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O sentimento, o afeto e a pulsão

Uma aula do meu grande mestre Claudio Ulpiano.
 
Olha, eu vou usar... - muito pouco, porque nem todas as pessoas viram...- um pouquinho do Scarface. (Certo?) Não muito, pouco. Scarface foi um filme do Howard Hawks, que passou agora. E o que me importa, em primeiro lugar, nesse filme, é a classificação que eu vou fazer nele...- de imagem-ação. Essa questão da imagem-ação, ela é como que um solo, onde eu vou passar muito - para que vocês entendam o resto.
 
Quando eu falar imagem-ação.. (eu vou devagar porque vai chegar mais gente, viu?) Eu vou utilizar - representação orgânica - como sinônimo de imagem-ação e a presença integral, no cinema-ação, do chamado esquema sensório-motor - conforme eu coloquei ontem. Então, na imagem-ação, o esquema sensório-motor tem que funcionar perfeitamente. Mas nesse filme - Scarface - (estou indo devagar porque vai chegar mais gente) para os que viram - depois eu mudo, e não uso mais esse filme - nota-se que ele vai.. se auto -destruindo em função de certos comportamentos que ele tem - até que no final ele revela o amor incestuoso pela irmã e ali é a queda dele.
 
(Eu vou fazer o seguinte: eu vou dizer - e aqui tem que ser marcado - porque é para entrar no curso... não tem jeito!) Eu vou dizer que o Scarface está num meio histórico. E o meio histórico pertence à imagem-ação. Nesse meio histórico - que eu posso também chamar de situação - as personagens se comportam. Então, no cinema-ação a gente tem o meio histórico e tem as personagens com um comportamento. Esse comportamento - no Scarface - se altera. Ele tem [seu] comportamento alterado, em primeiro lugar, porque o meio do qual ele participa - que é o meio dos gângsteres - é um meio em que as alianças são frágeis e reversíveis. (Quando vocês não entenderem levantem o dedo...)
 
Alianças frágeis e reversíveis - eu vou dar uma explicação do que é uma aliança frágil e reversível. Um antropólogo chamado Pierre Clastres (Clas...tres) - no livro chamado A Sociedade contra o Estado... - diz que uma sociedade primitiva... tem uma tendência para a guerra. Então, as sociedades primitivas vivem em guerra e essa guerra não é jamais para conquistar território, jamais por objetivos econômicos, jamais por objetivos estratégicos. A guerra geralmente tem um objetivo - roubar mulheres (Tá?) Mas então, os primitivos fazem uma prática muito original. Numa determinadas tribo, eles cedem as suas mulheres para se casarem com os rapazes de uma outra tribo. Cedendo suas mulheres, eles tornam, os rapazes dessa outra tribo, cunhados. Eles fundam a cunhadagem - que é levar suas mulheres para se casarem com rapazes da outra tribo. E aí eles têm uma certeza relativa, de que os cunhados não irão atacá-los enquanto estiverem em guerra com os outros. Então, essa prática que os primitivos fazem, é o que eu estou chamando de uma aliança frágil e reversível.
 
Essa aliança frágil e reversível está inscrita no mundo dos gângsteres. Então, o gângster tem um meio histórico falso, sofrendo muita variação - que é o meio dos gângsteres - e faz alianças, como eu falei, frágeis e reversíveis; quer dizer, alianças que se quebram e se revertem. Quem, por exemplo, o Scarface mata no filme? O melhor amigo dele! Ele mata seu melhor amigo - pá - porque o amigo estava com a irmã dele. Então, nesse mundo dos gângsteres, as personagens têm fissuras. Elas são fissuradas, elas têm falhas... - falhas no comportamento (Atenção, que a aula vai começar a ficar muito difícil!) Elas têm falhas no comportamento, elas têm fissuras. Então, as personagens do filme noir se assemelham ao cônsul de À sombra do vulcão, no sentido de que o cônsul é uma personagem que tem fissura, fendas, ele é falhado e... o mesmo ocorre com as personagens de filme de gângster. Eles são todos falhados, todos fissurados. E essa fissura... - já, no início do filme, você sabe quem vai perder. O gângster é um perdedor nato. Ele sempre perde. E ele perde porque ele é fissurado.
 
Aluno: Essa fissura da personagem, ela não se deve a uma posição moralista?
 
Cláudio: Não... não, não... Eu vou tentar explicar o que é fissura... talvez não dê agora para vocês entenderem, mas não tem nada a ver com moral. Nada, nada a ver com moral! De forma nenhuma! De forma nenhuma! A única coisa que eu disse é que quando o meio, como o do gângster por exemplo, é um meio falso - de falsas amizades, de falsas alianças, de falso coleguismo...- emergem os comportamentos fissurados. A questão da fissura, se você me permite, vou jogá-la um pouco pra frente, porque não tem como passá-la agora com a beleza que ela tem... e, [além disso,] nesse momento, a proposição teórica não se comportaria bem.
 
Mas o que me importa aqui? Importa dizer que no filme noir nós temos um meio histórico... E que nesse meio histórico a personagem se comporta. Então, no filme do chamado cinema-ação, no cinema da representação orgânica, você sempre tem um meio histórico e o comportamento da personagem. A única diferença que o filme noir traz é que esse comportamento é fissurado. Um dos grandes exemplos de comportamento fissurado - os mais jovens ou os menos amantes do cinema talvez não conheçam - mas um grande intérprete do cinema noir, ou de filmes policiais ou de filmes de gângster foi o James Cagney. O James Cagney se destacava exatamente porque tinha uma postura muito fissurada. Ele era muito pequenininho, mas era todo fissurado. E vocês vão conhecer... evidentemente, quem não conhece vai acabar conhecendo James Cagney, um dos grandes atores do cinema de gângster americano.
 
(Eu queria que vocês então gravassem o que acabei de colocar). O cinema-ação - eu apliquei todos os dois nomes em cima dele - representação orgânica e esquema sensório-motor.
 
Agora, a explicação do esquema sensório-motor. No meio histórico o que se tem necessariamente que ter é um esquema sensório-motor perfeito. Perfeito... no sentido de que a personagem tem que agir e reagir sobre o meio. Ela age e reage sobre o meio. Então, o esquema sensório-motor tem que ser perfeito. Aí se explica o fracasso do gângster. Pelo fato de ele ter isso que eu chamei de fissura ou falha. (Vamos ver se eu consigo dar fissura aqui. Não sei se eu vou conseguir... Muito bem! Tá?)
 
Agora... no cinema-afecção eu já coloquei duas coisas pra vocês - eu coloquei o primeiro plano e o espaço qualquer. O espaço qualquer vocês podem dividir em espaço desconectado e espaço esvaziado. (Daqui a pouco vocês já vão saber o que é isso). Então, a noção de "espaço qualquer" é de um meio diferente do meio histórico. Por quê? Porque num espaço qualquer não há como a personagem agir. A personagem não tem como agir no espaço qualquer - ela só pode agir no meio histórico.
 
(Eu vou colocar agora, para vocês verem, mais um filme do Joris Ivens chamado A Ponte. E nesse filmizinho - de 12 minutos - vocês vão ver o espaço qualquer. Vai aparecer o espaço qualquer aí. (Tá?) Na hora que o filme acabar, é de importância vital que vocês perguntem qualquer coisa que tiver sentido.
 
Eu vou dar uma fortalecida pra vocês: vou voltar ao cinema-ação.
 
No cinema-ação, nós temos o meio histórico - pode-se usar também o nome de meio geográfico ou pode-se usar o nome de situação. A personagem tem que ter o esquema sensório-motor em perfeito funcionamento e o que ela faz é agir ou reagir sobre o meio ou situação. É isso que a personagem vai fazer no cinema-ação.
 
Quando a personagem age, eu posso utilizar o nome função - a função dos órgãos. Quando, no meio histórico, uma personagem age, quem determina a ação dessa personagem é o organismo ou a função dos órgãos - que é um dos mecanismos motores de um corpo. (Atenção!) No cinema-ação a personagem (a) age ou reage sobre o meio que ela percebe; (b) o esquema sensório-motor [tem que estar] perfeito e (c) essa ação é uma função de órgão.
 
Quando nós passarmos para o cinema-afecção não vai haver o meio histórico. Vai haver o que eu chamei de espaço qualquer. Num espaço qualquer não pode haver função. Por quê? Porque o espaço qualquer não é construído para receber ações dentro dele. Ele não é construído para isso.
 
