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Sarah Goodridge’s Beauty Revealed (1828)


Sarah Goodridge’s Beauty Revealed (1828)




It is a painting so seductive, so intriguing, we cannot help but want to know the story behind it. Adding to the seductiveness is the fact that these pale breasts encircled by a swirl of cloth, painted on a thin plate of ivory 2.6 inches high and 3.1 inches long, belonged to the woman who painted them: an accomplished miniaturist named Sarah Goodridge (b. 1788). Adding to the intrigue is the fact that Goodridge sent this particular miniature (enclosed in a leather case that could be closed with two clasps) to the recently widowed United States senator Daniel Webster in 1828.


Goodridge’s relationship with Webster had begun a year earlier and would continue until his death in 1852. Though obviously attracted to each other, the two saw each other infrequently: Webster visited Goodridge in Boston several times, paying her to paint his and his family’s portraits, and Goodridge, for her part, visited him twice — once in 1828, after the death of his first wife, and again in 1841–2, when he was separated from his second wife. “Whether Webster had any sexual involvement with [Goodridge] cannot be proved one way or the other,” Webster’s biographer Robert Remini says cautiously, before adding: “although the fact that she sent him a self-portrait with her breasts exposed raises suspicions.”


But Beauty Revealed is not a “self-portrait with the [Goodridge’s] breasts exposed”; it’s a self-portrait exclusively of her breasts. As Dr Chelsea Nichols points out, on her blog The Museum of Ridiculously Interesting Things, Goodridge was sending Webster the 19th-century equivalent of “a saucy nudie pic” (which also managed, by hiding her face, to protect her identity from prying, puritanical eyes).


Sarah Goodridge’s painting of her breasts

There’s no denying Beauty Revealed is a proto-sext — a sext kept by Webster all his life and donated to the Metropolitan Museum of Art by his descendants. Just as remarkably, though, it’s an artful eroticization of the tradition of “eye miniatures” — said to have begun when George IV wanted to send his beloved Maria Anne Fitzherbert a token of his affection.


Eye miniatures — which were also typically painted on small sheets of ivory — acted as a substitute for the gaze of the absent beloved. Beauty Revealed, of course, acted as a substitute for something else. Like the miniature portraits Goodridge painted for hire, this picture of her bare breasts was meant to be treasured and touched. It was, clearly, meant to arouse.


John Updike, in his 1993 speculative essay “The Revealed and the Concealed”, imagines that Goodridge sent Webster Beauty Revealed as an erotic “offer”, as though to say: “Come to us, and we will comfort you… We are yours for the taking, in all our ivory loveliness, with our tenderly stippled nipples”. If this was the case, Updike continues, “the offer…was not taken. Webster needed not just love but money.” In May of 1829 he courted the wealthy Catherine Van Renssalaer, and when that didn’t work out turned to Caroline Le Roy, the daughter of a prominent New York merchant, whom he soon married. Goodridge remained single all her life.


Nichols, in her equally speculative post, detects in Goodridge’s self-portrait not a sexual offering but “the confidence and passions of a woman way ahead of her time, who has proudly embraced the eroticism of her body and role as cherished mistress”. She suggests that Goodridge may well never have married deliberately, because she wanted to retain her independence as an artist at a time when being an artist was far from an easy thing for a woman to do.


Why, after all, should we assume this miniature has any connection with marriage? Our stories about Goodridge’s painting are bound to tell us more about ourselves than about Goodridge or Webster. As Updike concludes:


My reconstruction of events isn’t especially likely, but neither is the existence of *Beauty Revealed*. We must argue backwards from its unique datum — a singularity in American art, and a dazzling peep beneath another century’s voluminous clothes.


