José Saramago - entrevista em 2005
Entrevista exclusiva com o escritor José Saramago
José Saramago fala de seu novo livro, Don Giovanni, e de sua paixão pela ópera
LUIS ANTÔNIO GIRON
| Divulgação | 
O maior escritor da língua portuguesa, José Saramago, de 75 anos, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, acaba de lançar no Brasil o livro Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido (Companhia das Letras, 136 págs., R$ 29,00) . Na realidade, é uma peça de teatro, uma comédia, pensada para virar libreto em italiano de uma ópera. A parceria com o compositor italiano Azio Corghi já resultou numa ópera, que deveria ter sido estreada no teatro alla Scala de Milão em março, mas uma greve adiou a estréia para data indeterminada.
No sua comédia, Saramago retoma o mito de Don Juan e homenageia o compositor da ópera homônima de Wolfgang Amadeus Mozart com libreto de Lorenzo da Ponte, estreada em Praga em 1787. Apaixonado pela ópera de Mozart, Saramago resolve absolver o conquistador impenitente, numa seqüência de três atos hilariantes.
Nesta entrevista à ÉPOCA, feita por email, José Saramago conta sobre seus gostos musicais, o que pensa da dramaturgia operística e adianta o seu novo romance, que tem como personagem um violoncelista.
ÉPOCA - Como o senhor distingue o trabalho de  dramaturgia ''declamada'' da dramaturgia para ópera? 
José  Saramago - Consideremos o caso de Lorenzo da Ponte, libretista, como se  sabe, da ópera Don Giovanni de Mozart. Nessa época o libretista tinha de  escrever para a música porque, de um modo geral, a música preexistia ao texto,  quer dizer, a música primeiro e só depois o texto. Composta uma ária, mandava-se  ao libretista, e este, que sabia música, escrevia as palavras necessárias,  seguindo, claro está, a linha argumental antes estabelecida. Hoje as coisas são  diferentes. Tanto assim que eu pude escrever o meu Don Giovanni como se ele se  destinasse a teatro declamado, e não a ópera. Estava a escrever para uma ópera,  é certo, mas não tinha que subordinar o texto a uma música que, aliás, nesse  momento, ainda estava por compor.
ÉPOCA - Os outros trabalhos com o compositor  italiano Azio Corghi foram mais adaptações de romances do que peças propriamente  ditas? 
Saramago - No caso de Memorial do Convento, sim, mas a  ópera Divara, também de Azio Corghi, foi composta sobre a minha peça de teatro  In nomine dei, para esse fim escrita. A transformação do texto teatral em  libreto esteve praticamente, toda ela, a cargo de Corghi, apenas com reduzidas  intervenções minhas.
ÉPOCA - Que particularides houve nesta troca de  emails e cartas com Corghi para Don Giovanni? Foi um trabalho mais árduo ou  imaginativo que os anteriores? 
Saramago - Árduo não direi, mas  imaginativo, com certeza. O excelente comentário da musicóloga italiana  Graziella Seminara, publicado em apêndice à edição de Don Giovanni ou o  Dissoluto absolvido, mostra foi como vivo e mutuamente estimulante o diálogo  entre o músico e o escritor. Cada um em sua casa, com dois mil quilômetros a  separar-nos, pudemos trabalhar como se estivéssemos lado a lado.
ÉPOCA - O sr. concorda com Joseph Kerman, que  afirma ser o compositor o dramaturgo final da ópera? 
Saramago -  Não me sinto com autoridade para discutir o assunto, em todo caso atrevo-me a  dizer que a minha experiência de espectador me sugere exatamente o contrário.  Lembro-me de ter visto em Berlim um Rigoletto cuja encenação e cuja dramaturgia  eram a tal ponto radicais, a tal ponto subversivas, que me resultou extremamente  difícil seguir uma música que eu conhecia de cor e salteado. O que os olhos viam  quase anulava o que os ouvidos se esforçavam por escutar.