Na penúltima aula, eu coloquei dois retratos - um barroco e um renascentista - e disse que aqueles dois retratos chamavam-se ícone de contorno e ícone de traço. Foi a primeira vez que eu tive condições de ligar o cinema a uma semiótica. Agora é preciso que vocês marquem: um espaço qualquer chama-se qualisigno. Então, na imagem afecção, nós temos três tipos de signos - que seriam (1) o ícone de contorno; (2) o ícone de traço; e (3) o que eu chamei de qualisigno. O que nós temos que fazer nesse momento (porque essa aula vai crescer muito, viu?) é... usar a palavra opor - opor o espaço qualquer ao meio histórico; e usar a diferença de espaço qualquer para meio histórico - porque dentro do espaço qualquer o que ocorre são afetos - como por exemplo no filme A Chuva - afetos de chuva. Em vez de ser ação-reação de personagens, o que se passa no espaço qualquer é o ser-em-si das coisas que nele aparecem. Em A Chuva foi o em-si da chuva; em A Ponte, o em-si da ponte. Então, quando a gente tem essa noção de em-si - exclui-se da noção de em-si a idéia de função.
 
A função é uma associação da coisa com o meio histórico. Então, quando não há uma associação da coisa ou da personagem com o meio histórico - que é o caso do espaço qualquer - você não tem nenhuma ação. Nesse tipo de espaço é impossível haver ação - porque ele não é constituído para ter ação.
 
O filme - A Ponte - de Joris Ivens, de 1928, também chamado A Ponte de Roterdan, é o cinema afecção. E nele você encontra o espaço qualquer. E a coisa que aparece aí, nesse filme, é uma ponte. No outro, foi a chuva. Agora, o que aparece da ponte e o que aparece da chuva são afetos de chuva e afetos de ponte. O que significa que no espaço qualquer você não necessita obrigatoriamente de uma personagem humana - pode ser uma coisa, pode ser um objeto, pode ser uma nuvem, pode ser uma chuva, pode ser uma ponte. Então, no espaço qualquer, você pode ter uma personagem humana, mas quando a personagem humana entrar no espaço qualquer ela vai se desumanizar - porque a questão no espaço qualquer é que o que entra dentro dele expressa afetos.
 
(Eu volto a esse tema daqui a pouco...)
 
No cinema-ação - que é o cinema da representação orgânica - você não tem o espaço qualquer, você tem o meio histórico. Você pode usar outros dois nomes - bloco de espaço-tempo ou situação. No meio histórico há o pressuposto da personagem humana. Essa personagem humana se comporta no meio histórico e o comportamento é regulado pelos sentimentos. Então, meio histórico no cinema-ação e espaço qualquer no cinema-afecção.
 
No cinema-afecção, o que participa do espaço qualquer pode ser qualquer coisa - pode ser um animal, um homem, um objeto... não importa o que seja. Porque a questão, no espaço qualquer, é aparecer o afeto daquilo que está sendo dado; e esse afeto seria a essência daquele objeto - a essência da ponte; a essência da chuva.
 
Já no cinema-ação o que você tem é o meio histórico e a personagem humana ou todos que participarem do cinema ação - e todos são humanizados - como, por exemplo, os cachorros e assim por diante. Então, o que aparece no cinema-ação são os comportamentos regulados pelo sentimento.
 
E hoje eu vou introduzir um terceiro. Eu vou introduzir pra vocês o cinema naturalista. Eu vou introduzir... pra vocês terem mais poder de compreensão. No cinema naturalista o que vai aparecer não é meio histórico nem espaço qualquer. Vai aparecer... o que eu vou chamar de mundo originário. Então, vamos lá! Vamos fixar o nosso saber. É: cinema ação - meio histórico; cinema afecção - espaço qualquer; e cinema naturalista - onde aparece o mundo originário. E no mundo originário não há comportamento nem afeto. O que há no mundo originário é pulsão. Então, nós teríamos no mundo originário: pulsão; no espaço qualquer: afeto; e no meio histórico: comportamento.
 
No mundo originário, a personagem - não importa o que ela seja - tende a uma animalização. A personagem tende a uma animalização. Mas eu coloquei que no mundo originário do cinema [naturalista] não há comportamento. O que há no mundo originário são as pulsões. Agora, o que é pulsão? Por enquanto, para nós entendermos, a pulsão é um comportamento perverso. Comportamento perverso. Por exemplo: necrofilia, antropofagia e, assim por diante. Então, o comportamento perverso como sinônimo de pulsão. Sinônimo de pulsão: comportamento perverso.
 
E aí eu distribuo três tipos de cinema. Todos três pertencendo à imagem e movimento.
 
O cinema ação - em que nós teríamos: o meio histórico e esse meio histórico chama-se situação; e a personagem - que tem que agir sobre essa situação. Ela age dentro do meio histórico, e essa ação é o comportamento dela - aí dá o cinema realista. O cinema realista é exatamente o modelo de Hollywood: o cinema em que você tem o esquema-sensório motor em perfeito funcionamento. Menos - às vezes, nem sempre - no cinema noir, porque nele vai aparecer o que eu chamei de comportamento fissurado ou falhado - ainda não posso explicar o que é isso - ou fendido. Vocês usem um pouco a relação que vocês tiveram com a fenda sináptica - e basta isso por enquanto.
 
Agora, no cinema afecção não aparece nenhum meio histórico - nunca! O que aparece no cinema afecção é esse espaço qualquer. No espaço qualquer, os movimentos... - aí vocês se lembram que no princípio, o filme A Chuva, do Joris Ivens, parece que é um cinema ação; depois você percebe que não, que não é um cinema ação. Então, o que se dá dentro do cinema do espaço qualquer são as afecções. Pode ser um homem, não é necessário que seja uma ponte, não é necessário que seja uma chuva... - o que significa que tudo o que existe tem afetos.
 
Al.: Tem o quê?
 
Cl.: Afetos. Tudo que existe tem afeto, sempre: um copo de cerveja, um copo de vinho, uma boca, uma garrafa. Tudo tem afeto.
 
Agora, no cinema naturalista, o que aparece nele é o mundo originário. Esse cinema naturalista vai expulsar o comportamento e vai fazer aparecer o que se chama comportamento perverso.
 
(Vamos dar uma olhadinha para ver se eu consigo colocar alguma coisa pra vocês.)
 
Por exemplo: no cinema noir, é muito fácil entender que o gângster é... violento. Então, no cinema ação aparece a violência com muita clareza, com muita nitidez - que no caso do cinema noir ou no caso do faroeste são as ações que as personagens fazem dentro desse cinema. Agora, no cinema naturalista, a violência é uma violência contida - é uma violência que não se efetua.... porque..., se ela se efetuar, a própria personagem se destrói. A própria personagem se destrói. Então, quando você se depara... (e isso para o ator é uma coisa magnífica, vocês tomarem conhecimento disso...)...quando vocês se deparam com a personagem pulsional, o rosto dela é de uma violência assustadora! O rosto!... É um rosto que tem o que eu estou chamando de violência contida. É uma violência que está presa no rosto. E esta violência não é, como no cinema realista, uma violência efetuada. No cinema naturalista a violência é contida pela personagem.
 
Dos três grandes autores do cinema naturalista, o que mais trabalha com a violência contida chama-se Losey - Joseph Losey. Agora, tem mais dois que vocês vão conhecer e que eu vou trabalhar - o Buñuel e o Stroheim. Stroheim, Buñuel e Losey - nesses três cineastas aparece o que se chama cinema naturalista.
 
(Eu vou voltar... e começar a explicar o cinema naturalista).
 
A primeira coisa que a gente tem que entender do cinema naturalista, é que nele não há um espaço qualquer, nele não há um meio histórico, (tá?) - nele há um mundo originário. Então, existe um filme, de um tal de Sjöström (alguns pedaços dele vão ser passados aqui), chamado O Vento - [na tradução brasileira] é Vento e Areia - em que você tem a impressão de entrar em contato com o meio histórico, com o espaço qualquer e com o mundo originário. Então, nele, a gente tem assim a presença dos três componentes.
 
Esse filme é quase um filme afectivo, é quase um filme naturalista - mas é um filme realista. Por isso, nas imagens do filme, ora tem-se a impressão de que se está no meio histórico, ora tem-se a impressão de que se está no mundo originário, ora tem-se a impressão de que se está no espaço qualquer. Então, esse filme vai [trazer] essa revelação para nós.
 
Em, o que eu fiz com vocês? O que nós fizemos aqui? Nós descobrimos duas coisas fundamentais - que um filme supõe um lugar onde ele se dá: o filme afecção é o espaço qualquer; o filme realista é o meio histórico, o filme naturalista é o mundo originário. Então, todo filme da imagem-movimento supõe um lugar. Supõe um lugar. E, desses três filmes, o único [cujas] personagens podem ser coisas é o cinema afetivo. Por quê? Porque tudo o que existe tem afeto. Tudo que existe tem afeto e o sentimento só existe no comportamento. O sentimento só aparece no comportamento. Por isso, o sentimento é o componente principal do cinema realista. Você vai para o cinema realista e... todas as personagens têm sentimento. O modelo de cinema realista é a novela de televisão: todo personagem tem sentimento. Tem sentimento e... manifesta esse sentimento.
 
