Dois dicionários bilíngues recém-lançados vertem provérbios  e palavrões da língua inglesa e apontam para a maior profissionalização do setor  no Brasil 
IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A  FOLHA - 3 abril 2005
No eruditíssimo prefácio que escreve  para o "Dicionário de Provérbios Inglês-Português/Português-Inglês", de Roberto  (e Helena da Rosa) Cortes de Lacerda, o lexicógrafo Agenor Soares dos Santos  discorre sobre a abrangência do conceito de provérbio, mostrando as áreas  limítrofes com seus afins: os adágios, as frases feitas, as máximas, os anexins,  as expressões idiomáticas, os símiles e as metáforas.
Mesmo ignorando as  sutis distinções entre esses termos, a verdade é que, para o leitor de língua  estrangeira e mais ainda para o tradutor, é preciso que a campainha do  "desconfiômetro" funcione sempre ao surgir um deles, para que não se entenda ao  pé da letra tudo o que vem escrito e se encontre um equivalente, um substituto,  uma correspondência em nossa língua, que restitua ao termo ou frase o verdadeiro  tom e sentido com que se apresenta no original. O sábio Antônio Houaiss chamava  de "isotopias" essas substituições às vezes audaciosas para criar ou encontrar,  em outra língua e sob outra forma, a correspondência tradutória perfeita de uma  frase, conceito ou expressão.
Assim como nos manuais didáticos os tradutores  aprendem que as citações bíblicas não devem ser traduzidas diretamente, mas  transpostas segundo uma edição autorizada da Bíblia, também no caso dos  provérbios incumbe encontrar um referencial compatível para essas transposições.  Cabe dizer que esse manual de consulta se tornou agora disponível, ficando o  problema da tradução de provérbios em inglês amplamente resolvido com a  ferramenta indispensável deste dicionário.
Esforço de  pesquisa
Sua origem, ou talvez sua seqüência lógica, pode ser encontrada  em outra obra dos mesmos autores (coadjuvados por Estela dos Santos Abreu e  Didier Lamaison): o "Dicionário de Provérbios Francês-Português-Inglês", lançado  em 1999 pela Lacerda e ampliado em 2004 numa edição da Unesp. A reformulação ou  a criação dessa nova estrutura lexical, no entanto, ganhou "momentum" para quem  lida apenas com o idioma inglês -"a língua predominante do mundo moderno", nas  palavras do prefaciador -ao propiciar mais agilidade e objetividade na forma de  dicionário reversível.
Com o campo lingüístico circunscrito a um único idioma  -decerto não pelo vezo itamaratiano de "eliminar" o francês-, a consulta se faz,  no caso, imediata, dispensando o passeio inicial pelo espantoso elenco levantado  por Dider Lamaison ou a prévia consulta aos índices complementares, que dão às  outras edições um caráter de abrangência compatível com trabalhos de maior  envergadura.
Tom proverbial
Além do minucioso esforço de  pesquisa e compilação, louve-se nos autores a capacidade de ter criado  provérbios "semelhantes" em português sempre que não encontravam uma  equivalência preexistente, o que permitirá aos tradutores manterem o tom  proverbial das citações, em vez de transcrevê-las literalmente, o que em geral  só empobrece o texto.
É o caso, por exemplo, de "better the devil you know  than the devil you don't know", que o prefaciador viu traduzido por um  inexpressivo "melhor o diabo conhecido que o diabo desconhecido" e para o qual  os autores conseguiram cunhar o belo símile: "Mais vale estrada velha que vereda  nova". A ele, pois, tradutores e leitores em geral: mais vale um dicionário de  provérbios à mão que dez suposições voando.
O aliciante mercado que se  escancarou para os tradutores brasileiros com a multiplicação dos canais de TV a  cabo -pelos quais transitam cerca de 1.500 filmes por mês, fora documentários,  entrevistas, séries cômicas e quejandos provocou, a princípio, uma onda de  ofertas de mão-de-obra não-qualificada que por uns tempos empulhou e confundiu  os telespectadores.
