visita, o futuro rei todo dia  alertava as irmãs: 'Vistam-se depressa que o príncipe vem aí.' E a recepção do  nobre francês não seria das melhores: um calor insuportável, 'negros pavorosos  de raça cafre ou moçambicanos horrorosos', ameaças de tempestade e nuvens de  mosquitos por todos os lados. A visita ao Paço de São Cristóvão também não o  impressionou. Ao contrário, quando François desembarcou diante do Palácio  Imperial, 'uma multidão enorme aí se comprimia, pois nesse país não há nenhum  traço de polícia'. Isso sem esquecer da nota de escárnio diante do fraco  cerimonial da corte: 'Uma carruagem atrelada a seis mulas escolta uma cavalaria  cujas trombetas produzem sons como de chifres de boi.'
E era chegada a  hora de encontrar a família imperial: 'Finalmente percebo uma figura miudinha,  da altura da minha perna, empertigada, emproada: é sua Majestade!!' O pior é que  a conversa não andava - 'nada o divertia'. Até o regente, percebendo o  constrangimento, tentou puxar conversa com o príncipe francês. Parece que  ninguém se entendia: o príncipe brasileiro falava sem parar, o francês respondia  'a torto e a direito' e nada descontraía o ambiente. 'Voltei como vim', escreveu  o príncipe de Joinville, desfazendo do jovem rei, segundo ele, louro e miúdo  como a família austríaca, 'mas com modos de um homem de 40 anos'. A visita a d.  Pedro terminara: 'Logo me retirei cheio de piedade por essas pobres crianças  abandonadas a quem dão apenas aquilo que é preciso para viver e que são  perseguidas por uma nuvem de gente sem moral que deixa o país que lhes foi  confiado dividir-se e cair em uma rápida decadência.'
Os costumes também  faziam rir a esse representante da Monarquia de Julho. No baile que recebeu,  estranhou as roupas da nobreza, e as danças lhe deram uma 'vontade inextinguível  de rir'. O jeito foi ficar sentado no sofá, 'morrendo de tédio'. O príncipe só  dava sinais de apreciar, mesmo, a vegetação local; na verdade, sua grande missão  nessa viagem. Partiu com muita bagagem ('porque num país como este é preciso  levar tudo'), viu matas admiráveis cheias de pássaro, o Pão de Açúcar, o  Corcovado, atravessou rios de água fresca e montanhas arborizadas, além de ter  praticado a caça; atividade dileta dos Orléans. O Brasil lhe parecia, sob esse  ângulo, 'um país virgem', o que só fazia aumentar sua saudade da  França.
Também não deixou de reparar 'na diferença de cores de toda essa  gente'. O império americano era mesmo um 'laboratório de raças' aos olhos desses  viajantes. Entabulou conversa com alguns proprietários de terra a respeito do  tratamento, castigo e governo dos escravos e, aí sim, desfez dessa 'pobre  civilização'. Por essas e por outras é que asseverou que 'o País, por causa de  sua situação, população e personalidade dos habitantes, estava destinado a ficar  estacionado por muito tempo'. Tudo lhe parecia indecente: estradas, roupas, os  negros que dançavam com lascívia, a escravidão e a preguiça. E a conclusão era  uma só: 'A viagem foi interessante, me fez conhecer bem o Brasil, mas me  desencantei ...'
No entanto, até que a viagem trouxe rendimentos  pessoais. François saiu do Brasil levando um leão que crescia e a cada dia  ficava mais dócil; um gato tigrado; um sarigueia com seus filhotes no bolso;  gazelas; macacos; papagaios; coelhos; uma preguiça e seu filho: 'O animal mais  incrível que jamais vi.' Nosso príncipe virou feriado, ganhou medalha com a  imagem de um índio ao centro e mereceu uma chuva de fogos de artifício. Essa  gente era provinciana, mas sabia se divertir de vez em quando. François até que  aproveitou de seu baile de despedida e dançou até as 4 e meia da madrugada,  quando d. Pedro já se encontrava, faz tempo, embaixo dos lençóis: 'Dançamos um  cotilon no meio do qual soltamos o leão dancei até cair morto.' Não obstante,  partiu dizendo que daqui só a natureza prestava.
Mas vida de príncipe  também é sujeita a reviravoltas. François acabaria por mudar de opinião, ao  menos com relação à (outrora desengonçada) irmã de d. Pedro: d. Chica virou  beldade. Por sinal, ele teve de esperar muito para que seu pedido de casamento  fosse atendido e voltou mais duas vezes ao País. O bom humor do príncipe também  seria afetado pelo destino da 'Monarquia de Julho' e pela destituição da  dinastia de Luís Felipe de Orléans, que terminou seus dias com a revolução de  1848, a qual levou toda a sua família ao exílio na Inglaterra. O mundo andava  convulsionado e também a civilização dos franceses não era lá essa  coisas.
Diário de um Príncipe no Rio de Janeiro é um monumento ao bom  humor. Pena que nessa edição faltem os desenhos, aquarelas, estampas e  caricaturas que compõem o documento original; que pode ser encontrado no Museu  de Petrópolis. Ninguém vê com olhos livres e sem filtros e nosso príncipe estava  coberto deles. Mas esse diário não só testemunha a crise que viveu o Império  durante as regências, como é original na sua escrita divertida; oposta aos  documentos sisudos, que sempre legam uma visão enaltecedora e oficial. Nesse  caso, tudo é palco para o deboche.
No fundo, nosso príncipe gozador só  pretendia passar pelo Brasil: seu destino sempre foi a França. Diz ele na  despedida: 'Velas ao vento, presentes a serem distribuídos e um baile à francesa  a me esperar, assim como a honra nacional e nossa bela família.' Quem diria que  todo esse cenário iria desabar em menos de 10 anos. Castelos são muitas vezes  cenários frágeis. 
Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador
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