Agora, quando você passa para o cinema naturalista, o sentimento vai desaparecer, e vai começar a aparecer o que eu chamei de pulsão. A pulsão é um comportamento pervertido. O que quer dizer "comportamento pervertido"? Quer dizer que a personagem do cinema naturalista não age nem reage no mundo histórico. Porque a personagem realista, o que ela pretende é transformar ou manter, como ele é, o meio histórico. Já a personagem naturalista, o que ela quer é extinguir o lugar [em] que ela está - ela quer extinguir o mundo originário. Então, a personagem naturalista trabalha com pulsão, e o que a pulsão pretende é exaurir o lugar onde ela está se dando. Ou seja: o comportamento perverso, a prática pulsional, é uma prática de exaustão. Ela quer destruir o mundo originário. É isso que a personagem naturalista pretende. No espaço qualquer, não. No espaço qualquer os afetos se expressam. No naturalismo é extinguir - exaurir é o melhor nome.
 
Expressão, no espaço qualquer; exaurir, no mundo originário; e comportar-se, no meio histórico. Então, quando você pega esse três filmes, você tem três tipos de atores - três tipos de atores diferentes. Por exemplo, um dos grandes atores do cinema naturalista é o Stanley Baker - que é pouco conhecido. Ele é pouco conhecido, mas tem um grande ator, muito conhecido, que é o Dirk Bogarde. O Dirk Bogarde, num filme chamado O Criado, do Losey, marca com uma precisão excepcional o que eu chamei de comportamento perverso ou pulsão. Agora... comportamento perverso ou pulsão é diferente do que vem a ser o comportamento num meio histórico. O comportamento no meio histórico é variável - ele varia por causa da oscilação do sentimento. O ator, então, tem que está preparado para fazer variação de sentimentos - ora ele chora, ora ele grita - porque o comportamento é regulado pelos sentimentos. Quando você vai para o cinema naturalista, já não há mais sentimentos - mas idéias fixas. A idéia fixa torna a pulsão sempre a mesma. Ela é sempre a mesma - ela não varia. Aquela personagem tem sempre aquele mesmo índice pulsional, (não é?) e a pulsão torna a personagem... - que é sempre homem, ou mulher, claro, mas geralmente o pulsional é o homem. No Losey, por exemplo, é o homem, no Buñuel varia -...a personagem tem um comportamento que a torna um bicho. Parece uma hiena, parece um cão, parece um camelo, parece um tigre. Não [] parece nas formas - mas na atitude.
 
Alº.: A personagem naturalista não teria uma alteração, ela não tem comportamento ela tem apenas a contenção da violência. --?--
 
Cl.: A contenção da violência... A violência aparece no rosto, mas existe nele... e é preciso que vocês percebam bem isso, porque o rosto da personagem naturalista explode de violência! Você olha e você se assusta. É literal - você se assusta! Há um filme do Losey, Casa de bonecas, com a Jane Fonda, a Delphine Seyrig, etc. que tem uma personagem - que é o Edward Fox - em que o rosto é assustador, de tanta violência que o rosto dele tem. E eu estou chamando essa violência de violência contida. Essa violência contida não aparece no cinema realista - porque a violência do cinema realista se atualiza, se manifesta através do... comportamento. Você vai encontrar então a personagem naturalista com esse aspecto pulsional, com a idéia fixa e com a violência contida. Mas aparece uma coisa notável aqui. É que a pulsão, ou seja, os comportamentos perversos, são altamente inteligentes. Então, não é pensar que as personagens pulsionais não tenham capacidade de efetuar o que elas querem. De forma nenhuma! As personagens pulsionais têm uma inteligência privilegiada... uma inteligência privilegiada!
 
Al.: --?-- os filmes do Polanski?
 
Cl.: É possível. É possível que sim. Por exemplo, O inquilino tem muita coisa de pulsional.
 
Al.:O Dirk Bogarde, em Porteiros da Noite, --?--
 
Cl.: Realista! Realista!
 
O Dirk Bogarde trabalha com o Losey, mas trabalha também com dois diretores do cinema-tempo - o Visconti e o Resnais. Ele trabalha com os dois. Mas isso aqui não importa. O que importa é ver se a gente entendeu um pouco do processo naturalista. Então, vamos fazer comparativamente, dizendo que a personagem naturalista é pulsional. A pulsão não tem alteração de sentimentos, não tem sentimento nenhum. É até ridículo você pensar em sentimento naquele mundo ali - não existe! Não há remorso, não há arrependimento, não há nenhuma dessas figuras ali dentro e... a personagem tem uma idéia fixa. E essa idéia fixa, ela pode ser jogada no mundo originário, ou pode ser jogada em outra personagem... - num dos dois. Por exemplo: no filme chamado O Criado, a personagem pulsional quer destruir duas coisas - a casa e o dono da casa. Ela dirige a pulsão dela para os dois. Ela quer domina r, arrasar, exaurir aquilo. Então, eu queria que vocês usassem esse nome - exaurir - na personagem naturalista. Ela visa à exaustão do que eu estou chamando - por enquanto, porque não tem outro meio - que eu estou chamando de mundo originário.
 
Então, antes de entrar, antes de penetrar mais, vamos fazer uma confrontação entre espaço qualquer, mundo originário e meio histórico. O meio histórico é muito fácil de entender. Ele está no faroeste, no cinema noir, no cinema histórico, no cinema psicossocial... Ou seja: todo filme realista implica o meio histórico. Eu posso acrescentar pra vocês que o documentário também faz parte do realismo. O documentário traz um pequeno problema, quando é sobre o mar ou sobre o Alasca ou sobre o deserto - que você não tem o meio histórico - e aí você chama de meio geográfico: é a mesma coisa, sem nenhum problema. (Tá?)
 
[Vejamos,] agora, o confronto do meio histórico com o espaço qualquer. No espaço qualquer não pode haver comportamento, também não pode haver pulsão - só pode haver expressão de afeto. Então, eu acho que esse filme daqui e A Chuva dão conta disso. É o afeto de alguma coisa: a revelação da essência daquilo. Então, não importa, no espaço qualquer, que seja um objeto, um bicho ou um homem. Tanto faz! Porque [a questão] ali é a expressão de afetos. Então, por isso, o grande modelo de expressão de afetos será o rosto no primeiro plano; as sombras e... o que eu ainda não dei para vocês, que é o branco do abstracionismo lírico - hoje não vai aparecer, (tá?)
 
Por que eu estou trazendo o cinema naturalista? Porque o cinema naturalista é o que há de mais assustador na história do cinema. Por quê? Porque o que se chama naturalismo... - e isto, inclusive na literatura e, por conseqüência, e em função dela, no cinema -...o que se chama naturalismo é um realismo acentuado. Você tem um mundo realista, normal... - normal, como se fosse imagem-ação - e naquele mundo realista vão começar a aparecer os tais comportamentos perversos. Então, o naturalismo - numa classificação definitiva - acentua os traços do realismo - a grande classificação naturalista é essa. (Foi bem até aqui? Acho que foi, não é?)
 
Agora, nós temos que ver o que é mundo realista. E o sinônimo que eu dei para o mundo realista ou imagem-ação foi o de representação orgânica. O que quer dizer, que o que existe no mundo realista são organismos - o que nós chamamos de seres vivos. [O que] nós chamamos de ser vivo é o ser orgânico. Então, no mundo realista aparece o que se chama representação orgânica e essa representação orgânica tem um meio - um modo de existir. Esse modo de existir é circular. Por exemplo: na representação orgânica forma-se uma cadeia circular, no sentido de que A precisa de B, que precisa de C, que precisa de D, que precisa de E, que precisa de A. É um ciclo. A representação orgânica é um ciclo e esse ciclo é onde as personagens realistas estão incluídas. Elas habitam esse ciclo!
 
O que vai acontecer no cinema naturalista é que as personagens naturalistas vão querer destruir o ciclo. Ou seja, a personagem naturalista - eu vou m arcar assim, porque é a melhor maneira para se entender - traz duas [questões] - ódio e amor pelo realismo. Ela traz essas duas [questões]. Se o ódio prevalecer, ela vai procurar destruir o ciclo orgânico, pra desfazer aquilo. Por isso, a personagem naturalista se torna degradada. Ela degrada, pega o meio em que ela está habitando e degrada aquilo tudo. Ela vai degradando, exaurindo, vai destruindo aquilo dali.
 
