Estado de SP  03  agosto 2007
 Como surgem os livros? No começo dos anos 70, eu trabalhava na editora  Abril, na revista Realidade, que estava em crise, sofrendo um processo de  desgaste provocado pela censura, pela ditadura, pelo clima de cerceamento que  flutuava sobre a mídia. A Realidade era uma revista feita por uma equipe  impecável, trazia um formato novo, que tinha obtido imenso sucesso pelos textos  primorosos, sem dúvida, os melhores da imprensa brasileira. As reportagens eram  instigantes e os ensaios e artigos, provocativos, inteligentes. Claro, dizer a  verdade e mostrar como se vivia neste país militarizado não era confortável e a  publicação pagou um preço, sangrada lentamente. Eu tinha sido deslocado da  Claudia para a Realidade, mas quase não havia o que fazer. Chegava todos os  dias, sentava-me à mesa e ficava lendo jornais e revistas estrangeiras, o que  havia em grande quantidade na editora. Nem havia clima para aproveitar o tempo e  fazer literatura. Um tédio absoluto. Certa manhã, apanhei uma caneta Bic e  fiquei traçando um circulo na palma da mão. Coisa de louco. Passou o Jorge  Andrade e olhou intrigado.
Jorge foi um de nossos maiores dramaturgos.  Autor de A Moratória, A Vereda da Salvação, Ossos do Barão, entre outras peças e  de algumas novelas de televisão. Autor sóbrio, de um rigor extremado, era, na  Realidade, especialista em perfis. Captava com uma sensibilidade detalhes das  pessoas que entrevistava e as transformava em seres pulsantes. Entrevistar é  saber penetrar nas pessoas e tirar delas a verdade, dizia. Não fosse um  teatrólogo de primeira linha. Jorge olhou aquele circulo na mão e  indagou:
- O que é isso? Um furo?
Criadores estão criando,  imaginando, transfigurando a realidade o tempo inteiro. Respondi:
-  Verdade, é um furo.
- Como aconteceu?
Senti que era um desafio  para um jogo de fantasias.
- Estava no ônibus, a mão começou a coçar, me  incomodando, coçava, coçava, coçava, me deixava maluco. Quando cheguei aqui, na  Abril, ao coçar uma última vez, a pele do centro da mão se dissolveu e apareceu  o furo.
- Um furo perfeito, feito com um compasso. Aperfeiçoado por um  bisturi. Um cirurgião plástico não faria melhor. Só que tome cuidado.
-  Com o quê?
- Na Abril estão demitindo quem tem furo na mão.
- Por  quê?
- Quem tem um furo é uma pessoa diferente. E os diferentes  incomodam, os que se julgam normais ficam inquietos, ninguém gosta de  inquietações, questionamentos.
Escondi a mão na gaveta, como que me  protegendo. À noite, em casa, pensei no furo na mão, nas pessoas diferentes.  Fazia muito calor. Imaginei um homem casado há quase 30 anos, um casamento  acomodado. Um dia, ele descobre um furo na mão. É demitido, fica andando pelas  ruas. Uma quentura insuportável pesa, as pessoas morrem ao sol. O conto se  formatou, coloquei no papel, nos dias seguintes escrevi e reescrevi, coloquei na  gaveta, não sabia o que fazer, me parecia incompleto, inverossímil. Na verdade,  inverossímil era a realidade que vivíamos. Passados uns anos, retrabalhei a  história e publiquei na revista Homem Vogue. No entanto, continuei pensando  nele. Estranhei, porque basta a publicação para que eu me distancie da história,  não quero mais saber, não é mais minha, é do leitor. Mas continuava a pensar e  assim se passou mais um tempo. Em 1978 apanhei o texto para reescrever e  transformei-o em um romance de quase 400 páginas chamado Não Verás País  Nenhum.
Uma história que se passa em um Brasil sem árvores, sem água,  cada vez mais quente, o Amazonas é deserto, São Paulo é uma cidade com 60  milhões de habitantes, dividida em guetos, de onde as pessoas podem sair somente  com autorizações. As ruas foram paralisadas por gigantescos congestionamentos.  Este é o clima de Não Verás, lançado em 1982. Dia desses, Luis Alves, meu  editor, lembrou: o romance está fazendo 25 anos, não vale uma comemoração? Antes  que eu dissesse sim, a edição especial, supertransada, estava quase pronta, ele  me pediu um acréscimo, algo que pudesse diferenciar. Trouxe trechos do que  chamei Diário de Trabalho. Parte das quase 800 anotações que fiz para o livro ao  longo de três anos. Relato das dificuldades e soluções encontradas no cotidiano  da escrita. De como as idéias surgiam, de onde vinham. Está tudo dentro desta  edição prefaciada por Washington Novaes.
Mas aniversário se comemora com  um encontro entre as pessoas, disse o Pedro Herz da Livraria Cultura. E o  encontro foi programado no Teatro Eva Herz, no interior da nova Cultura do  Conjunto Nacional, que tem sido, estes anos todos, um refúgio meu, da minha  geração. Neste encontro, mais do que abraços, decidi falar, contar como o livro  nasceu e cresceu, como surgiram o Souza e a Adelaide, sua mulher, com o mistério  do baú de vestidos coloridos, de onde vieram organizações como os Civiltares e  os Militecnos, narrar a poesia do Vale dos Pássaros de Pó, a tragédia do navio  que levava do Brasil as crianças para que não morressem, mostrar como o governo  sempre tem soluções ridículas como a marquise extensa, destinada a proteger de  um sol que matava, a história da velha que achava as árvores malditas, os  meninos negros que ficaram brancos depois de uma doença.
Quem quiser  conhecer os mecanismos que movimentam os bastidores de um livro e descobrir e  perguntar sobre o processo de criação - que está ao alcance de todos - venha ao  encontro na terça-feira, dia 7, às 19h30, no Teatro da Livraria Cultura, Avenida  Paulista, Conjunto Nacional. Não Verás País Nenhum é meu livro mais traduzido,  mais vendido, mais adotado, mais lido principalmente por jovens. Livro que, 25  anos atrás, falou do aquecimento insuportável do ambiente, em ritmo de utopia (e  utopia não é mais), antecipando em um quarto de século a declaração daqueles  2.500 cientistas do mundo todo que acabaram de lançar um manifesto alertando  para o aquecimento global. A literatura já tinha saído na frente da vida. 
 
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