A imagem do bem limitado e o mundo  brasileiro 
Roberto  DaMatta 
 nov 2007
O  antropólogo George Foster usou a idéia do bem limitado para compreender uma  comunidade fundada em redes hierárquicas, onde qualquer movimento  individualizador era visto como uma ameaça ao equilíbrio social e assim sujeito  à inveja, ao mau olhado e à feitiçaria.
Nela, o mundo era lido pela  experiência da escassez e da pobreza, de modo que se uma pessoa tinha sucesso ou  se destacava por algum evento especial (paternidade, casamento, ganho numa  loteria ou perda de um parente), ela era alvo de inveja. A inveja e o horror ao  sucesso inibiam a individualização positiva, a mobilidade social e a  competição.
A tese do bem limitado me fez ver que nas sociedades onde o  individualismo existe, mas é tolhido e considerado como um sinônimo de egoísmo,  o sistema tende a ser percebido como mais fechado e menor do que nos casos onde  as hierarquias perpetradas por redes sociais imperativas são substituídas pelo  individualismo e pela igualdade como uma ideologia dominante.
A noção de  um beneficio limitado, de uma sociedade onde muitos são chamados e poucos  escolhidos, fotografa um sistema onde destacar-se é um ato de desabusado  egoísmo, pois nestes sistemas a 'cidadania' seria dada naquele conhecido adágio  brasileiro que consagra o 'cada qual no seu lugar' que realmente sinaliza o  perigo de ultrapassá-lo. Colocar o chapéu onde se pode apanhar é o outro lado da  inveja de quem sai de uma pauta aristocrática aberta às novidades de fora e  ranzinza com as razões locais. Quando se usa o 'está se achando' como um sinal  negativo de uma apresentação na qual a auto-importância é destacada, revela-se  como os controles para permanecer no seu lugar são levados a sério mesmo neste  Brasil de Bovespa bombando e governado por um Lula cada vez mais neoliberal e  disposto a canibalizar a tal 'herança maldita'; de resto, um trabalho político  magistral simplesmente abandonado pelos tucanos.
A vantagem dos sistemas  onde todos se ligam com todos é que a lealdade e a proteção anestesiam as  enormes desigualdades sociais. Neles, todos se sentem mesmo culpados, e poucos  têm orgulho coletivo, pois o mais bem-sucedido, rico, honesto ou bonito, sempre  tem como contrapeso o mais pobre, o mais canalha e o mais fracassado. Daí a  leitura perpetuamente negativa de si mesmo. Aqui, o famoso narcisismo às avessas  de Nelson Rodrigues não é uma figura de linguagem, mas um fato da  vida.
Em tais grupos, não há espaços individualizados ou abertos. Não  existe fronteira. Tudo tem dono, patrão e lugar. O pessimismo é dominante porque  os relacionamentos são marcadas por vergonha, pena pelas lealdades decorrentes  da troca de obséquios que cada vez mais prendem uma pessoa a outra. Os  desgarrados são lidos como inovadores, gênios ou miseráveis.
Como o maior  pecado é ter opinião e ser autônomo, há uma enorme dificuldade de separar  pessoas de regras, cargos ou preconceitos morais. Se as pessoas são donas de  pessoas, elas são ainda mais donas de cargos e normas que deveriam valer para  todos.
Daí a criminalização do sucesso. E a vigência da crença segundo a  qual o êxito de um profissional, em qualquer área, é um sinal de que o  bem-sucedido acaba recebendo muito mais do que merece, de modo que essa  'mais-valia' simbólica, teria que ser de punida, pois seria a parte - como  expressou Marx com nitidez - que ele estaria roubando de alguma pessoa do  sistema. Nestas sociedades, é complicado convencer um artista que o sucesso do  colega significa uma abertura do sistema para a obra de todos os artistas, pois  ele sempre vê o êxito do outro como uma agressão ou como um sinal de que jamais  terá vez neste mundo. O sucesso universal que todos um dia vão obter, ainda que  seja por 15 minutos, só poderia ser a idéia de um Andy Warhol. Um artista, é  claro; mas antes de tudo, um americano crente de que basta esperar na fila que,  um dia, você vai ter tudo o que sonhou.
O crime do êxito está ligado a  esse desamarrar do sistema. Mas, pior que isso, é descobrir que ele sorri para  as pessoas erradas, para quem não faz parte da 'turma' correta. O 'estar por  dentro ou por fora' fala desse pertencer generalizado, ainda que humilde, a  alguma rede de relações. Quem assume uma individualidade contundente, corre o  risco de ficar por fora. Foi o caso de Lima Barreto e, quem sabe, de Pedro  II.
Entende-se agora a enorme simpatia por qualquer tipo de coletivismo,  desde que o bem a ser dividido não seja o nosso, mas o 'bem comum' que não  pertence a ninguém num sistema constituído de pessoas concretas, jamais de  cidadãos universais. Outro dado marcante é a existência de revolucionários  oficiais, do mesmo modo que pululam canalhas institucionais. Os transformadores  acusam o sistema sem piedade, mas com malícia; já os canalhas são os que jamais  obedecem às leis, mostrando que, quando se 'chega lá', o céu, e não a cadeia, é  o limite.  
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