Com a aprovação pelo Parlamento de  Portugal - por ampla maioria de 230 votos a 3, apesar dos protestos liderados  por intelectuais daquele país -, o acordo que unifica a ortografia em todos os  países de língua portuguesa, já aprovado pelo Brasil, vai finalmente tornar-se  realidade. Mas não imediatamente. Em Portugal isso acontecerá dentro de um  período de adaptação de seis anos, e no Brasil, em três anos, a contar de 1º de  janeiro de 2009.
O longo tempo necessário para vencer as resistências - o  acordo foi assinado em 1990 - não tem relação com as mudanças, que a rigor são  modestas. Por exemplo, no que se refere às mudanças da língua em Portugal,  desaparecem o "c" e o "p" mudos, em palavras como acção, adopção e óptimo. Com  exceção dos nomes próprios derivados, o trema deixa de existir. O hífen não será  mais usado quando o segundo elemento começar com "r" ou "s". O acento  circunflexo não será usado em palavras terminadas com hiato "oo", como em voo e  enjoo, e o acento agudo em palavras terminadas em "eia" e "oia", como ideia e  jiboia. 
Apesar do alcance limitado da reforma, haverá exceções. Os  portugueses continuarão a escrever "António" e "género" com acento agudo, e os  brasileiros, com circunflexo. Será mantido o "c" de "facto" em Portugal, porque  lá "fato" é roupa.
Por isso, do ponto de vista puramente lingüístico - a  reforma tem outras dimensões que é preciso considerar -, é difícil compreender a  resistência que ela encontrou em Portugal. Como a norma escrita em Portugal terá  1,42% de suas palavras mudadas e a do Brasil apenas 0,43%, os mais extremados  chegaram a falar em submissão a "interesses brasileiros". A opinião do deputado  lusitano Mota Soares expressa bem esse sentimento: "A língua portuguesa é o  maior patrimônio que Portugal tem no mundo." 
O problema é que essa  língua, em conseqüência da epopéia da expansão portuguesa, há muito deixou de  ser patrimônio exclusivo de Portugal - tal como o inglês, o espanhol e o francês  deixaram de pertencer apenas à Inglaterra, à Espanha e à França. Churchill, numa  de suas tiradas famosas, disse que os ingleses e os americanos eram dois povos  separados pela mesma língua. É natural e inevitável que a "mesma língua" tenha  experimentado mudanças ao ser transplantada para a América. Essas mudanças não  impedem que ela continue essencialmente a "mesma", seja o português do Brasil, o  inglês dos norte-americanos, o espanhol dos hispano-americanos ou francês dos  canadenses do Quebec.
Os brasileiros e os outros povos de língua  portuguesa só têm a ganhar com a disciplina e o rigor que ela tem em Portugal.  Desde que se evite a tentação de fazer com que essa disciplina e esse rigor  sufoquem as características ditadas pela evolução da língua fora do ambiente  original português. Não é realista recusar a contribuição dos 190 milhões de  brasileiros - no total, o português é falado por 230 milhões de pessoas - para a  língua, como acabou por reconhecer sensatamente o Parlamento português.
O  acordo é na verdade mais importante do ponto de vista político - e também do dos  negócios - do que do lingüístico, embora este tenha provocado mais barulho. Ele  deve permitir o fortalecimento dos países de língua portuguesa nos organismos  internacionais. Não por acaso, um dos principais argumentos utilizados pelos  defensores do acordo foi justamente o de facilitar a redação de documentos  internacionais em português. É evidente que grafias diferentes dificultam a  aceitação de tratados e acordos, que com elas não podem conviver, pois tanto  quanto possível têm de evitar imprecisões e ambigüidades.
Finalmente, a  unificação ortográfica, apesar de acanhada, cria boas oportunidades de negócios  para as editoras brasileiras e portuguesas. A presidente da Câmara Brasileira do  Livro, Rosely Boschini, acha que se abre um novo mercado para as editoras  brasileiras, o dos países africanos lusófonos, até aqui amplamente dominado por  Portugal. 
Mas é bom não esquecer que os portugueses têm grande tradição  e experiência nesse ramo de negócios e vão, com certeza, não apenas defender a  posição dominante que têm na África, como tentar conquistar fatias do mercado  brasileiro. Será uma concorrência acirrada e saudável. 
estado de sp 25 de maio de 2008
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