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O estigma herdado da escravidão

 
ESTADO DE SÃO PAULO, 25 de novembro de 2007

O estigma herdado da escravidão

Após a abolição vieram trabalhadores brancos e livres, mas dóceis e submissos, com personalidade de escravo

*José de Souza Martins*

Aproveitei o feriado do Dia da Consciência Negra para percorrer e fotografar, emSão Paulo, alguns marcos históricos da consciência branca. Com facilidade nos esquecemos de que a questão racial no Brasil não se resume a racismo nem tem nele sua maior complexidade. Nós nos esquecemos de que a questão do negro não é a da marca de cor, mas a do estigma das relações de trabalho escravo que encontraram na cor a sua mais superficial identidade. Não só a cor do negro africano, de várias origens étnicas, mas também a cor do pardo, o índio de várias origens tribais.

O debate sobre o fim da escravidão não foi um debate sobre a cor do trabalhador que nos cafezais, nos canaviais ou nas estâncias do sul substituiria o negro. A planejada força de trabalho substituta seria branca ou amarela, mas dócil e submissa. Trabalhadores livres com personalidade de escravo era a receita mal disfarçada da política de imigração aos traficantes de mão-de-obra. Os trabalhadores seriam escolhidos a dedo, nas regiões mais pobres e mais atrasadas da Europa, aquelas que ainda não tivessem sido alcançadas pela cultura das reivindicações sociais própria do capitalismo industrial. Procurava-se um trabalhador branco que pudesse trabalhar como negro, dando continuidade a uma modalidade de trabalho que não sofreria significativa mudança com a abolição da escravatura.

Para as áreas prósperas do café foi enviado sobretudo o imigrante europeu, branco, que no eito cumpriria a mesma faina que, até então, fora cumprida pelo negro cativo. Sem contar os muitos negros que continuaram no eito, como não podia deixar de acontecer, fazendo o que já faziam na escravidão. O feitor que supervisionara o escravo negro supervisionava agora o colono branco. A preferência era por imigrantes que viessem com família numerosa e não pelos avulsos; era pelos analfabetos, garantia de trabalho braçal e não de reivindicações sociais e de aspirações de mobilidade social rápida. Eram meios de amansar e manter manso o trabalhador branco e livre. Trabalhador que, não raro, foi morar na mesma senzala em que morara o negro, com a diferença de que as portas para o quadrado interno foram fechadas e abertas portas e janelas para a parte de fora.

A mentalidade escravista não morreu com o fim da escravidão. Mesmo a indústria, marco de uma economia baseada no trabalho contratualmente livre, não foi imediatamente o lugar do trabalho verdadeiramente livre. A indústria, que se difundiu entre nós logo depois da abolição da escravatura, nasceu marcada por formas servis de dominação, o trabalhador sem direitos. O capital, libertado do tráfico negreiro e da imobilização na pessoa do cativo, apenas buscou outros ramos de aplicação. Nas fábricas, a jornada de trabalho era de 12 horas não só para adultos, mas também para crianças. Mulheres e crianças cumpriam jornadas noturnas, mesmo crianças com menos de 14 anos de idade, muito pior do que no cativeiro, em que isso não ocorria. Nessas condições o trabalhador literalmente se tornava matéria-prima do processo produtivo. Escravo, quando morria, era prejuízo. Trabalhador livre, quando morria, não causava o menor prejuízo ao processo produtivo nem ao capital. Os bairros operários eram bairros maciçamente povoados por trabalhadores brancos e europeus imigrados ou filhos de europeus, gente muito pobre. A classe operária não tinha marcas de cor na face. Teve por muito tempo os estigmas invisíveis da disfarçada servidão na personalidade.

Foi num desses bairros operários, no Belenzinho, lugar de minha excursão fotográfica no Dia da Consciência Negra aos monumentos da consciência branca, que o médico carioca Jorge Street (1863-1939) construiu e estabeleceu a fábrica da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, que fabricava sacaria para café. Ao lado, construiu a Vila Maria Zélia, uma vila operária. A Vila Maria Zélia, ainda hoje habitada por descendentes dos antigos operários, é um documento arquitetônico de uma consciência empresarial de vanguarda nas relações de trabalho. No confronto com favelas e cortiços de hoje, causa espanto pelo avanço social que já representava. Construída entre 1911 e 1916, expressava o imaginário de um industrial progressista, que tivera educação humanista na Alemanha e acreditava piamente que o lucro de uma verdadeira empresa capitalista vinha do reconhecimento do trabalhador como juridicamente igual porque, como sujeito de deveres, era também sujeito de direitos. Ele entendia que a fábrica era uma comunidade de moradores que trabalhavam juntos na linha de produção industrial. Uma relação romântica que tentava preservar a concepção pré-moderna da conjugação de moradia e trabalho e fazer dela o fundamento de uma concepção socialmente avançada da modernidade.

A esquerda da época, anarquista, denunciava Jorge Street como burguês cínico e hipócrita. Irritava-se porque Street era um industrial que se antecipava às demandas operárias. Os industriais da época também o detestavam porque as sensivelmente melhores condições de trabalho em sua fábrica despertavam aspirações e demandas dos operários das outras fábricas. Pouco depois, em junho de 1917, explodiu a greve geral do operariado, que se alastrou pelo Estado. Reivindicava o que Street já reconhecia como direito. Jorge Street perderia a fábrica em 1923. Acabaria se tornando servidor público e assessor da Fiesp, de que fora um dos fundadores.

A fábrica abandonada, após a Intentona Comunista, no Rio de Janeiro, em 1935, seria transformada em presídio político, o presídio Maria Zélia. No presídio, os filhos insubmissos da elite paulista acabaram se encontrando com os proletários dos bairros pobres e fabris de São Paulo: Caio Prado Júnior, Paulo Emílio Salles Gomes, Pagu, numa lista grande. Na cadeia, Paulo Emílio criou o provisório teatro político do Maria Zélia. Pelas bucólicas ruas da velha vila operária, naquela tarde de céu azul de 20 de novembro, soprava uma brisa de insubmissa liberdade incolor.

*José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

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