Então, eu estou colocando agora uma coisa um pouco difícil - que é o que eu chamei de ciclo orgânico. Isso é muito difícil. A noção de ciclo orgânico é uma tese de que a vida - ao se constituir neste planeta e parece que ela só se constituiu no nosso planeta - ela se constituiu por um ciclo, que nós chamamos de ciclo da vida, o ciclo do organismo.
 
LADO B
 
O ciclo orgânico é nascer, envelhecer, morrer, nascer, envelhecer... Nasce, envelhece e morre... Aí deixa os descendentes, que nascem, envelhecem e morrem... É exatamente isso o ciclo orgânico. Então, o mundo realista - eu já estou começando a tentar explicar a falha, explicar a fissura. O mundo realista é o mundo do organismo. E todos os seres orgânicos se comportam, eles têm um comportamento e esse comportamento do organismo é um comportamento cíclico. (E como a C... notou), nasce, envelhece, morre, nasce... Por enquanto é só isso, (tá?).
 
Agora, a personagem naturalista... vai pegar esse meio histórico - ela pega esse meio histórico do realismo e procura destruir esse meio histórico. Há, então, uma diferença do processo da personagem realista para a personagem naturalista. A realista conserva ou reforma o meio... e a naturalista vai tentar destruir o meio. Na hora em que ela destrói o meio, esse meio, ao invés de se chamar meio histórico, vai se chamar meio derivado. Então, no realismo, você teria o meio histórico e no naturalismo, você teria o que se chama meio derivado. Por que meio derivado? Porque por trás do meio histórico naturalista - que se chama meio derivado - estaria o mundo originário. Quando a gente vê um filme naturalista... - o exemplo que eu vou dar para vocês é "Casa de Bonecas".
 
"Casa de Bonecas" é um texto do Ibsen que é dirigido pelo Losey. É uma cidade que está montada em cima da neve. E tem planos gerais em que você tem a impressão de que a neve vai comer a cidade, vai engolir as casas. Então, essa neve, onde as casas estão assentadas, é o que se chama mundo originário. E as casas, meio derivado. Então, no mundo naturalista, você tem o mundo originário, que é exatamente onde o meio histórico se instala. Ele se instala no mundo originário. No caso do mundo realista, não. No mundo realista o meio histórico se dá isolado; e no naturalismo o meio histórico se dá no mundo originário. E esse mundo originário é muito variado. Por exemplo: no Stronheim, é um deserto assustador; e... no Losey, pode ser a neve, podem ser helicópteros batendo asas, podem se pássaros, podem ser penhascos, ou seja, o mundo originário é uma coisa estranhíssima que o diretor nos mostra no filme. E instalado nesse mundo originário estaria o meio histórico. O próprio meio histórico realista. Mas como o meio histórico realista, no mundo originário, ele não vai receber comportamento, e vai receber pulsões, esse meio derivado vai ser inteiramente destruído. Ele vai ser exaurido. Há um grande exemplo pra isso que é um filme do Buñuel chamado O Anjo Exterminador. Nesse filme, as personagens estão dentro de um palácio, uma casa riquíssima, e elas vão literalmente destruir a casa. Vão arrancar tudo! Porque elas vão ficar presas dentro da casa e vão começar a destruí-la. Essa casa... (Nesse filme que vocês vão ver, O Anjo Exterminador) essa casa é um meio histórico, mas se fosse num filme realista as personagens teriam, ali dentro, um comportamento de manutenção ou transformação da casa. Mas como elas são personagens naturalistas - vão destruir a casa.. Por isso não se chama meio histórico, chama-se meio derivado. E, no meio derivado, por baixo dele, está o mundo originário. O que a personagem pulsional visa, é fazer o mundo originário subir.
 
Al.: Eu posso dizer que em vez de meio histórico, seria o meio histórico degradado?
 
Cl.: É o meio histórico degradado - é exatamente isso!
 
Você pega a casa de O Anjo Exterminador... e pega a casa... o palácio do filme do Scorsese! Esse último filme do Scorsese...
 
Als: A Época da Inocência.
 
Cl.: A Época da Inocência. É um filme realista - as personagens, ali dentro, se comportam magnificamente. E em O Anjo Exterminador, elas destroem a casa! {Essa casa] pode se chamar meio derivado.
 
Alº.: No caso do Losey, naquele filme O Mensageiro é um filme naturalista, não é?
 
Cl.: Inteiramente naturalista!
 
Alº.: Então, se tem um ciclo orgânico ali, as personagens tentam atingir... seria a relação daquele casal e a representação dessa pulsão seria aquela carta?
 
Cl.: Não, a pulsão ali é do casal Julie Christie-Alan Bates, em cima do garoto. O filme em inglês chama-se The go-between. Então, eles estão...
 
Alº.: A pulsão seria dos dois então?
 
Cl.: Dos dois em cima do garoto... em cima do garoto. É.
 
Alº.: Ele seria o ciclo orgânico, então?
 
Cl.: E ele vai começar a sair, porque ele é devorado por aqueles dois. Tanto que o filme é um flashback, porque realmente o filme é o garoto velho - que é o Michael Redgrave, (não é?) Se eu não me engano, é ele - é ele velho e todo ligado ainda ao casal, todo ligado a casal (não é?) que levou ele à exaustão. E o mundo originário ali (quem viu esse filme...) é o jardim onde ele tem a bela dona. Esse filme é O Mensageiro (Vocês vão ver. Eu vou passar esse filme!)
 
Alª.: O Criado tem um jardim também... seria...
 
Cl.: O Criado tem um jardim com as estátuas. Aquelas estátuas... é o meio originário.
 
No mundo do cinema naturalista você sempre vai encontrar esse mundo originário. Esse mundo originário é parte do cinema naturalista.
 
Alº.: Então, quer dizer que a pulsão ali [---] brigava com o casal o tempo inteiro... A tentativa deles é destruir...
 
Cláudio: O tempo inteiro. É... exaurir... tudo - eles querem exaurir tudo! Aquele caso de amor deles é levar tudo à exaustão. A mãe é a reação realista.
 
Alº.: E Teorema, seria...
 
Cl.: Não! (Teorema, não. Não, porque você nota que em Teorema você tem o mundo originário - que é o mundo antropofágico; e você tem o meio histórico - que é a casa onde está a pocilga. Ah! Você falou Teorema... eu confundi o Teorema com Pocilga!) Não é. Também não é. Eu vou colocar O Teorema como cinema tempo. O cinema tempo. Alguma coisa muito próxima do cinema tempo. Porque, ainda que a personagem entre ali e ele comece a tomar conta de tudo, não faz como a personagem naturalista. A personagem naturalista é - literalmente, assustadoramente -destruidora: DESTRUIDORA!
 
Alª.: No caso de O Anjo Exterminador também tem uma casa, um jardim... a pulsão não parte só das personagens - mas também tem --?-- a casa e --?-- as personagens?
 
Cl.: É porque você tem a pulsão...A pulsão é dupla: tem um sujeito e tem um objeto. (Certo?) Então, às vezes, você confunde! Porque o objeto pulsional é um objeto em pedaços, ele é sempre despedaçado, ele está sempre em pedacos. Você nota que eles fazem isso na casa - eles vão despedaçando... É como se fosse O Cortiço do Aloísio Azevedo. Eles vão despedaçando aquilo tudo. Às vezes a gente confunde a noção de pulsão, porque a pulsão pode estar do lado do sujeito ou pode estar do lado do objeto. (Depois eu vou explicar completamente, para vocês, o que é pulsão).
 
O que apareceu aqui? Meio histórico, espaço qualquer, meio derivado... sobre o mundo originário. Quando ele fez a pergunta eu ouvi pocilga e Pocilga... - é muito interessante, vocês viram? Eu vou só dar um exemplo rápido então, tá?. Em Pocilga há um momento, na primeira parte do filme, que é uma prática antropofágica. Ali você tem o mundo originário. E a segunda parte é o meio histórico. Mas no Pasolini há uma parte e a outra - estão separadas. No cinema naturalista elas estão um em cima do outro. É essa a diferença! A diferença estaria aí: um está em cima do outro. (Tá?)
 
Então, nós vamos pegar agora - vou usar assim para ficar fácil: o cinema afecção - a personagem do cinema afecção. Eu disse para vocês [que a personagem desse filme pode ser] qualquer coisa, mas qualquer coisa no sentido que eu dei na aula de ontem ou de anteontem, (se vocês não pegarem, avisem para mim!) que seria o sentido monadológico, que seria - as coisas espiritualizadas e o espírito fragmentado!... O que eu quero dizer com isso? Eu quero dizer que, no filme do espaço qualquer, o que aparece são os afetos das coisas ou dos homens - não importa! Afetos expressados - enquanto que os comportamentos são atualizados.
 
