*************************************************************************************

................................

O antes e o depois dos brasileiros

ESTADO DE SP 27 DE JULHO DE 2008

O antes e o depois dos brasileiros

Obras de escritor e antropóloga iluminam transformação de 450 anos de repressão em 50 de liberdade

Francisco Quinteiro Pires

 

No poema Erro de Português, Oswald de Andrade escreveu:

"Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português"

A julgar pelo conteúdo de Sexo À Moda Patriarcal, livro da antropóloga Fátima Quintas, mesmo chovendo, o português não só não vestiu índio nenhum como tirou a própria roupa. E fez isso por livre e espontânea vontade. Quando o colonizador chegou aqui, criou um cenário de "intoxicação sexual", propiciado pela mansidão - e ingenuidade - das indígenas, acostumadas a servirem de "suporte econômico" em suas comunidades.

Tirando esse ambiente libertário criado nos inícios da colonização e o "toque dionisíaco" dado pelas negras escravas, a mulher no Brasil, sobretudo a branca portuguesa, era submetida a um triste regime de recato e isolamento. (As válvulas de escape sempre existiram, seja o confessionário do padre de ontem, seja o divã do psicanalista de hoje). Mas aqueles 450 anos de repressão foram sucedidos por cerca de 50 anos de vertiginosa flexibilização dos costumes, segundo Fátima Quintas.

A secular sociedade patriarcal do País deu lugar à nova sociedade do consumo, onde os papéis se estruturam mais por status, dado pela profissão, do que por gêneros e suas funções estratificadas. Os personagens de Depois do Sexo, do gaúcho Marcelo Carneiro da Cunha, têm de lidar com as angústias das mudanças provocadas nos relacionamentos desde de meados do século passado. Hoje é complicado falar do homem como chefe absoluto de uma família, além de entender o que significa a própria idéia de família. Para discutir essas transformações, o Estado propôs aos dois autores que fizessem três perguntas um para o outro (leia mais ao lado).

"A mulher brasileira tem uma história pautada pelo patriarcalismo, que conseguiu domesticá-la", diz Fátima Quintas. "Mas um processo educacional sistemático, importante na revolução cultural feminina, reverteu a atitude da mulher", completa a pesquisadora da Fundação Gilberto Freyre, no Recife. Qualificada profissionalmente, a mulher abandonou os estereótipos do passado, embora haja zonas de conflito, como a conciliação entre vida doméstica e pública. "É indubitável que está emergindo uma nova mulher, que deseja erradicar o isolamento arcaico do gineceu da casa-grande", diz.

Nessa nova situação, o processo é espinhoso tanto para as mulheres quanto para os homens. "A vida se digitalizou, mas nossas emoções continuam analógicas", diz Marcelo Carneiro da Cunha. "Meu livro fala de nossa época, em que tudo começa com sexo e depois vem o diálogo, eventualmente o amor", emenda o ficcionista. Segundo Marcelo, não há mais espaço para o automatismo do passado. O leque de escolhas aumentou, causando mais angústias. "Entre encontrarmos alguém e termos sexo com esse alguém, e chegarmos até uma relação amorosa, colocamos muitas camadas."

Mas o problema é que uma das promessas contemporâneas é a ausência de sofrimento. Para fugir dele, existem os entorpecentes, como a cocaína, ou os remédios, como o Valium (tranqüilizante), presentes em Depois do Sexo. Aqui e ali aparecem pílulas para os tormentos psíquicos e cosméticos para as insatisfações estéticas dos personagens. "No lugar das drogas do bem-estar, prefiro acreditar na boa e velha literatura, na psicanálise e na dureza inerente a qualquer processo de transformação", diz o escritor, crente no poder curativo da palavra. Depois do Sexo (Record, 320 págs., R$ 38) dá a impressão de que ninguém se interessa pelos problemas - e dores - do outro, o que não impede as tentativas de priorizar o amor no decorrer da narrativa. Entre encontros e desencontros, os personagens, exaustos, dopados de cansaço e produtos químicos, se entregam ao sexo, mas sem haver uma entrega até a exaustão. É como se eles precisassem descontar em poucas horas, no tempo que sobra no fim de semana, as aflições acumuladas entre segunda e sexta-feira.

O uso de drogas está por trás da ida do cirurgião Matias para um serviço de atendimento de emergência. Por causa dessa mudança, ele conhece Érica, uma "quase psicanalista", e Márcia, uma juíza. "Esses personagens elegem os relacionamentos como a coisa mais importante da vida, mas a toda escolha, e essa é possível, vem associado um custo", ele diz. Marcelo Carneiro da Cunha diz que as pessoas não estão preparadas para fazer concessões nem assumir sacrifícios, sobretudo as pertencentes às classes média e média alta. "Olhem ao redor e vejam quantos casais são construídos a partir de indivíduos de classes e passados muito diferentes?"

