Educação de qualidade e superação da pobreza
Thais Garrafa e Maria Alice Setubal
A discussão a respeito da  enorme desigualdade social persistente no nosso país tem sido objeto de inúmeros  estudos, especialmente nas áreas da educação, economia e assistência social. Nos  diversos fóruns desse debate, marcam presença os dados do Programa  Bolsa-Família, tema de recente pesquisa coordenada pelo Instituto Brasileiro de  Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que destacou o aumento no consumo de  alimentos e de bens - como eletrodomésticos e móveis - como o maior ganho para  as famílias beneficiárias. Uma política de tal envergadura e importância convoca  ao diálogo com os diferentes setores da sociedade implicados na busca de  alternativas viáveis para que o País alcance melhores patamares de eqüidade  social.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que, embora o trabalho seja a  condição fundamental para a superação da pobreza e a autonomia em relação à  bolsa, essa dimensão não encerra a problemática das famílias integrantes do  programa. A diversidade de circunstâncias complexas e opressivas experimentadas  no dia-a-dia configura situações de extrema vulnerabilidade psíquica e social  para a grande maioria dos moradores dos territórios mais pobres, sobretudo nas  grandes cidades. Sob os efeitos da violência e da precária infra-estrutura  urbana, crianças, jovens e adultos desenham o cotidiano familiar com as tintas  do isolamento, da dependência de álcool e outras drogas, da fragilidade dos  laços e das situações de conflito com a lei. Um cenário de riscos significativos  para diversas esferas da vida.
Ao lado do trabalho, a educação é, sem  dúvida, uma das portas de saída da pobreza. A extensão da bolsa a famílias com  jovens traz nova responsabilidade para as políticas públicas que visam à  permanência desses alunos na escola. Infelizmente, ainda estamos muito distantes  de alcançar um mínimo de eqüidade: apenas 56,2% dos jovens até 16 anos conclui o  ensino fundamental e somente 37,9% dos jovens até 19 anos conclui o ensino  médio.
O alto número de jovens que abandonam a vida escolar denuncia o  verdadeiro abismo que separa a escola e as camadas mais vulneráveis da  sociedade. Para intervir nesse quadro, no entanto, é necessário reconhecer o  desamparo da escola diante de um contexto altamente complexo, como já  esboçamos.
Uma educação de qualidade para todos só poderá ser construída  a partir do investimento público na capacitação dos educadores em relação a essa  problemática social, ao lado de iniciativas que promovam a abertura da escola à  comunidade. É fundamental que a escola conheça melhor as necessidades, os  problemas e as potências do universo com que trabalha. Dessa forma será possível  adequar o ensino aos valores, tradições e cultura dessa população e, ao mesmo  tempo, construir diálogos com instituições locais que atuem como parceiras no  desafio de manter crianças e jovens na escola, aprendendo o que devem aprender  na série adequada.
Atualmente, experiências e estudos mostram uma escola  que aponta para fora de seus muros toda a responsabilidade pelo fracasso escolar  - situações de alcoolismo e violência doméstica; pais que não dão a devida  atenção a seus filhos, passam o dia fora de casa e desvalorizam a criança e a si  próprios quando o filho enfrenta uma dificuldade. Se tal situação alarmante é  muitas vezes verdadeira, na falta de instrumentos e assistência profissional  adequada a escola fica paralisada e se fecha sobre si mesma. Em vez de se  aproximar da família e conhecer melhor esse cotidiano, culpabiliza os pais e  reconhece a evasão como uma saída legítima para o aluno - "esse não tem mesmo  mais jeito..."
A paralisia e a falta de perspectivas encontram  correspondência no discurso das famílias, que acabam compartilhando o  preconceito e a "naturalização" da falta de lugar do jovem considerado pela  escola um aluno-problema. Mães apontam como natural o fato de as crianças não  aprenderem a ler e não demonstram qualquer surpresa diante das atitudes rudes  com que são tratados os jovens que tentam retornar à escola - "você não vai  entrar aqui para dar porrada nos menores, vai?"; "aqui não tem mais vaga, você  nunca devia ter parado de estudar!"
Nada se reivindica. Nada se constrói  ou se transforma. A distância entre escola e família se coloca, portanto, como  condição da imobilidade e da desobrigação da escola com relação aos problemas da  comunidade. Tudo se passa como se a solução estivesse inteiramente localizada  fora do âmbito da vida escolar. Daí a existência de uma certa "permissão para  sair", como se abandonar a escola fosse "um bom negócio", uma vez que a evasão  permitiria que o jovem trabalhasse e melhorasse a condição social da sua família  - apontada pela escola como o principal fator para que os alunos não  aprendam.
O desenvolvimento de uma política educacional mais próxima  desse universo ocupa lugar central na construção de uma educação de qualidade  para todos. Assumir os desafios do diálogo entre a escola e a família é tarefa  necessária para que todas as crianças e todos os jovens encontrem oportunidades  efetivas para a conclusão do ensino fundamental e do ensino médio.  
Maria Alice Setubal, socióloga, mestre em Ciências Políticas pela  USP e doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, diretora-presidente do  Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e  fundadora e presidente da Fundação Tide Setubal, foi consultora do Unicef na  área educacional para a América Latina e o Caribe
Thais Garrafa,  psicóloga, psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, é integrante da equipe  técnica do projeto Ação Família São Miguel Paulista, da Fundação Tide Setubal  
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