Alº.::--?--- Isso que você está falando dessa coisa monádica e do espírito fragmentado, para mim está indo de encontro à idéia de coisa em si, de uma essência.
 
Cl.: Porque o que eu disse é que, quando nós pensarmos a essência no plano das mônadas, ao invés de pensar uma essência, as mônadas são uma multiplicidade de essências. Então, a chuva - ela tem uma multiplicidade de essências. (Certo?) Esse filme do Joris Ivens é uma expressão das essências da chuva. Mas outro autor pode fazer outro tipo de filme - porque não é uma essência só. (Entendeu?) Isso é que é a monadologia. No cinema afeto você espiritualiza o espaço qualquer. O espaço qualquer é espiritualizado. (Se estiver difícil vocês falem, heim?) E esse espaço espiritualizado é - imediatamente - fragmentado. Esses fragmentos chamam-se... afetos. São os fragmentos espirituais, são fragmentos do espírito. Ou melhor: o espírito nada mais é do que expressão de afetos. Esse cinema... esse cinema afecção chama-se cinema expressivo. É o cinema expressivo. Por exemplo, a Falconetti, estão lembrados? A Falconetti... a Joana D'Arc... do Joana D'Arc. O que ela faz ali não é de maneira nenhuma encarnar sentimentos. O que ela faz é... expressar afetos. São PURAS EXPRESSÕES AFETIVAS do cinema de PRIMEIRO PLANO. Então, isso seria o espaço qualquer... - e a esse espaço qualquer eu vou voltar: porque é um caminho de uma riqueza e de uma beleza extraordinária - eu vou voltar muito forte nele; e... dos dois lados, o cinema realista e o cinema naturalista.
 
Agora, eu chamei o cinema realista... Agora é que vem a grande questão! Dificílima! Se eu não conseguir governar o discurso pra vocês, eu faço uma deriva, (tá?).
 
No cinema realista nós temos o que se chama representação orgânica (tá?). Então, o cinema realista pressupõe o organismo - e o organismo é aquilo que se comporta por variação de sentimentos. Agora, a pergunta é... que é uma pergunta biológica, é uma pergunta de biologia evolutiva... (ninguém fica preocupado, pensando que vai ouvir uma coisa impossível de ser entendida. Não!) O organismo... para você pensar o organismo há um pressuposto - você não pensa o organismo por estética, por religião, por ciências sociais... Você pensa o organismo por biologia... por biologia.
 
Então, quando você investe na biologia para entender o que é um organismo, você descobre que, no nascimento do organismo, pressupõe-se uma força genética que produz o organismo - mas que essa força genética não é orgânica. (Ficou muito difícil?). Ela é uma força genética, não orgânica - ela não é inorgânica... (Deixa eu explicar para vocês o mais que eu puder!...)
 
No século passado, um cientista chamado Pasteur provou - ele provou - que o organismo não se origina no inorgânico. Ou seja, o que não for o organismo não tem sua origem no inorgânico. Tudo que é orgânico nasce - vai dizer o Pasteur - nasce do orgânico (Certo?). Então, você não pode ter um ser vivo nascendo do inorgânico.
 
Mas, o que eu estou dizendo agora para vocês é que o orgânico - que não nasce do inorgânico - nasce de uma força genética - que eu vou chamar de anorgânica. Não vou dizer que é in orgânica: vou dizer a norgânica. Ou seja, tudo que está vivo, que nós conhecemos, é o orgânico - mas o orgânico pressupõe uma gênese. Essa gênese é o ANORGÂNICO. E o que é exatamente a gênese... (Está muito difícil aqui? Vocês acham que dá para atravessar isso aqui - na biologia? Como é que vocês acham? Está muito difícil? Eu vou tentar dar uma explicação de outro modo pra vocês.)
 
Existe uma palavra chamada hábito (eu falei nela ontem) que nós costumamos compreender como sendo repetição - o hábito seria um processo repetitivo. [Mas] n ão é. Hábito é um processo contraente; hábito é uma contração - como se gente diz: contrair matrimônio, contrair uma dívida. Hábito é uma prática de contração. Dois elementos que estão separados se juntam - e isso é uma contração, é uma síntese. Nessa contração, nessa síntes e, na junção de dois elementos que estão separados - é que vai nascer o organismo. Então, - basta que vocês entendam isso -, há um pressuposto para a [aparição] do organismo: a contração de elementos que estão separados. [Ou seja:] todo organismo pressupõe uma contração. A contração chama-se habitus (com us) habitus.
 
Habitus é a contração de dois elementos que estão separados... - aí aparece o organismo. E, no organismo, aparece o comportamento. Então, a fissura é um relaxamento da contração. (Ficou muito difícil, não é? - risos - Ficou barra pesada!). É muito simples: nós..., os seres vivos, neste instante, todos nós aqui estamos contraindo - o nosso corpo está fazendo contrações (não é contorções, é contrações!) Ele está juntando [reunindo, fazendo uma síntese, contraindo] elementos que estão separados - por exemplo: água, terra, fogo e ar; fósforo, carbono e outros elementos atômicos estão sendo contraídos; e, nessa contração, surge o organismo. Então, nós, os vivos, somos constituídos pelo habitus. O habitus é (muito difícil ainda? Fala, C...) O habitus é um anorgânico, um anorgânico. O habitus (usa com o s) é a contração, aquilo que constitui o nosso organismo.
 
Então, se o nosso organismo parar de contrair - ele tem uma fissura; uma falha. A falha vem exatamente da quebra do habitus. E no cinema noir é isso - o habitus pára; e aí o personagem se fissura. Porque os elementos, que estão juntos, se separam e o personagem é fissurado. Ele ganha uma fissura, ele ganha uma falha dentro dele - e aí ele não consegue mais ter comportamentos normais: passa a ter comportamentos assustadores, como é o caso do Paul Muni no Scarface.
 
Então, o que eu chamei de fissura seria uma... (é difícil, não é?)...um relaxamento... re laxa. De repente todo o nosso corpo - que se constitui por um conjunto ilimitado de habitus, um conjunto ilimitado de contrações - de repente as contrações param. E quando elas param - emerge uma fissura dentro de você. Surge alguma coisa ali - surge uma falha. É como uma falha de São Francisco - a falha na rocha! É a mesma falha que tinha o cônsul - aquele cônsul de A Sombra do Vulcão. Aquela falha ali é uma falha do habitus. Quando essa falha se dá, a personagem costuma jogar dentro dela o álcool. O álcool - o alcoolismo está associado com o habitus.
 
Al.: Posso comparar a fissura com a fenda?
 
Cl.: Pode! É a própria fenda. (Deixa eu explicar pra você entender).
 
Quando essa fenda se dá, a personagem é levada a tomar atitudes incríveis - dentre elas o alcoolismo, que é uma tentativa de endurecer aquela fenda. Endurecer... A personagem tenta endurecer-se no presente - ela não quer que o presente passe: ela quer se prender no presente, ela quer se segurar naquela fenda, ela não quer cair lá - dentro da fenda. Então, ELA BEBE para endurecer o presente. Ela quer se esquecer, ela não quer se lembrar, ela não quer projetar. Ela produz essa fenda.
 
Alº.: E a personagem naturalista também tem fenda?...
 
Cl.: Não, não! O personagem naturalista não tem nenhuma fenda. O problema naturalista é completamente diferente. O problema naturalista é o problema da pulsão. É o problema da violência excessiva que a personagem naturalista possui - ela possui uma violência excessiva - e ela está sempre visando à exaustão dos meios. Ela quer exaurir tudo. Ela quer exaurir tudo. Por isso ela compõe uma inteligência muito poderosa. As personagens naturalistas são excessivamente inteligentes.
 
Alª.: Mas o alcoólatra não é degradante?
 
Cl.: Não é degradante! Eu estou colocando a posição do alcoólatra, e da fenda e da fissura no cinema realista. Eu estou colocando no realismo. A fenda é no comportamento, a fenda é o relaxamento do habitus. Ela não é um comportamento degradante. Ela não é um comportamento degradante porque, inclusive, no realismo (você deve saber muito bem disso!)... no realismo, normalmente, a personagem alcoólatra é curada. Ela é curada. Há um exemplo de um grande filme realista, famoso, chamado Farrapo Humano, com o Glenn Miller, que ele é curado no final... Ele é curado no final.
 
Alº.: Destruir o mundo real... e não o mundo original?
 
Cl.: Heim?... A personagem realista, mesmo com a fenda, ela não busca destruir o mundo - ela quer destruir-se a si. A si, a si própria.
 
Alª.: Ela quer a paralização, não é?
 