FROM:  THE PUBLIC DOMAIN REVIEW

thepublicdomainreview.org



Os 80 ciclos de Amir Haddad

Jornal O Globo, 23/06/2017


Décadas à frente: os 80 ciclos de Amir Haddad

Ator e diretor com centenas de peças no currículo prega a volta às origens do teatro por meio de relação mais intensa e honesta com a plateia

Amir Haddad completa 80 anos no dia 2 de julho - Leo Martins

POR THALITA PESSOA
23/06/17 - 16h25 | Atualizado: 23/06/17 - 18h21

RIO — Prestes a completar 80 anos no dia 2 de julho, o ator e diretor Amir Haddad confessa ter alguma dificuldade em detalhar a cronologia ao longo das décadas de trabalho que o alçaram ao posto de um dos grandes nomes do teatro brasileiro com cerca de 250 ou 300 peças dirigidas, pelas suas contas. Ou melhor, do pós-teatro, como nomeia o que faz. O Teatro mesmo, com T maiúsculo, posto no pedestal e encarado como forma de arte superior, inabalável e imposta — ou seja, da forma como a conhecemos e somos apresentados, pontua ele —, Haddad não vê a hora de que seja extinto.

—Basta um segundo de teatro no pós-teatro para estragar tudo — enfatiza.

Para ele, o pensamento linear responsável pelas tais linhas cronológicas, incluindo a de seus 80 anos, não é capaz de apontar os rumos futuros das manifestações artísticas porque não revisita o passado. Tudo é cíclico, em sua visão, e o pós-teatro disponibiliza isso. "Não existe contemporaneidade sem ancestralidade", repete o diretor durante a entrevista em sua casa, em Santa Teresa. Ele sente ter vindo a esta vida com a missão do teatro.


É na rua, falando e interpretando para o povo, sem palco ou delimitação de paredes para a cena ("Não foi a arquitetura que inventou o teatro, o teatro é que inventou a arquitetura", diz), que ele cumpre a incumbência e se sente conectado à arte de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e outros dramaturgos da Grécia Antiga. No nascedouro do teatro, as encenações eram feitas nas praças, ao ar livre. Mesmo após tanto tempo, seus textos persistiram conhecidos e icônicos porque representam o passado, o presente e o futuro em cena, acredita o diretor. O texto de "Antígona", de Sófocles, com Andréa Beltrão e sob a direção de Haddad, mostra-se tão atual que comprova isso (a peça estreou em novembro de 2016 no Rio e agora viaja pelo Brasil).

Assim, ele fundou em 1980 o grupo Tá na Rua, com espetáculos produzidos para o povo e no meio dele, como feito nos primórdios. Neste cenário, existe a interação entre ator e plateia que Amir Haddad sempre perseguiu. Isso é pós-teatro, defende:

— O teatro passou a ser o local de pessoas interessantes fazendo uma arte ruim. É um sal bom em carne estragada e que fica tão putrefato quanto ela. Em "Antígona", com a Andréa, a gente esquece o Teatro. É fácil diferir o teatro do pós-teatro: no pós-teatro, o público gosta, tem prazer de ver, se sente respeitado. A relação do palco com a plateia é horizontal, o ator é uma carta aberta, não é afirmativo nem impositivo. O teatro é amor, cheiro, suor. O pós-teatro remete ao início do teatro, não é uma exibição do ego. Só existe essa preocupação nos atores inteligentes que buscam se livrar disso, como a Andréa, a Renata Sorrah, a Adriana Esteves, que querem sair desse lugar acomodado.


A experiência adquirida ao longo dos anos, jura, lhe permitiu saber diferir o joio do trigo com facilidade ímpar.

— Quando vou ver Teatro, sou capaz de identificar logo se é algo bom ou ruim. Se for ruim, na primeira fala já penso "me f..., vou ficar horas preso aqui para ver essa porcaria" — relata.

Algo bem diferente do tempo empregado em seu ofício. Quase num transe, firmado num pacto entre atores e público, o encenado fica suspenso da atuação dos ponteiros.

— A noção de tempo abstrato desaparece porque ela é uma invenção do mundo e por ser eu fruto do teatro da maneira como fiz. Ele me tirou dessa abstração, me levando às dobras do tempo. É muito normal que nos meus espetáculos tanto os atores quanto a plateia percam esta noção. É como uma antevisão que na hora vira só uma confirmação daquilo que já foi vivido. Por isso, a sabedoria de hoje é um produto do trabalho — afirma.

E acrescenta:

— Einstein estava certo: o tempo não é linear. "2001 — Uma odisséia no espaço" (filme de Stanley Kubrick, de 1968) também está, ao mostrar o mesmo homem novo e velho ao entrar nessas dobras de tempo. Saber disso te dá uma liberdade grande, uma força, reforça sua vitalidade, e sexualidade. O tempo não para porque ele não é igual.