O escritor lembra que as relações, inclusive as afetivas, são construídas dentro de uma estrutura de classe, fenômeno exacerbado pela sociedade do consumo, "onde tudo tende a ser tratado como produto e não somos exceção". O negócio é, tal como fazem os personagens de Depois do Sexo, tentar agir contra essa lógica, segundo o autor.

Em Sexo à Moda Patriarcal, a antropóloga Fátima Quintas apóia sua reflexão nas obras de Gilberto Freyre, principalmente em Casa-Grande & Senzala. Freyre foi um dos primeiros pensadores a dar atenção às relações de gênero, abordando o papel das mulheres na vida cotidiana dos engenhos de cana-de-açúcar. O interesse do estudioso pernambucano pela vida doméstica e o seu estilo de escrita sensual impregnam Sexo à Moda Patriarcal (Global, 181 págs., R$ 32). "Quando Gilberto Freyre lançou Casa-Grande & Senzala em 1933, recebeu ataques de que o livro tinha um estilo romanesco", diz Fátima. Ela cita Proust, Drummond e Rilke em seu livro, pois acredita que a literatura e sua beleza estética democratizam as ciências sociais.

O ensaio de Fátima é dividido em três partes, cada qual tratando da sexualidade das índias, das mulheres portuguesas e das negras escravas. Segundo Fátima Quintas, as relações entre os gêneros tinham mais restrições até do que as raciais. Para mostrar essa realidade, a pesquisadora da Fundação Gilberto Freyre vai aos detalhes da moda, da religião e da própria casa-grande que envolvem as representantes femininas das três raças. A intimidade é alçada como elemento para análise histórica.

Embora tudo girasse em torno da figura do colonizador, as negras e as índias de alguma maneira conseguiam espaços que nem as sinhás brancas tinham direito. Dentro da casa-grande, a mãe era na prática uma negra escrava, que cuidava das crianças desde a amamentação, às vezes fazendo soar uma voz mais alta do que a da reclusa sinhá, embora sempre mais baixa que a do senhor de engenho.

Apesar da repressão social e sexual exercida pelo colonizador durante séculos, Fátima Quintas joga luzes sobre o papel feminino, às vezes de contraponto, mas digno de nota, na construção da sociedade brasileira. Os costumes mais flexíveis, possibilitados pela revolução sexual dos anos 1960, tornaram esse papel ainda mais determinante.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

''Não existe escravidão sem depravação sexual''

Fátima Quintas: Autora de Sexo À Moda Patriarcal

 

Marcelo Carneiro da Cunha: O jornalista Eduardo Bueno, quando fala do descobrimento, coloca nossa formação simbólica na fusão entre portugueses e índias. Esses portugueses fugidos não podiam voltar a Portugal. Criava-se uma nova nação. Existe essa presença da visão sexual dos indígenas na formação da nossa sociedade atual?

Fátima Quintas: Ainda que o indígena tenha sido catequizado em missões jesuíticas, seus valores se disseminaram no nosso inconsciente coletivo. O Brasil traz inscrições indeléveis do mito fundador, a evocar o pensamento de Darcy Ribeiro (1922-1997). Há uma presença simbólica do atavismo de origem, garantindo à cultura brasileira um ethos híbrido, pleno de vivências sexuais: escutamos o ranger fescenino da rede no alpendre da casa-grande, que carrega traços de erotismo e fantasmas do ócio, e vislumbramos a nudez bem-vinda ao solo tropical, a exibição de corpos menos preconceituosos, a limpeza epidérmica dos sedutores banhos de rio. As ressonâncias do mundo primitivo chegam a uma impregnante sociologia genética.

M.C.C.: No seu livro, as mulheres brancas do mundo colonial brasileiro aparecem praticamente desprovidas de protagonismo. Onde e quando esse protagonismo se produz? De onde surge a mulher contemporânea brasileira?

F.Q.: A sociedade patriarcal glorificou o falo como emblema de virilidade. Até mesmo a religião - o cristianismo lírico e sensual, como identifica Gilberto Freyre - fez vista grossa a esse desregramento sexual. E, ao embalo da autoridade da cana com sua estética igualmente fálica, a vida das nossas bisavós foi recatada, mulheres educadas para servir ao homem, como boneca de carne do marido, indo para cama todas as noites à disposição do desejo do macho. As mudanças bruscas nos destinos das brasileiras aconteceram no século 20 com o urbanismo e a industrialização, associados ao impacto indireto das Guerras Mundiais. A ideologia contestadora dos anos 1960 - descoberta da pílula anticoncepcional, luta feminista, maio de 68, movimento hippie, conquista espacial, Beatles, Flower Power, Woodstock - contribuiu para novas abordagens de gênero. A nossa mulher tem 450 anos de história de silêncios contra 50 de vertiginosa liberação.