Cl.:Ela quer a paralização do tempo. Ela quer endurecer o presente. Ela não quer mais que as dimensões do passado e do futuro apareçam para ela. Ela endurece - ela endurece o presente. (Eu vou voltar com isso na próxima aula).
 
Alª.: E aí ela vai criar uma fenda?
 
Cl.:Não, a fenda já apareceu. A fenda já apareceu!. (Eu vou contar pra vocês... só um minutinho, tá? Então pode falar, pode falar...)
 
Alº.: Não, eu queria falar isso. Voltar com a proposta a respeito da fenda é um fato irreversível, não é? Quer dizer: toda a compreensão -- ela cessa --?--
 
Cl.: Você sabe que os filmes realistas, eles... por exemplo, o Farrapo Humano, eles curam, eles curam - o Glenn Miller foi curado no filme. Mas o importante aqui é que essa personagem, ela vai ser (como eu coloquei para vocês) penetrada de luz, lembra?. A fenda sináptica - ela é penetrada de luz. Então, eu vou dizer uma coisa muito violenta agora! A única maneira que nós temos para pensar é - se nós formos fendidos.
 
Alª.: Formos, o quê?
 
Cl.: Fendidos, falhados, fissurados.
 
A fissura é um componente essencial para o pensamento... porque - se você não fissura - você entra na banalidade do meio histórico; no comportamento banal. (Então, essa questão da fissura - eu só estou começando a tocar nela: vou voltar mais tarde.)
 
Agora, o exemplo que eu ia dar... eu vou dar o exemplo de um autor chamado Scott Fitzgerald. O Scott Fitzgerald tem um texto chamado The Crack-up (c-r-a-c-k u-p). Que é traduzido em português por A derrocada. O Fitzgerald, ele viveu nele mesmo a fenda, tanto ele quanto a Zelda. Eles viveram a fenda. E o grande exemplo de fenda, na obra do Fritzgerald, é o Gatsby". O Grande Gatsby. (Marquem aí que a gente vai ver o filme.) O Grande Gatsby, com Robert Redford... é um filme que a gente não pode deixar de ver... faz parte da nossa história... O Gatsby é um alcoólatra... com... dez anos de alcoolismo, quando re-encontra a Mia Farrow, casada com o Bruce Dern. (Não me lembro o nome das personagens fora do cinema).
 
Então, eu só estou passando a idéia de fenda e a idéia de fissura.
 
Alª: É Roberto Ford, Mia Farrow, Bruce Dern, Karen Black
 
Cl.: Karen Black - ela fez O Dia dos Gafanhotos.
 
Mas, então, eu vou deixar a personagem realista com duas posições: ela... no cinema noir, é que vai aparecer a fenda, por causa do meio - eu não estou dizendo que o meio é causa: eu não estou dizendo isso. Mas a gente pode pensar no meio como causa - porque o Fritzgerald (não sei se vocês conhecem a obra do Fitzgerald...)
 
Alº.: Suave é a noite.
 
Cl.: Heim? Suave é a noite... Belos e Malditos... Belos e Malditos seria o mais interessante para vocês lerem, no sentido de que o Fitzgerald tinha talento, mocidade, beleza física, dinheiro, sucesso assustador, freqüentava um dos melhores meios aristocráticos norteamericanos, casado com a Zelda - belíssima!... Então, ele tinha TUDO, mas ainda assim, a fenda apareceu. Então, a fenda é como se fosse um rio que corresse por baixo de nós. O Rio Aqueronte. O Rio Aqueronte é o rio que banha o inferno. É como se corresse um rio tórrido, um rio de fogo, dentro de cada um de nós. Então esse rio, de repente, sobe e produz o relaxamento ou a perda do habitus e produz a fenda.
 
Eu vou abandonar o realismo. (Tá?) Não tenho tempo para [trabalhar] o realismo.
 
Alª.: Me diz só qual é a fenda do cinema noir, esse do gângster?
 
Cl.: No cinema noir é esse menino o (como é o nome dele?) Paul Muni que, como todos os gângsteres feito ele, vai conquistando todo o meio. Ele conquista todo o meio... e chega a um ponto de ter um domínio total sobre ele. O que vai destruí-lo é a fissura. Essa fissura aparece na relação que ele tem com a irmã, que é uma relação incestuosa; na relação violenta que ele tem com os outros; e no fato de ele ter quebrado a principal aliança que ele tinha, com o maior amigo dele. Ele mata a maior aliança que ele tinha. Então, a fenda aparece aí. A fenda aparece. Ele fica falhado. E isso vai levá-lo à morte. E o que eu estou dizendo pra vocês... - e aí eu estou colocando o cinema e a literatura noir - [é que ambos] implicam a personagem falhada. (Tá?)
 
Agora, eu os aconselharia, nesse caminho que a gente está fazendo, a pegar o cinema noir e os grandes textos de literatura noir... - como o David Goodis. Eu aconselho o Atire no Pianista do David Goodis, pronto! Quem ler esse livro cresceu na vida cem metros. É um obra prima! Atire no Pianista!
 
Há um Truffaut... Truffaut fez o filme, com o Aznavour - mas o filme não chega aos pés do livro. É uma obra prima. Aconselho vocês a terem contato com esse livro.
 
Vou largar o realismo. Vou agora para o naturalismo. (Tá?)
 
(Prestem agora atenção sobre o que é uma aula. O professor... - ele tem o pensamento dele. Eu tenho o meu pensamento, quando eu estou lendo um texto, quando eu estou escrevendo. Mas... há o processo da aula. O processo da aula é um agenciamento. E nesse agenciamento... eu tenho que dar um certo conforto a vocês. O conforto de não jogá-los numa... fenda, não torná-los alcoólatras. E isso daí faz com que eu diga muitas coisas provisórias - que depois eu vou mudar! Há muitas coisas que eu digo provisoriamente, para que vocês possam ganhar um pé, ganhar um eixo, ganhar... como se diz vulgarmente, ganhar uma referência, um eixo. O ponto de apoio de Arquimedes. Aquele ponto de apoio.
 
Agora, eu volto para o naturalismo. Volto para o naturalismo e nós vamos conhecer então uma das coisas mais bonitas da história do pensamento. O grande pensador do naturalismo, que é um literato, chama-se Émile Zola, francês, [que desempenha] o primeiro, o principal [papel de defesa] do caso Dreyfus - e o livro do Émile Zola que eu vou aconselhar nesse instante para vocês (na próxima aula vou aconselhar outro, por supor que vocês leram esse) é A Besta Humana. Atenção! No cinema vai aparecer um diretor de altíssimo nível que faz diversos filmes dos livros do Zola - é o Jean Renoir. Jean Renoir é filho do pintor Auguste Renoir. Mas o Jean Renoir não é um cineasta naturalista. Incrível, mas não é! Não é! (Viu? Depois eu volto ao Jean Renoir. Eu volto ao Jean Renoir para explicar a vocês.)
 
O cinema naturalista quer se libertar do meio histórico. Ele quer sair do meio histórico - no sentido de que o meio histórico seria... (aqui é um pouco difícil... as palavras não serão difíceis, mas o entendimento pode ser confuso nesse momento.) O meio histórico é onde predominam os movimentos - e o que o artista naturalista objetiva conquistar o tempo puro (é a primeira vez, neste curso, que vocês estão ouvindo isso). Ele objetiva conquistar o tempo puro. (Nós não sabemos ainda o que é o tempo puro, nós temos que usar essas palavras - tempo puro - como um mero nome...) O artista naturalista quer conquistar o tempo puro. Mas quando ele vai fazer um investimento para produzir essa conquista, ele começa a gerar os componentes negativos do tempo. E esses componentes negativos são: entropia, degradação, violência contida, e agora, surpresa, ciclo. Ele começa a gerar os elementos negativos do tempo. Esse momento de aula é um momento gravíssimo, porque é o momento que eu tenho para passar da imagem-movimento pra imagem-tempo. Nós vamos passar da imagem-movimento para imagem-tempo pelo cinema naturalista. Eu poderia fazer como Deleuze - ele passa pelo cinema relação. Eu vou passar pelo cinema naturalista. Então, o diretor do cinema naturalista, Buñuel, no caso, (quem mais?) Losey e Stronheim. Esses três. O que eles querem? Eles querem o tempo. Eles querem o tempo. Então, aquele que quer o tempo - aquele que quer o tempo como a sua salvação, como a saída para a vida - a primeira coisa que ele tem que fazer é destrui r o mundo realista, é destruir o ciclo realista, é destruir a representação orgânica. Então, o primeiro confrontamento que o cineasta ou o artista tem é exatamente com o que eu chamei o meio histórico e o comportamento. Ele se defronta com aquilo, ele não quer aquilo para a vida dele.
 
Vejam bem: não há aqui uma posição clássica - porque muita gente pode pensar nestes termos - uma posição clássica, digamos, marxista.... Não é em termos de luta de classes - porque o naturalista ele rejeita o bom e o mau, o doente e o sadio, o pobre e o rico. Ele rejeita tudo... Ele rejeita tudo que está no mundo realista - ele não quer aquilo, ele não quer aquilo de forma nenhuma. Mas... essa matéria realista é a matéria em que ele vai se efetuar. Ele vai se efetuar em cima dessa matéria realista. Então, o cinema naturalista... - ele se constitui em cima do realismo.(Tá?)
 
Cl.: Que horas são, heim?
 
Al.: Dez para as nove.
 
Cl.: Vamos tomar um café? Para eu continuar a aula... Eu vou descansar um pouquinho.
 
PARTE 2
 
(com a entrada de mais um grupo de alunos)
 
Quem não ouviu a primeira parte da aula não tem a menor importância... Tá?)
 
Há um diretor de cinema, ainda vivo, excessivamente famoso, que é o Kurosawa. (Acho que todo mundo conhece. Nem sei se a pronúncia é essa... Porque eu não sei japonês... Eu falo dentro das minhas possibilidades brasileiras.)
 
Eu vou me referir a um filme do Kurosawa, que mesmo que vocês não tenham visto, não tem problema - mas vai implicar que depois eu quero que vocês vejam. É Os Sete Samurais... Provavelmente Os Sete Samurais e Rashomon seriam os dois filmes mais famosos dele.
 
(Eu vou esperar mais três minutos, porque está entrando gente.)
 
Eu vou começar a aula usando um conceito básico da filosofia do Deleuze. Esse conceito chama-se REPETIÇÃO. O primeiro exemplo que eu dou do conceito de repetição...
 
(É melhor eu segurar mais um pouco, tá faltando... tem muita gente lá embaixo. Dá pra chamar?...)
 
(Ninguém precisa ficar preocupado, pensando se eu vou falar coisas impossíveis de serem entendidas, não, viu?) -
 
Eu vou começar fazendo uma distinção uma distinção entre discurso científico... Discurso quer dizer um conjunto de palavras; esse conjunto de palavras pode ser escrito ou falado; isso é discurso. Então, existem diversos tipos de discurso: o discurso do padre, que é o discurso religioso, o discurso do camelô; o discurso científico, certo? Então, eu estou fazendo assim uma espécie de cartografia dos discursos - e estou dizendo que existe um discurso chamado discurso científico. E um discurso chamado discurso poético - por exemplo: João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Cassiano Ricardo... tanto faz... discurso poético. E do lado de cá o discurso científico. No discurso poético, eu vou colocar um atributo - é o discurso poético lírico, a lírica. Porque a poesia pode ser épica, pode ser lírica (esse "troço" que está passando lá embaixo parece um discurso lírico... - referindo-se à sirene de ambulância ou carro de bombeiro, estridente...). Pode ser poética, pode ser épica, pode ser lírica... Então, eu vou começar falando sobre a distinção entre o discurso científico e o discurso... só que eu chamei de poesia lírica. Não é a poesia épica, não é a parnasiana, não é a romântica, é a lírica... (Tá?) E esses dois discursos têm uma diferença no sentido de que o discurso científico, quando você o produz, (Se vocês não entenderem me avisem) ele traz uma permissibilidade que é a troca das palavras. Por exemplo, vamos dizer: se num discurso científico...você usou a palavra mar, mas quiser usar a palavra oceano, [em substituição a ela] você pode usar. Ou seja, o discurso científico traz a possibilidade da troca das palavras. As palavras podem ser trocadas, podem ser mudadas; enquanto, no discurso lírico, as palavras não podem ser mudadas - só podem ser repetidas. Quando você faz o discurso da lírica você vai encontrar esse fenômeno chamado repetição das palavras e no discurso científico você vai encontrar o fenômeno mudança, (tá?)
 
Por que no discurso científico há mudança e no lírico há repetição? Porque a lírica se constitui pelo ritmo e o científico pelo significado. Então, o campo do discurso científico é o campo do significado. O campo da lírica é o campo do ritmo - e o ritmo é aquilo que pode ser repetido, jamais mudado.
 
Então, o discurso científico, onde se dá mudança de palavras ou troca de palavras, (vocês estão entendendo?) mudança de palavras ou troca de palavras... e quando se usa a expressão troca, o sinônimo da palavra troca é símbolo. Símbolo quer dizer: aquilo que pode ser trocado. Então, o discurso científico... é simbólico, porque ele pode ter troca de palavras; enquanto que na lírica só pode haver repetição, porque a lírica se sustenta pelo ritmo.
 
Agora, atenção! O mundo realista... na literatura, mundo realista; no cinema, imagem ação; na biologia, representação orgânica; realismo, na literatura; imagem ação, no cinema; na biologia, representação orgânica. Esse mundo realista é o mundo em que há mudança, onde tudo está permanentemente mudando.
 
Al.: Esse é o mundo que a ciência trabalha?
 
Cl.: É esse o mundo em que a ciência trabalha, claro! É o mundo da mudança.
 
