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a língua e seus dicionários...

 
PASQUALE CIPRO NETO

O babador e a moça casadoura


A língua e seus usuários são muito mais velozes do que os dicionários, que, recém- impressos, já devem algo
NA SEMANA PASSADA, trocamos dois dedos de prosa sobre o valor e o emprego dos sufixos "-eria" e "-aria". Vimos que, embora seja mais do que comum no Brasil, a forma "doceria" não aparecia no "Aurélio" antes da edição de 1999 e ainda não aparece na única edição do "Houaiss", de 2001.
O que se registrava no "Aurélio" e se registra no "Houaiss" é "doçaria".
As últimas edições do "Aurélio" dão "doceria", mas remetem o consulente a "doçaria", que, portanto, é a forma preferível para esse dicionário. A terminação "-eria" vem do francês ("-erie"), daí a "rejeição didática purista" citada pelo "Houaiss", que se refere à terminação "-aria" como canônica, ou seja, seguidora da norma.
As palavras terminadas em "-eria" talvez sejam mesmo menos comuns do que as terminadas em "-aria".
Posto isso, lembro o que me perguntaram alguns leitores depois da última coluna. Um deles queria saber se deveria trocar a velha sorveteria por uma sorvetaria. Outro estava preocupado com a possibilidade de ter de deixar de usar os serviços da lavanderia do bairro e o das bilheterias do metrô, já que não conhece nenhuma lavandaria, e no metrô não há bilhetarias. Os gaúchos e os catarinenses disseram que vão ter de fazer refeições rápidas em casa, porque as lancherias e as lancharias, abundantes nos dois Estados, vão ser todas fechadas, visto que os dicionários e o "Vocabulário Ortográfico" não registram essas formas.
Pois é, caro leitor, não sei se o ovo veio ao mundo antes do que a galinha, ou se foi a penosa que precedeu o ovo, mas, em termos da relação língua/dicionário, a ordem é clara: a língua vem antes, e o dicionário deveria registrar o que se usa hoje e também o que se usou ontem com mais freqüência do que se usa hoje.
É por essas e outras que é um tanto perigoso dizer que tal palavra não existe porque não está nos dicionários. Obviamente, a língua e seus usuários são muito mais velozes do que os dicionários, que, no exato momento em que começam a ser impressos, já estão devendo alguma coisa. Veja-se o caso de "blog" (que alguns já aportuguesaram para "blogue"). O "Houaiss" e o "Vocabulário Ortográfico" não dão (a última edição do "Aurélio", de 2004, já dá).
Somem-se à inevitável "desatualização" os eventuais cochilos, a também eventual inconsistência metodológica e as idiossincrasias desta ou daquela equipe e se chega, por exemplo, à falta de registro de "doceria", "lancheria", "lancharia" etc.
Vejamos agora outro caso interessante e talvez particular, particularíssimo. Refiro-me a uma palavra terminada em "-dor", sufixo que, como se sabe, costuma indicar o agente, o executor de um processo ("vendedor" é "aquele que vende"; "agenciador" é "aquele que agencia" etc.).
Pois bem. A palavra a que me refiro é "babador". A se levar a cabo a noção vista no parágrafo anterior sobre o sufixo "-dor", "babador" é "aquele que...". Não é, certo? Alguém já se referiu a um bebê que baba muito chamando-o de babador?
"Esse menino é um babador!" Que tal? O bebê é mesmo babão, certo?
No Brasil, "babador" acabou substituindo "babadouro", forma canônica que designa o local em que se baba, assim como o "ancoradouro" e o "atracadouro" designam, respectivamente, o local em que se ancoram e se atracam embarcações. A terminação "-douro" (ou "-doiro"), por sua vez, nem sempre indica noção de "local em que". Pode, por exemplo, indicar noção de "possibilidade de execução futura de ação" ("moça casadoura", por exemplo). É isso.

folha de sp 21 agosto 2008

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