O conceito que melhor se aplica a tudo que viveu e vive graças ao seu dom ele tira do conceito grego do oroboro, também presente nas culturas egípcia e chinesa e nas ciências místicas, expresso na simbologia da serpente que morde a própria cauda. Oroboro representa eternidade, continuidade e perpétuo retorno, que ajudam a explicar como ainda pequeno Haddad, então com 7 anos, encontrara sua vocação.

— O insight aconteceu recitando um poema na escola. Ali eu já era um homem do teatro. O arrebate que aquele menino sentiu no momento é o que sinto eternamente. É o que sinto hoje quando vejo que cumpri o meu destino. O oroboro é a serpente que morde a própria cauda. É como me sinto: um corpo só com o que fui e o que vou ser, num perpétuo movimento — explica Haddad.

Com a clareza e a maturidade adquiridas por experiências passadas e futuras com as quais se comunica nas tais dobras do tempo, ele se diz satisfeito com a obra e as pessoas que conseguiu tocar ao longo da vida.

— Alguém que tem 80 anos tem dificuldade de fazer uma cronologia. Passado, presente e futuro... é tudo igual, são partes de uma coisa só. A vida te dá essa clareza, de saber que você é quem era para ser, de que cumpriu a sua tarefa. E este momento de sabedoria me deixou encantado. Emociono-me por perceber que passei 80 anos aproveitando a vida. Se você tem 80 anos e não sonhou, passou a vida em branco, não fez valer a pena — celebra.

TEATRO COMO SOBREVIVÊNCIA

A vida inteira de Amir Haddad foi dedicada ao teatro. Ainda novo, quando tinha por volta de 16 ou 17 anos, chegou a trabalhar por seis meses numa casa bancária. Mas a raiva do trabalho era tanta que acabou deixando o local, que não tardou em falir. O seguinte "bico" escolhido acabou sendo bem menos conservador: na década de 1970, surgiu a opção de vender baseado "só para ajudar a complementar a renda e pagar o aluguel", conta ele. Ainda assim, Haddad não tem do que reclamar em relação às oportunidades que teve.



Nascido em Guaxupé, em Minas Gerais, e criado em Rancharia, no interior de São Paulo, foi para a capital para cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Acabou abandonando o curso ao viver a efervescência cultural de uma São Paulo em crescimento nos "cinquenta anos em cinco" do governo do presidente Juscelino Kubitschek. O dom de ator e diretor encontrara terreno propício para florescer. Assim, conseguiu cumprir sua missão no mundo.

— Tem de se estar no lugar certo para aproveitar as melhores condições. Fui de uma cidade com cinco mil habitantes para outra que, na época, tinha dois milhões. Cheguei em São Paulo na segunda metade de 1950, no início da industrialização. Era uma cidade efervescente e com inteligência sensível ao novo, às ideias, com vida cultural intensa, que abrigava o teatro brasileiro de comédia. Era o momento em que o Brasil saía de uma realidade obscura e de pobreza intelectual, arrastando todos para um novo patamar e eu fui junto — lembra.

Haddad agradece à formação que recebeu no colégio público para decidir o próprio caminho.

— Foi onde me ensinaram Manuel Bandeira, latim, filosofia. Foi no pátio do colégio que vi minha primeira peça, com Sérgio Britto e Eva Wilma. Eu me sinto grato por ter vivido entre 1950 e 1960 no Brasil. Quando veio o golpe militar, já estava imune ao que ele produziu — conta.

A alma de artista, já bem estruturada na época, não impediu, no entanto, que fosse barrado no teste da Escola de Arte Dramática. Um não que ele endossa não ter sido um erro circunstancial.

— O Sérgio Mamberti morava na mesma pensão e me chamou para fazer o exame na Escola de Arte Dramática, do Alfredo Mesquita. Ele passou e eu fui reprovado. Um ano depois, fundei o Teatro Oficina, ao lado do Zé Celso Martinez Corrêa e do Renato Borghi. Desde o primeiro momento comecei dirigindo, e bem, até conseguir juntar o ator e o diretor. Não é possível ser um bom diretor sem a vivência do ator. A Escola de Arte estava certa: eu não servia para aquilo. Até hoje vivo para demolir a escola de arte, para demonizá-la — afirma.



