Após a abolição vieram trabalhadores brancos e livres, mas dóceis e submissos, com personalidade de escravo
*José de Souza Martins*
Aproveitei o feriado do Dia da Consciência Negra para percorrer e  fotografar, emSão Paulo, alguns marcos históricos da consciência branca. Com  facilidade nos esquecemos de que a questão racial no Brasil não se resume a  racismo nem tem nele sua maior complexidade. Nós nos esquecemos de que a questão  do negro não é a da marca de cor, mas a do estigma das relações de trabalho  escravo que encontraram na cor a sua mais superficial identidade. Não só a cor  do negro africano, de várias origens étnicas, mas também a cor do pardo, o índio  de várias origens tribais.
O debate sobre o fim da escravidão não foi um  debate sobre a cor do trabalhador que nos cafezais, nos canaviais ou nas  estâncias do sul substituiria o negro. A planejada força de trabalho substituta  seria branca ou amarela, mas dócil e submissa. Trabalhadores livres com  personalidade de escravo era a receita mal disfarçada da política de imigração  aos traficantes de mão-de-obra. Os trabalhadores seriam escolhidos a dedo, nas  regiões mais pobres e mais atrasadas da Europa, aquelas que ainda não tivessem  sido alcançadas pela cultura das reivindicações sociais própria do capitalismo  industrial. Procurava-se um trabalhador branco que pudesse trabalhar como negro,  dando continuidade a uma modalidade de trabalho que não sofreria significativa  mudança com a abolição da escravatura.
Para as áreas prósperas do café  foi enviado sobretudo o imigrante europeu, branco, que no eito cumpriria a mesma  faina que, até então, fora cumprida pelo negro cativo. Sem contar os muitos  negros que continuaram no eito, como não podia deixar de acontecer, fazendo o  que já faziam na escravidão. O feitor que supervisionara o escravo negro  supervisionava agora o colono branco. A preferência era por imigrantes que  viessem com família numerosa e não pelos avulsos; era pelos analfabetos,  garantia de trabalho braçal e não de reivindicações sociais e de aspirações de  mobilidade social rápida. Eram meios de amansar e manter manso o trabalhador  branco e livre. Trabalhador que, não raro, foi morar na mesma senzala em que  morara o negro, com a diferença de que as portas para o quadrado interno foram  fechadas e abertas portas e janelas para a parte de fora.
A mentalidade  escravista não morreu com o fim da escravidão. Mesmo a indústria, marco de uma  economia baseada no trabalho contratualmente livre, não foi imediatamente o  lugar do trabalho verdadeiramente livre. A indústria, que se difundiu entre nós  logo depois da abolição da escravatura, nasceu marcada por formas servis de  dominação, o trabalhador sem direitos. O capital, libertado do tráfico negreiro  e da imobilização na pessoa do cativo, apenas buscou outros ramos de aplicação.  Nas fábricas, a jornada de trabalho era de 12 horas não só para adultos, mas  também para crianças. Mulheres e crianças cumpriam jornadas noturnas, mesmo  crianças com menos de 14 anos de idade, muito pior do que no cativeiro, em que  isso não ocorria. Nessas condições o trabalhador literalmente se tornava  matéria-prima do processo produtivo. Escravo, quando morria, era prejuízo.  Trabalhador livre, quando morria, não causava o menor prejuízo ao processo  produtivo nem ao capital. Os bairros operários eram bairros maciçamente povoados  por trabalhadores brancos e europeus imigrados ou filhos de europeus, gente  muito pobre. A classe operária não tinha marcas de cor na face. Teve por muito  tempo os estigmas invisíveis da disfarçada servidão na personalidade.
Foi  num desses bairros operários, no Belenzinho, lugar de minha excursão fotográfica  no Dia da Consciência Negra aos monumentos da consciência branca, que o médico  carioca Jorge Street (1863-1939) construiu e estabeleceu a fábrica da Companhia  Nacional de Tecidos de Juta, que fabricava sacaria para café. Ao lado, construiu  a Vila Maria Zélia, uma vila operária. A Vila Maria Zélia, ainda hoje habitada  por descendentes dos antigos operários, é um documento arquitetônico de uma  consciência empresarial de vanguarda nas relações de trabalho. No confronto com  favelas e cortiços de hoje, causa espanto pelo avanço social que já  representava. Construída entre 1911 e 1916, expressava o imaginário de um  industrial progressista, que tivera educação humanista na Alemanha e acreditava  piamente que o lucro de uma verdadeira empresa capitalista vinha do  reconhecimento do trabalhador como juridicamente igual porque, como sujeito de  deveres, era também sujeito de direitos. Ele entendia que a fábrica era uma  comunidade de moradores que trabalhavam juntos na linha de produção industrial.  Uma relação romântica que tentava preservar a concepção pré-moderna da  conjugação de moradia e trabalho e fazer dela o fundamento de uma concepção  socialmente avançada da modernidade.
A esquerda da época, anarquista,  denunciava Jorge Street como burguês cínico e hipócrita. Irritava-se porque  Street era um industrial que se antecipava às demandas operárias. Os industriais  da época também o detestavam porque as sensivelmente melhores condições de  trabalho em sua fábrica despertavam aspirações e demandas dos operários das  outras fábricas. Pouco depois, em junho de 1917, explodiu a greve geral do  operariado, que se alastrou pelo Estado. Reivindicava o que Street já reconhecia  como direito. Jorge Street perderia a fábrica em 1923. Acabaria se tornando  servidor público e assessor da Fiesp, de que fora um dos fundadores.
A  fábrica abandonada, após a Intentona Comunista, no Rio de Janeiro, em 1935,  seria transformada em presídio político, o presídio Maria Zélia. No presídio, os  filhos insubmissos da elite paulista acabaram se encontrando com os proletários  dos bairros pobres e fabris de São Paulo: Caio Prado Júnior, Paulo Emílio Salles  Gomes, Pagu, numa lista grande. Na cadeia, Paulo Emílio criou o provisório  teatro político do Maria Zélia. Pelas bucólicas ruas da velha vila operária,  naquela tarde de céu azul de 20 de novembro, soprava uma brisa de insubmissa  liberdade incolor.
*José de Souza Martins é professor titular de  Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP  
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