ÉPOCA - Como o sr. julga a dramaturgia  operística de Lorenzo da Ponte? Foi desafiador retomar a parte final do Don  Giovanni de Da Ponte para seguir o seu dramma gioccoso? Aliás, podemos chamar a  sua peça de 'dramma giocoso' ou de 'bufoneria' pura e simples? Porque há  passagens realmenre hilariantes... 
Saramago - Recordo que o Don  Giovanni de Mozart foi chamado ópera cômica e ainda hoje conserva essa  designação, embora ela possa parecer algo estranha a um espectador  contemporâneo. O que Mozart conseguiu, com suprema mestria, foi equilibrar a  ópera bufa, que é a base da sua estrutura musical, e a ópera séria, imposta pelo  carácter das suas personagens. Por minha parte, uma vez que o meu propósito era  desmistificar toda a história de Don Giovanni, mas não só a dele, o caminho  estava traçado de antemão: humor, ironia, mas sobretudo sarcasmo. Aquele que sai  menos mal parado ainda é o próprio Don Giovanni.
ÉPOCA - O sr. chegou a estudar Tirso de Molina,  José Zorrilla e outros para compor a sua peça? A impressão é que Da Ponte  constituiu a única fonte... 
Saramago - Nunca foi minha intenção  fazer uma espécie de arqueologia textual passeando por todos os autores que  trataram o tema desde Tirso de Molina. O meu Don Giovanni começa onde acaba o de  Lorenzo da Ponte, é de alguma maneira complementar dele. E a pergunta que  constitui o ponto de partida da peça dos meus romances - 'E se a Península  Ibérica se separasse de Europa? E se a caverna de Platão estivesse debaixo de um  centro comercial?' - também se encontra nesta peça: 'E se Don Giovanni não  tivesse caído no inferno?'. Feita a pergunta, a pergunta essencial, as  conclusões surgem quase de forma espontânea.
ÉPOCA - O sr. já ouviu a música de Azio Corghi  para Don Giovanni? Quando estreará a montagem do La Scala? É mesmo mais  para Falstaff do que para o serialismo a que Corghi vinha se dedicando  ultimamente? 
Saramago - Ainda não ouvi a música de Corghi. A  estreia da ópera estava marcada para o dia 10 de março, mas uma greve da  orquestra levou ao cancelamento do espectáculo. Espero que o assunto venha a  resolver-se e que possamos ver e ouvir um Don Giovanni que não é tão má pessoa  como costumam pintá-lo. Não é a primeira vez que isto nos sucede, a Azio Corghi  e a mim. A ópera Blimunda também foi cancelada em Lisboa no dia que devia ser o  da sua estreia. Parece que os músicos fazem mais greves que os  operários...
ÉPOCA - Don Giovanni, chamada por muitos  de "a ópera das óperas", é a sua favorita também? Ou há outras óperas que o  inspiram de certo modo? 
Saramago - Don Giovanni é, para  mim, como para muita gente, a ópera suprema, a tal ponto que gostaria que o meu  texto fosse visto como uma homenagem a Mozart. E tenho a pretensão de crer que  ele não desgostaria de saber que Don Giovanni continuou vivo depois da  estúpida maldição do Comendador.
ÉPOCA - Qual a sua ligação com a música? Gosta  de ouvir clássicos, jazz, popular portuguesa e brasileira? 
Saramago  - Gosto de música, ouço-a continuamente. Os clássicos, claro, mas também  cantores como Jacques Brel - ouça-se ''Les Vieux'' ou ''J'Arrive'' - ou Leonard  Cohen, e muitíssimos mais que não caberiam nesta entrevista. Gosto da boa música  popular brasileira e portuguesa, e tenho uma boa colecção de discos de uma e de  outra. O jazz interessa-me menos, mas a culpa é com certeza minha...
ÉPOCA - O que o sr. escreve no momento? Mais  uma ficção? Quais as suas obsessões ficcionais no momento? O que ainda o desafia  ou o encanta? 
Saramago -  Estou a escrever um romance que terá o título de As Intermitências da  Morte. Dele nada direi, a não ser que há um violoncelista metido na  história. Como tenho dito algumas vezes, utilizo o romance como veículo para a  reflexão. Reflexão sobre quê? Sobre a vida, sobre  isto.
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