Com o passar dos anos, numa prova do destino selado, quando Haddad teve a chance de ensinar o pós-teatro, teve de lidar com a dificuldade de tirar a arte do pedestal.

— Quando o ator chega até mim, tem que se desarmar. O que eu proponho é um processo doloroso, de desfazer essa imagem de si, de deixar essa persona que é a máscara que ele usa. Como pode uma máscara usar outras máscaras? Uma das prisões do ator é ser o ator de só um tipo de papel, que é diferente do que acontecia na comédia dell'arte, onde uma pessoa fazia o mesmo papel a vida inteira. Lá, o ator se especializa na máscara a tal ponto de ter um discurso próprio. É diferente do ator falando um texto de outra pessoa — compara.

No processo de preparação de ator, Amir Haddad garante: não precisa de malha preta, declamação, nada disso. No seu modo de ver, são o discurso e o seu desenvolvimento na coletividade que devem ficar em foco.

— A Fernanda Montenegro é quem fala: "Amir, com você ou o ator melhora ou desiste". Acho que por isso muitos nem vieram (até mim). Um terço dos que me procuram desistem porque não entendem o que eu faço. Teatro é afeto vivo, é verbo, não é virtual. É lugar de sobrevivência. O teatro entrou nesse lugar para a burguesia protestante capitalista e está apodrecendo com ela. Teatro é ideologia e reflete a decadência da sociedade. Por isso, não tem como ser salvo e caminha para o fim. Não quero salvar nada do que está aí — enfatiza ele.

DEVORAR E SER DEVORADO

Em cartaz com a peça "Antígona", de Sófocles, Andréa Beltrão declara estar "completamente apaixonada" pelo espetáculo e pelo que representa Amir Haddad, com quem trabalha pela primeira vez. A montagem vai desembarcar no Cine Teatro Brasil Vallourec, em Belo Horizonte, no fim de semana em que o diretor completará 80 anos. Ao fim da apresentação do dia 1º, à meia-noite, o local se transformará na casa que abrigará comemorações e honras ao aniversariante. Homenagens logo após uma peça que, segundo Haddad, é "um espetáculo que dura uma hora ou mais mas que levei a vida inteira para ter a maturidade para ele"



— Eu tinha vontade de trabalhar com o Amir e essa peça sempre estava na minha gaveta. Abria e lá estava, "Antígona". Quando decidi fazer, eu me enchi de coragem para ligar para o Amir. No que ele atendeu e falou "E aí, o que você manda?", eu pensei "F..., agora vou ter que falar que sou eu e o que eu quero fazer". "Antígona" me transformou, me deu uma vida diferente, nova. Quando chamei o Amir para me dirigir, ele me perguntava o porquê de querer fazer essa peça, onde eu queria chegar. Eu respondia "Eu não sei", mas só queria fazer se fosse com ele. Foi uma experiência radicalmente nova — conta Andrea.

Mesmo sem saber onde queria chegar, ela embarcou no exercício proposto por Haddad. E garante não ter se arrependido.

— Começamos as conversas mesmo sem saber se ia mesmo ter a peça. Não tinha data, prazo, não estava na esteira de produção. Só havia a vontade enorme de descobrir se nós dois íamos nos apaixonar um pelo outro. Começamos no zero total. Ele me passava pesquisas e trabalhos para fazer. Tive de estudar muito para corresponder ao que ele queria. construímos uma relação muito honesta, sincera. Eu perguntava "E se ficar um horror?", ele respondia "Então a gente não faz". Quando eu queria desistir ele me dizia: "Não, vamos fazer, tem coisa legal aí, calma". E no meio desse processo nos apaixonamos um pelo outro, perdidamente — garante ela, que vai além. — Ele é uma figura, um homem especial, um homem de teatro muito raro. É preciso aproveitar a sabedoria dele, devorá-lo, como ele diz, para fazermos. Porque a gente entra no palco para ser devorado. É preciso perder para ganhar.