M.C.C.: A negra surge como livre e sexualmente ativa, numa imagem presente no nosso imaginário, que é reproduzida à exaustão pelo carnaval, por exemplo. Ela é um elemento de vanguarda na construção do sexo moderno no Brasil?

F.Q.: A escravidão representa uma mácula traumática na história do Brasil. E não há escravidão sem depravação sexual. Faz parte da essência do regime tal distorção. A negra não foi livre. Ela agia sob o mando de um colonizador autoritário, despótico e absoluto, representativo de uma entidade econômica que não tergiversava diante do poder. Restavam-lhe, portanto, a submissão e a obediência. A casa-grande acolheu a síndrome da genitalidade, rotina pautada em delírios eróticos, uma vez que o português se envaidecia de sua dimensão libidinosa. A negra trouxe o toque dionisíaco, extrovertido, alegre, capaz de reverter um quadro de tristeza, tão bem delineado pelo escritor Paulo Prado em Retrato do Brasil e tão acentuado numa sociedade monista, a do passado, erigida em bases do monopoder, do monossexualismo e da monocultura.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

''Nunca compreendemos tanto o amor quanto atualmente''

Marcelo Carneiro da Cunha: Autor de Depois do Sexo

 

Fátima Quintas: Na dialogação ficcional do romance Depois do Sexo, existe uma recorrência freqüente ao psicanalista Jacques Lacan (1901-1981), uma figura que se tornou emblemática na França por ter sido um intérprete renovador do pensamento freudiano. A composição das imagens da personagem Érica, a quase psicanalista, que abandonou os estudos sobre Lacan para atuar como DJ em festas noturnas, sofreu alguma influência da psicanálise?

Marcelo Carneiro da Cunha: Eu sou um gaúcho que passou a viver na cidade de São Paulo. Porto Alegre deve ser a cidade mais psicanalítica do Brasil, dentro da tradição platina em que vivemos. Nós tivemos a influência direta da migração dos psicanalistas argentinos, que trouxeram Jacques Lacan na bagagem, isso é um fenômeno francês e argentino. Tempos atrás eu me analisei brevemente com Contardo Calligaris, durante a fase porto-alegrense dele, e atualmente eu me analiso com um dos grandes lacanianos do Rio Grande do Sul. Isso não me impede, no entanto, de encontrar uma boa dose de besteirol no discurso francês de Lacan e dos desconstrucionistas, como Jacques Derrida e companhia. A Érica, personagem do meu livro, é uma quase psicanalista, uma representante desse sistema de pensamento, mas que se liberta dele. Acho que Lacan é um sujeito brilhante que disse algumas besteiras. Érica acha a mesma coisa, mas de uma maneira um tanto mais radical do que a minha.

F.Q.: As relações amorosas entre os personagens de Depois do Sexo revelam-se mais epidérmicas do que afetivas, parecem uma entrega ao prazer pelo prazer. Seriam elas um manifesto, uma denúncia do mundo atual ou refletem tão-somente a essência de uma natureza humana?


M.C.C.: Eu acho que as relações sexuais dos personagens de Depois do Sexo são muito mais epidérmicas do que afetivas, mas isso é o tipo de coisa que se espera das relações sexuais em nossa época, na minha opinião. As relações amorosas seguem sendo amorosas, e talvez mais amorosas do que jamais tenham sido. Talvez porque nunca compreendemos tanto o amor quanto hoje. Não temos mais medo de morrer de fome, com exceção das pessoas que vivem na Somália, ou algo assim. Atualmente sobram muito mais tempo e energia para dedicar ao amor.

F.Q.: A rotina do cirurgião Matias, que é o núcleo central do seu livro, um médico que trabalha para um serviço de emergência e que assiste diuturnamente à luta dos pacientes pela vida, tem alguma correlação com os focos temáticos da sexualidade, como se fosse um contraponto entre a mitologia de Eros e a de Tânatos?


M.C.C.: Sim. Seguramente que sim, e me alegra que tudo isso tenha sido percebido. Entrevistando muitos médicos para fazer Depois do Sexo, me veio a percepção de que os médicos estão se afastando cada vez mais da vida e de seus pacientes, nos termos definidos pelos planos de saúde. Um médico forçado a reencontrar o seu pacto com a vida, ao ir trabalhar em um serviço de ambulâncias, após ser afastado da função de cirurgião, tem a chance de refazer o contrato consigo mesmo e com os outros. Isso é o que move o personagem Matias, além da esperança que ele sente, de maneira esperável ou não, de refazer o seu contrato com o mundo. Trabalhar em um serviço de ambulâncias me parece uma forma eficaz pra caramba de ajustar contas com tudo e com todos.

Nenhum comentário: