Retrato  do Brasil por um inventor
Pioneiro  da fotografia, Florence fixou imagens de fauna, flora e tribos hoje estudadas  por historiadores
Há  pessoas, como Hércules Florence (1804-1879), que nascem para ter suas invenções  exploradas por outros. Exemplo recente dessa apropriação aparece na obra do  romancista contemporâneo francês Stéphane Audeguy. Em seu livro A Teoria das  Nuvens (Editora Record), Audeguy fala de todo mundo que estudou o comportamento  das nuvens, do meteorologista inglês Luke Howard (1772-1864), que lhes inventou  os nomes, a Ralph Abercromby (1843-1897), que rodou o mundo para ver se elas  eram de fato iguais em toda a parte. Só não fala de Florence. O mesmo vale para  sua principal invenção, a fotografia. Esse francês, que cunhou o nome e inventou  o processo de revelação três anos antes de Daguerre, morreu um século antes de o  fotógrafo, arquiteto e historiador brasileiro Boris Kossoy apresentar, nos EUA,  as evidências de sua invenção, em 1976. Hoje, porém, se corrige uma injustiça. É  inaugurada na Pinacoteca do Estado a exposição Hércules Florence e o Brasil, que  reúne 180 obras, entre aquarelas, desenhos e manuscritos desse artista e  inventor que acompanhou a expedição Langsdorff.
A  mostra, com curadoria de Leila Florence, bisneta do artista, é a mais completa  entre as que prestaram homenagens a Florence, habilidoso desenhista a quem o  barão alemão Georg Heinrich von Langsdorff, pago pelo governo imperial russo,  contratou para acompanhá-lo em suas andanças pelo Brasil, entre 1825 e 1829. O  talento artístico e seus conhecimentos de cartografia o levaram a uma viagem de  13 mil quilômetros, partindo de São Paulo, então uma vila de 15 mil habitantes,  e chegando à Amazônia. Florence dividiu com outro desenhista, Adrien Taunay, que  morreu afogado durante a expedição, a tarefa de registrar a fauna, a flora e os  tipos locais. Muitas dessas imagens estão na mostra da Pinacoteca e num livro  que a curadora Leila Florence vai publicar no próximo ano, justamente dedicado  ao estudo das nuvens do bisavô, O Teatro Pitoresco Celeste de Hércules Florence,  com textos do crítico Jorge Coli, do psicanalista Guilherme Massara Rocha e do  meteorologista Rubens Junqueira Villela.
As  aquarelas que mostram as nuvens de todos os gêneros, de altos-cúmulos (em forma  de carneirinhos) a nimbos (aquelas carregadas, de chuvas), formam a série mais  espetacular de uma exposição que tem desde paisagens de fazendas de café a  retratos de políticos liberais como o padre Diogo Antonio Feijó - Florence era  simpatizante ideológico do partido -, passando pelo registro da vida cotidiana e  costumes de diversas tribos indígenas (apiacás, bororos, guatós). O que torna o  estudo da paisagem celeste por Florence ainda mais interessante é que não se  trata apenas de uma apropriação artística do atlas celeste, como o fez o inglês  Turner. Florence, antes de tudo, encarou a arte como uma forma de ciência para  ajudar a humanidade. E enfrentou outras profissões - de dono de uma loja de  tecidos a tipógrafo, começando por caixeiro - para sustentar seus 20  filhos.
A curadora Leila Florence confirma a suspeita de que o bisavô  morreu ressentido por não ser reconhecido como inventor da fotografia e da  poligrafia - impressão simultânea de cores, da qual a exposição reúne  exemplares. Em 1834, numa das páginas de seu diário, ele conta como usaria o  nitrato de prata para imprimir uma imagem sobre tecido, experiência realizada  graças à observação de como o brim descoloria à luz do sol. No mesmo dia (15 de  março de 1834), ele deixa claro que as coisas teriam sido diferentes se tivesse  ficado em Paris. "Lá, possivelmente, encontraria pessoas que me dariam ouvidos,  me compreenderiam, me protegeriam."
Essa  sensação de isolamento de um homem que passou 50 dos seus 75 anos no Brasil é  reforçada em outras passagens do diário. Generoso, ele revela como os  fabricantes e atacadistas de tecidos poderiam utilizar sua descoberta, o  polígrafo, como maneira de imprimir amostras de rendas, tule bordado e  musselinas. Leila Florence lembra que o bisavô foi pioneiro até na propaganda.  "Ele criou alguns anúncios usando a técnica do polígrafo", diz, mostrando  desenhos que seriam utilizados para os mais variados fins, entre eles na  imprensa - ele fundou o primeiro jornal de Campinas - e em notas bancárias para  evitar falsificações.
Leila  chama a atenção para as aquarelas que retratam povos indígenas como os guatós,  hoje em extinção (restam apenas 500), o desmatamento e as queimadas, que  Florence considerava desastrosas já naquela época. Observador da natureza, ele  estudou os sons emitidos pelos animais durante a expedição Langsdorff e  registrou a vida dos escravos na zona canavieira, escandalizando-se com os maus  tratos a que eram submetidos. Há pelo menos uma aquarela que trata do tema na  mostra. Ela revela um artista sensível e atento ao detalhe.  
Serviço
Hércules  Florence e o Brasil. Pinacoteca. Praça da Luz, 2, 3324-1000. 10 h/18 h (fecha  2.ª). R$ 6 (sáb., grátis). Até 14/3. Abertura hoje, 11 h, para  convidados
Nenhum comentário:
Postar um comentário