Andréa fala ainda com carinho da reação do diretor no dia em que errou uma das falas da peça. Incomodada com a troca da fala por uma gíria, ligou para Haddad:


Reconhecimento. Haddad e Renata Sorrah em entrega de prêmio - Cristina Granato (15-11-2016) / Agência O Globo
— Com ele, eu sinto que estou lidando com os meus limites o tempo todo, os meus vícios, as minhas dificuldades. O espetáculo dessa maneira vira uma coisa viva, que se mexe. O Amir brinca comigo que teatro é a liberdade eterna, que você não pode ter vergonha de nada. No fim da peça, quando só tinha mais duas falas, me foge uma completamente fundamental e eu troco uma frase do Sófocles, imagine, por uma gíria. Então parei, pedi perdão ao público e falei que ia retomar — conta Andréa. — Quando liguei e falei para o Amir, ele me falou no telefone: "Que maravilha!, que ótimo!, meus parabéns!". Então eu contei que tinha trocado a fala por uma gíria e ele: "Que erro bonito!", que erro enorme, agora você está livre, é a liberdade eterna!". Naquele dia eu senti que foi o meu batismo.

Fernanda Montenegro também não poupa elogios a Amir Haddad e ao que representa para o teatro brasileiro.

— Toda maneira de amar vale a pena. A maneira de amar o teatro que o Amir tem é de suma relevância. É importante porque ele tira a poeira, o presumido, o pré-decodificado. É muito rico isso. É um desafio para o intérprete, um susto, talvez seja o mergulho no impossível. Chego a achar que o trabalho do Amir é único no teatro brasileiro — analisa ela.

A atriz consegue traduzir em palavras uma das máximas do diretor de que o teatro acontece antes da peça e que não se restringe ao palco:

— O Amir se concentra no humano, no ator. Não precisa cenário ou figurino, o importante é ter o desafio de renascer dentro do mesmo processo. O Amir nem quer que a gente entenda, ele quer que a gente sinta, no sentindo da sensualidade, da pele, mais do que do invólucro. Isso para um ator é algo explosivo, desafiador, contestador. É possível que muitos queiram se queixar desse processo. O ator com o Amir ou muda ou desiste porque com ele é tirar tua pele para carnificar de outra maneira.



VERSÃO CLÁSSICAO GLOBO ©2017

DESTRUIÇÃO, Carlos Drummond de Andrade


Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.

DESTRUIÇÃO, Carlos Drummond de Andrade
http://youtu.be/t2tgDk1r0mA
In the middle of this century we turned to each other
with half faces and full eyes
like an ancient Egyptian picture
and for a short while.

I stroked your hair
in the opposite direction to your journey.
We called to each other,
likes calling out the names of towns
where nobody stops 
along the route.

Lovely is the world rising early to evil,
lovely is the world falling asleep to sin and pity,
in the mingling of ourselves, you and I,
lovely is the world.

The earth drinks men and their loves
like wine,
to forget.
It can't.
And like the contours of the Judean Hills,
we should never find peace.

In the middle of this century we turned to each other,
I saw your body, throwing shade, waiting for me,
the leather straps for a long journey
already tightening across my chest.
I spoke in praise of your mortal hips,
you spoke in praise of my passing face.

I stroked your hair in the direction of your journey,
I touched your flesh, prophet of your end,
I touched your hand, which has never slept,
I touched your mouth, which may yet sing.

Dust from the desert covered the table
at which we did not eat.
But with my finger I wrote on it
the letters of your name.
Yehuda Amichai (Israeli)

Ausencia

Habré de levantar la vasta vida

que aún ahora es tu espejo:

cada mañana habré de reconstruirla.

Desde que te alejaste,

cuántos lugares se han tornado vanos

y sin sentido, iguales

a luces en el día.

Tardes que fueron nicho de tu imagen,

músicas en que siempre me aguardabas,

palabras de aquel tiempo,

yo tendré que quebrarlas con mis manos.

¿En qué hondonada esconderé mi alma

para que no vea tu ausencia

que como un sol terrible, sin ocaso,

brilla definitiva y despiadada?

Tu ausencia me rodea

como la cuerda a la garganta,

el mar al que se hunde.

JORGE LUIS BORGES

barthes

‎"Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma ninguém - exceto os outros - nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim de minha história de amor: sou o poeta (o recitante apenas do começo); o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam romance, narrativa exterior, mítica." ROLAND BARTHES, Fragmentos de um discurso amoroso

L´ínfinito

Sempre caro mi fu quest'ermo colle,
e questa siepe, che da tanta parte
dell'ultimo orizzonte il guardo esclude.
Ma sedendo e mirando, interminati
spazi di là da quella, e sovrumani
silenzi, e profondissima quïete
io nel pensier mi fingo, ove per poco
il cor non si spaura. E come il vento
odo stormir tra queste piante, io quello
infinito silenzio a questa voce
vo comparando: e mi sovvien l'eterno,
e le morte stagioni, e la presente
e viva, e il suon di lei. Così tra questa
immensità s'annega il pensier mio:
e il naufragar m'è dolce in questo mare»
      (Giacomo Leopardi)

ANAIS NINN

"Life shrinks or expands in proportion to one's courage."

"Love never dies a natural death. It dies because we don't know how to
replenish its source. It dies of blindness and errors and betrayals. It dies
of illness and wounds; it dies of weariness, of withering, of tarnishing."

"We don't see things as they are, we see them as we are."
"If what Proust says is true, that happiness is the absence of fever, then I
will never know happiness. For I am possessed by a fever for knowledge,
experience, and creation."

"For me, the adventures of the mind, each inflection of thought, each
movement, nuance, growth, discovery, is a source of exhilaration."

"It takes courage to push yourself to places that you have never been
before, to test your limits, to break through barriers. And the day came
when the risk it took to remain tight inside the bud was more painful than
the risk it took to blossom."

"How wrong is it for a woman to expect man to build the world she wants,
rather than set out to create it herself."

"Creation which cannot express itself becomes madness."
"Shame is the lie someone told you about yourself."

"Eroticism is one of the basic means of self-knowledge, as indispensable as
poetry."

"Life is a process of becoming, a combination of states we have to go
through. Where people fail is that they wish to elect a state and remain in
it. This is a kind of death."

"The only abnormality is the incapacity to love."

"I postpone death by living, by suffering, by error, by risking, by giving,
by losing."

"Each friend represents a world in us, a world not possibly born until they
arrive, and it is only by this meeting that a new world is born."

"I am an excitable person who only understands life lyrically, musically, in
whom feelings are much stronger as reason. I am so thirsty for the marvelous
that only the marvelous has power over me. Anything I cannot transform into
something marvelous, I let go. Reality doesn't impress me. I only believe in
intoxication, in ecstasy, and when ordinary life shackles me, I escape, one
way or another. No more walls."

"We don't have a language for the senses. Feelings are images, sensations
are like musical sounds."

"The body is an instrument which only gives off music when it is used as a
body. Always an orchestra, and just as music traverses walls, so sensuality
traverses the body and reaches up to ecstasy."

"Something is always born of excess: great art was born of great terror,
great loneliness, great inhibitions, instabilities, and it always balances
them."

"Dreams are necessary to life."

"Each contact with a human being is so rare, so precious, one should
preserve it."

"The dream was always running ahead of me. To catch up, to live for a moment
with it, that was the miracle."

"Love is the axis and breath of my life."

"The role of a writer is not to say what we all can say, but what we are
unable to say."

"The possession of knowledge does not kill the sense of wonder and mystery.
There is always more mystery"

JAMES JOYCE - ULISSES

FELIZ BLOOMSDAY PRA VOCÊS!    "If he had smiled why would he have smiled?
To reflect that each one who enters imagines himself to be the first to
enter whereas he is always the last term of a preceding series even if
the first term of a succeeding one, each imagining himself to be first,
last, only and alone whereas he is neither first nor last nor only nor
alone in a series originating in and repeated to infinity."

saudade

 Emoções indefiníveis me agitam — inquietação terrível, desejo de tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é antes desespero, raiva, um peso enorme no coração.
GRACILIANO RAMOS, SÃO BERNARDO

Difícil ser funcionário - JOÃO CABRAL DE MELLO NETO

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras -
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

em 29-09-1943

POEMA INÉDITO extraído dos "Cadernos de Literatura Brasileira", nº. 01,
publicado pelo Instituto Moreira Salles em Março de 1996, pág.60.

Atraente - Composição: Chiquinha Gonzaga

Atraente
Chiguinha Gonzaga
Rebola bola e atraente vai
Esmigalhando os corações com o pé
E no seu passo apressadinho, tão miúdo, atrevidinho
Vai sujando o meu caminho, desfolhando o mau me quer

Se bem que quer, seja se quer ou não
Bem reticente, ela só faz calar
Ela é tão falsa e renitente, que até,
Atrai só o seu pensar

Como é danada
perigosa
vaidosa
desastrosa
escandalosa
rancorosa
e rancorosa
incestuosa
e tão nervosa
e bota tudo em polvorosa, quando chega belicosa
bota tudo pra perder

Amour, amour
Tu jure amour, trè bien
Mas joga fora esta conversa vã
Não vem jogar fa-flu no meu maracanã
não sou Juju balangandã

Meu coração, porém, diz que não vai
Suportar esta maldita, inenarrável solidão
Se assim for, ele vai se esbudegar
E te ver se despinguelar numa desilusão

Florbela Espanca, Carta no. 147

?"O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim
uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo,
pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma
intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que
tem saudades...sei lá de quê!"

Tudo certo como Dois e dois são cinco...





COMO DOIS E DOIS
(Caetano Veloso)

Quando você
Me ouvir cantar
Venha não creia
Eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo
Deixo no ar
Eu sigo apenas
Porque eu gosto de cantar...

Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual
Quando eu canto
E sou mudo
Mas eu não minto
Não minto
Estou longe e perto
Sinto alegrias
Tristezas e brinco...

Meu amor!
Tudo em volta está deserto
Tudo certo
Tudo certo como
Dois e dois são cinco...

Quando você
Me ouvir chorar
Tente não cante
Não conte comigo
Falo, não calo, não falo
Deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam
Prá consolar...

Tudo vai mal
Tudo, tudo, tudo, tudo
Tudo mudou
Não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco
Mesmo teto, mesmo teto
E a mesma lua a furar
Nosso zinco...

Meu amor!
Tudo em volta está deserto
Tudo certo
Tudo certo como
Dois e dois são cinco
Meu amor! Meu amor! Meu amor!
Tudo em volta está deserto
Tudo certo
Tudo certo como
Dois e dois são cinco...

"Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."

O ENFERMEIRO

Machado de Assis

PARECE-LHE ENTÃO que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.

Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais.

Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel

Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou-me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila.

Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entender-me com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel.

Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!

— Você é gatuno?

— Não, senhor.

Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Conto-lhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias.

No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só

rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião.

Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei.

— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio?

— Qual o quê!

— E por que é que não há de crer, seu burro? redargüiu vivamente, arregalando os olhos.

Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d'asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez

minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando.

Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer

(visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui.

Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedi-lhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto.

Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou-me, disse-me muito nome cru, ameaçou-me de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na parede onde se fez em pedaços.

— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele.

Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d'Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos

mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente, pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o.

Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino!

Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. — "Maldita a hora

em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens.

Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação.

Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no

pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico.

A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava

impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade:

— Coitado do Procópio! apesar do que padeceu, está muito sentido.

Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos...

— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia.

E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n'alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados...

Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a

probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia.

— Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão.

— Não sei, mas era rico.

— Realmente, provou que era teu amigo.

— Era... Era...

Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar

o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas.

Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime...

Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Já não era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixei-me também nessa idéia...

Perto da vila apertou-se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato.

— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte.

Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero...

— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo.

E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e

vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando.

As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo: distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai.

Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade...

Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados."

Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994

FARNOOSH FATHI

A Tiger is Getting Married
   
(Korean idiom used to describe simultaneously sunny and rainy weather)

Some were invited; you are
to imagine:

a tiger's wedding—which it was,
you were involved—

is the rain alone and sun,
alone to be imagined.

Alone as pure. Rain, the veil
to a round glowing face

and all the attending faces below.
Oh the streaming,

every color a lace before the eyes.
Carry that train!

But it slips between the fingers,
diamonds.

No groom in sight,
which reminds me the clouds

kindly fled. To not go blind,
so close at the kiss,

there was no kiss at the tiger's wedding,
(some were diamonds,

others pelted)
which is the rain alone and sun.

No one cried, no one forgotten,
imagine that—

a tiger's wedding involving the whole,

stripped and pure,

and you, a singular absence.

Only water flashes against the sun's eyes like a veil.

 

 

 

 

 

Um Tigre Vai Se Casar
   
(Expressão em coreano usada para descrever o tempo ensolarado e chuvoso*)

Alguns foram convidados; você a
imaginar:

um casamento de tigre—que era,
você estava envolvida—

é só a chuva e o sol,
só para ser imaginada.

Tão só como pura. Chuva, o véu
para uma face radiante e redonda

e todas as faces presentes embaixo.
Oh a correnteza,

cada cor uma renda diante dos olhos.
Carregue aquele trem!

Mas ele escorrega entre os dedos,
diamantes.

Nenhum noivo em vista,
o que me lembra das nuvens

amavelmente em fuga. Não cegar,
tão perto do beijo,

não houve beijo no casamento do tigre,
(alguns eram diamantes,

outros bombardearam)
que é só a chuva e o sol.

Ninguém gritou, ninguém esqueceu,
imagine aquilo—

um casamento de tigre envolvendo o todo,

despojado e puro,

e você, uma ausência singular.

Apenas lampejos de água contra os olhos do sol como um véu.

 

* O mesmo que "casamento da viúva" no Brasil

NÃO SEI DANÇAR | manuel bandeira

petrópolis, 1925

Uns tomam éter, outros cocaína.

Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.

Tenho todos os motivos menos um de ser triste.

Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...

Abaixo Amiel!

Eu nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.

Perdi a saúde também.

É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.

Eu tomo alegria!

Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...

________________________Esta foi açafata...

- Não, foi arrumadeira.

E está dançando com o ex-prefeito municipal:

tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...

Há até a fração incipiente amarela

na figura de um japonês.

O japonês também dança maxixe:

acugelê banzai!

A filha do usineiro de Campos

olha com repugnância

para a crioula imoral,

no entanto o que faz a indecência da outra

é dengue nos olhos maravilhosos da moça.

E aquele cair de ombros...

Mas ela não sabe...

Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...

Nem dos oito mil quilômetros de costa...

O algodão do Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?

Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.

Eu tomo alegria!

**Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 19 de abril de 1886 - Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968)

 "O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço." parágrafo final do livro "As cidades invisíveis" de Italo Calvino:

"É como uma doença, o desejo de ver alguém, o anseio profundo e forte. E você acabou de vê-lo, e vê-lo amanhã não vai satisfazer, e a mesma doença, como uma fome, chegará até você, mais forte a cada vez que você o vê. Não, eu não expliquei isso. Eu estava trabalhando hoje, escrevendo. Minha cabeça estava ocupada: minha mente estava repleta do trabalho. Ainda assim, todo o tempo, eu estava ciente de uma dor - corrosiva – como se um pedaço de mim tivesse sido arrancado. E a mente não pudesse fazer nada sobre isso. Era físico: estava nas veias, no sangue, na pele. Eis por que as relações humanas são tão perigosas - porque a mente não tem poder sobre elas. Estou diabolicamente só. O que eu precisava era de alguém que pudesse me dar o que eu dou a Henry: essa atenção constante. Eu leio cada página do que ele escreve, eu acompanho suas leituras, eu respondo a suas cartas, eu o ouço, eu lembro de tudo que

ele diz, eu escrevo sobre ele, eu lhe faço presentes, eu o protejo,

estou pronta, para a qualquer momento, desistir de qualquer pessoa por causa dele, eu acompanho seus pensamentos, entro em seus planos - um cuidado apaixonado, maternal e intelectual. Ele.

Ele não pode fazer isso. Ninguém pode. Ninguém sabe como. É uma arte, um dom. Hugh me protege, mas ele não corresponde. Henry corresponde, mas ele não encontra tempo para ler o que eu escrevo. Ele não entende todos meus humores, nem escreve sobre mim.".

ANAIS NINN

 

 

 

Haroldo Barbosa Filho

‎"Se soubesse mentir, diria que são mentiras o que lhe falei sobre minhas verdades, cara Wendy, só para que fugisse em direção à floresta e ganhasse a liberdade para viver junto às outras fadas, sem culpa por abandonar um amor que julgaria sem magia neste mundo limitado às humanas possibilidades."