Oferecendo-se a preços de liquidação, estudantes e  aposentados, com sumárias noções de inglês, passaram a traduzir para esse novo  mercado, que lhes parecia pouco exigente, o que provocou uma inundação de  impropriedades, traições, absurdos, que atestavam o grau de incapacidade desses  tradutores e o nível de aceitação pacífica do público. A velha Birmânia  desapareceu do mapa dando lugar a Burma; Gênova, a terra de Colombo, aparecia  então como Gennes; o rio Reno tornou-se o Rhin, e até o velho Platão aplastou-se  num anônimo Plato.
Sem falar nos descalabros da tradução de frases  idiomáticas ou em construções semânticas mais rebuscadas, que eram transpostas  ao pé da letra ou simplesmente omitidas ou massacradas pelos tradutores. Nas  legendas dos filmes passou de repente a "chover gatos e cachorros" no Brasil e,  numa peça de Shakespeare, por exemplo, a palavra "subject" (súdito) surgia como  "um sujeito", pouco faltando para ser transposta como "um cara".
Por sorte,  houve a reação de telespectadores mais exigentes e da crítica especializada de  televisão em geral, e hoje pode-se dizer que o nível das traduções (de filmes,  por exemplo) é bastante boa e, em alguns casos, até mesmo elogiável. E louve-se  a iniciativa (prática que já vinha sendo utilizada na Europa há decênios) de  colocar nos créditos o nome do tradutor das respectivas produções, o que lhe  atribui ao mesmo tempo o mérito e a responsabilidade do que foi traduzido.
Um  problema, no entanto, persiste: o da gradação ou tom do vocábulo empregado. Como  andamos numa onda de liberação geral, os nossos "legendários" resolveram pegar  pesado e traduzir, com todas as letras, palavras que eram antes consideradas  tabus. É claro que não estamos mais nos tempos em que precisávamos grafar m...  ou nos referirmos a Cambronne para traduzir a "shit" que aparece na linguagem  vulgar do cinema.
Mas há que atentar para a adequação do termo no contexto em  que é empregado, pois em muitos casos esse "shit", por exemplo, corresponderá  simplesmente a "droga!", e não à hoje (de)liberada merda. Carregar de propósito  nas tintas, engrossar as falas mais do que se comportam na língua original é  incorrer nos grosseiros deslizes dos tradutores que chovem cachorros ou fazem  vênias aos sujeitos reais.
Terreno pegajoso
O "Dicionarinho do  Palavrão & Correlatos Inglês-Português/Português-Inglês", de Glauco Mattoso,  que acaba de sair em edição revista e aumentada, é um laborioso trabalho de  pesquisa num terreno no mínimo escorregadio e pegajoso e, sem dúvida, um prato  feito para os tradutores de filmes apimentados. Seguramente, todos os palavrões  de ambas as línguas foram ali arrolados, com suas dezenas e mesmo centenas de  sinônimos e variantes.
Seu manuseio, no entanto, requer algum cuidado. O  tradutor dispõe ali de um fornecimento, por assim dizer, "no atacado", mas  compete à sua experiência e sensibilidade proceder à necessária triagem e  seleção para encontrar a equivalência de tom compatível com o que traduz.
Não  se trata de puritanismo démodé, mas nada é mais desagradável do que ouvir um  personagem dizer uma palavra quase banal em inglês e encontrar na legenda uma  tatarana flamejante. Um dicionário sem dúvida útil aos tradutores, já que em  geral essas palavras não se encontram compendiadas nos léxicos tradicionais.  Mas, cautela!, diante dessa ampla varredura de Mattoso, vocês podem escorregar  em ouriços que nem os mais desbocados millers e bukowiskis ousariam  perpetrar.
537 págs., R$ 99,00 de Roberto Cortes de Lacerda e Helena da Rosa Cortes de Lacerda. Ed. Campus/Elsevier (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, CEP 20050-006, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/3970-9300).
Dicionarinho do Palavrão & Correlatos Inglês-Português/ Português-Inglês
315 págs., R$ 23,90 de Glauco Mattoso Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).
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