Aula de 27/07/1995
 
Imagem  Isabelle Adjani em cena do filme  La Reine Margot

corpo orgânico e corpo histérico

OUTRA AULA DO MESTRE CLAUDIO ULPIANO. SAUDADE.
Quando eu falo pensamento, corpo e tempo - e faço uma associação do pensamento com o corpo - aparece uma idéia aparentemente confusa, porque a tradição da filosofia marcou que o corpo seria o grande obstáculo do pensamento. Inclusive, quando a filosofia emerge na cidade grega - com Platão - essa relação entre o corpo e o pensamento é inteiramente impossível: o corpo seria exatamente aquilo que barraria a passagem do pensamento. Ainda assim, é essa associação "pensamento e corpo" um dos pontos principais desse curso que eu vou dar pra vocês.
E a terceira questão - o tempo - que irá surgindo ao longo da minha exposição.
Neste momento, eu começo a entrar na aula - e tudo o que eu vou dizer terá uma importância enorme para a compreensão de vocês. Nesta primeira aula, eu vou fazer a exposição - e uma pequena experimentação de como vocês estão ouvindo: de como vocês estão recebendo essa maneira de pensar. Por exemplo:
Um músico do nosso tempo - chamado Olivier Messiaen - vai fazer uma distinção entre quatro tipos de canto de pássaros. Diz ele, que na primavera, os pássaros, praticamente todos eles, fazem o canto do amor - que é um canto de sedução, geralmente feito pelos machos. Esse canto de amor - evidentemente - tem uma função específica: serve à espécie - porque o amor permite a reprodução; e serve aos prazeres do indivíduo. Seria esse canto - que eu chamei de canto de amor - que ocorre em todas as primaveras.
O outro tipo de canto, diz ele, que é entendido por todo e qualquer pássaro - é o grito de alarme. Os pássaros - através do gorjeio - fazem o canto de amor e o grito do alarme: dois cantos que estão a serviço do que eu passarei a chamar, nesta aula, de CORPO ORGÂNICO. Ambos os cantos estão a serviço do organismo - das funções dos órgãos; no sentido de que um canto - o canto de amor - tem como único objetivo prestar um enorme serviço à espécie; ou seja - à evolução da espécie; e assim por diante.
Mas, de outro lado, Messiaen vai falar num terceiro canto (por enquanto, eu vou deixar o [quarto] entre aspas). Esse terceiro canto, de que Messiaen nos fala, é o canto que alguns pássaros fazem para o pôr do sol - ou [melhor]: para o crepúsculo e para a aurora. Esse canto não tem nenhum objetivo orgânico e não presta nenhum serviço à espécie ou ao indivíduo: é o canto gratuito - que o pássaro produz, não importa os perigos que ele corra. Segundo Olivier Messiaen, [o canto gratuito] é de uma extraordinária beleza! E quanto mais forte for o crepúsculo; quanto mais se espalhar a cor violeta; e quanto mais bonita for a aurora - mais esplendorosos os temas e motivos que o pássaro canta.
A partir dessa colocação, é evidente que há uma diferença do canto da primavera e do grito de alarme para o canto gratuito - porque esse canto é gratuito [exatamente] porque não presta nenhum serviço ao organismo ou à espécie.
Se, de algum modo, eu me fiz entender; se alguma coisa do que eu falei atravessou... (caso contrário, mais adiante eu farei com que vocês entendam!) - eu marquei claramente a existência - pelo menos nos pássaros - de dois tipos de corpo: um corpo orgânico, que está sempre a serviço da espécie e do indivíduo; e um corpo que, por enquanto, eu só posso chamar de um corpo estético. No caso dos pássaros, é um corpo que fica de tal forma tocado diante das luzes, da claridade e das cores que o crepúsculo e a aurora produzem, que começa a [emitir] - Atenção! - ondas rítmicas: ele gera ondas rítmicas, que se encontram com as forças da natureza. E quando o ritmo se encontra com as forças da natureza - isso se chama SENSAÇÃO.
- O que é a sensação?
A sensação é a potência de um corpo vivo, que produz uma onda de intensidade - que no caso dos pássaros são os ritmos; e no caso das forças caóticas da natureza, as misturas das cores, dos calores e das luzes... E quando essas duas linhas se encontram, emerge o que Olivier Messiaen vai chamar de personagem rítmico. O personagem rítmico não é um sujeito, não é um pássaro. O personagem rítmico é uma onda, que se serve do corpo do pássaro.
Então, através do encontro das ondas estéticas e da composição do personagem rítmico - que é exatamente o pássaro ao fazer esse canto; com as forças do sol, as forças da natureza - que eu passarei a chamar de paisagem melódica - alguma coisa em termos de corpo, em termos de pensamento e em termos de tempo se produz.
Essa mesma exposição (que provavelmente, por enquanto, nem todos puderam entender...) poderemos encontrar no cinema de um diretor de Nova York - que é o John Cassavetes. Todo o cinema do John Cassavetes é um cinema do CORPO - mas de modo nenhum do corpo orgânico. Usando [o que eu falei sobre] os pássaros... - o cinema do Cassavetes é um cinema do personagem rítmico e da paisagem melódica. Repetindo: Cassavetes introduz no cinema o corpo - mas de modo nenhum o corpo orgânico.
O nome do pássaro em português é TORDO e em francês "GRIVE".
Eu vou passar a chamar o corpo do Cassavetes, da mesma maneira que o corpo do pássaro... Eu vou chamar o corpo, com que o Cassavetes trabalha - literalmente - de corpo histérico. E aí, com uma certa facilidade, eu já faço a distinção de que, no nosso corpo, nós teríamos - misturados - o corpo orgânico e o corpo histérico. Esse corpo histérico foi apresentado teoricamente no Ocidente pela obra de Artaud - que dá a esse corpo o nome de CORPO SEM ÓRGÃOS.
A nossa apreciação dessa questão não é difícil: de um lado um corpo orgânico - sempre a serviço da espécie, a serviço do indivíduo; e de outro lado, um corpo estético, ou melhor, um corpo histérico - ligado à produção da beleza.
Nesse começo de aula, eu vou aproximar a obra do Cassavetes da obra do Tordo. Cassavetes, o Tordo ou o Tordo Cassavetes - tanto faz.
Da mesma maneira, se eu sair do plano do cinema - desse plano belíssimo do cinema ([cujos] filmes nós teremos que tentar ver...) - e entrar na pintura, por exemplo, nós vamos apreender o mesmo processo, porque a pintura traz uma marca muito clara [dele]. O séc. XX, em termos de artes plásticas - afora certas tolices que existem por aí - foi um rompimento com a arte figurativa. Pra facilitar, eu vou chamar, aqui, a arte figurativa de arte propriamente orgânica.
O que aconteceu no séc. XX, fundamentalmente nas artes plásticas, foi a emergência da arte abstrata: Mondrian - que está sendo recuperado agora; Kandinsky; e, mais pra frente, os expressionistas abstratos: Pollock, e assim por diante. Mas também, já no final do século, um pintor chamado Francis Bacon - cuja questão é a mesma do Tordo e a mesma do Cassavetes: a produção, na pintura, de um corpo histérico. Ou seja, nesse instante, em termos ornitológicos, em termos picturais e em termos cinematográficos, eu estou começando a constituir uma nova estética - a estética das ondas rítmicas, a estética das forças da natureza e a estética das sensações. Se quisermos nos apropriar mais do que eu estou dizendo, vamos encontrar a mesma questão na literatura, na poesia... - em Fernando Pessoa, por exemplo, que é chamado o poeta das sensações!?! As sensações - são a mesma coisa que os ritmos do Tordo e as atitudes e as posturas das personagens do Cassavetes.
A ligação que eu vou fazer do pensamento com o corpo não é a ligação do pensamento com o corpo orgânico, porque essa separação do corpo e do pensamento - que tem origem no platonismo - é a separação do corpo orgânico: que se separa do pensamento.
- Mas, o que eu estou chamando de corpo histérico?
No caso do cinema, o corpo histérico se manifesta por atitudes e posturas - que se originam numa expressão do Brecht chamada "GESTUS".
Gestus - por enquanto - seria [apenas] uma maneira do corpo histérico se manifestar. E o cinema do Cassavetes não é, de forma nenhuma, um cinema fundamentado na história, na intriga ou no enredo. Nada disso! O que se dá no cinema do Cassavetes é uma associação das atitudes e das posturas (que nós vamos entender de qualquer maneira!). Mas, a partir disso, eu posso dizer que é esse corpo das atitudes e das posturas - o corpo do gestus, o corpo da deformação do Francis Bacon, ou então o corpo do personagem rítmico - que vai fazer uma associação com o pensamento. Ou melhor: esse corpo - que eu chamei de histérico - força o pensamento a pensar.
Essa expressão, que eu acabei de usar aqui, é realmente muito difícil, porque - classicamente - nós entendemos o pensamento como aquilo que funciona sempre por sua boa vontade - e eu estou dizendo que não; que o pensamento é forçado a pensar por este corpo que eu chamei de "corpo histérico" - o corpo das atitudes e das posturas, o corpo do gestus. Ele força o pensamento a pensar.
- Força a pensar, o quê?
Ele força a pensar o impensado - a pensar o corpo, a pensar a vida. É como se, de repente - diante de toda essa história pesada da filosofia - nós tivéssemos a viabilização, a possibilidade do pensamento pensar. E o pensamento, quando pensa, o que ele pensa é - o corpo e a vida.
Então, vocês vão ver - o cinema de Cassavetes é um cinema explicitamente do pensamento! Quando o Cassavetes se junta com a Gena Rowlands - [onde quer que] aquele par magnífico se reúna... - pode ser em Glória, Love Streams, Faces - o que está passando por ali são gestus, posturas e atitudes - e o pensamento dando conta daquilo. Ou seja, quando eu fiz essa distinção de corpo orgânico e corpo histérico; e, no caso de Cassavetes, liguei o corpo histérico às posturas e atitudes, o que eu quiz dizer pra vocês é que - a função do pensamento é pensar todas as atitudes e as posturas do corpo - insônias, sono, tristeza; todas as linhas de errância - abstratas e difíceis - que o corpo produz.
Então, de um outro lado, a minha aula tem (olhem o nome:) uma postura ética, - postura é coisa de corpo, não é? -, uma postura espinozista; no sentido de que - sem temores, sem medo da morte - o que nós vamos fazer é PENSAR O CORPO.
Esse é o meu curso pra vocês!
Mas quando o pensamento e o corpo começam a fazer essa associação estranha - associação no cinema, associação no teatro, associação na pintura, na dança, etc. - quando essa associação começa a se dar - o corpo começa a secretar O TEMPO. E o pensamento começa exatamente porque ele fez essa associação com o tempo. Ele invadiu o corpo para pensar e dar conta do que ele é... - esse corpo começa a gerar o tempo.
Então, eu posso falar, sem o menor problema, que o cinema de Cassavetes é um cinema do tempo - ou o cinema do Godard... etc. Por quê? Porque a composição do pensamento com o corpo faz com que o corpo secrete tempo. Essa idéia de tempo é uma idéia absolutamente trágica - porque é ela que nos dá e nos tira a vida. Pelo menos, é assim que nós pensamos o tempo.
Acontece que toda a tradição do Ocidente compreendeu o tempo segundo o modelo orgânico, ou seja - aquele modelo que não passa; funcional, organizacional. O tempo foi compreendido, pelos pensadores do Ocidente, em termos de tempo orgânico ou tempo cronológico. Como? Porque o organismo produz o tempo que lhe interessa. E o homem, na sua pequena humanidade, não faz nada mais do que servir a esse organismo.
Agora, o que eu estou falando, é que nós vamos romper com esse tempo cronológico, para encontrar outras formas do tempo, ou melhor - a pura forma vazia do tempo.
- Como eu consegui atingir essa posição nesta aula - a posição de chegar a um momento e dizer que o corpo secreta o tempo?
Para Proust, esse tempo secretado pelo corpo - agora vem um enunciado assim terrível - talvez seja o único índice de imortalidade. Ou seja: Proust afirma que as religiões não podem - em nenhum momento - nos indicar a possibilidade de que nossa alma seja eterna. Mas quando o pensamento mergulha no corpo e encontra o tempo... - ele começa a conhecer os segredos da eternidade. Então, a partir daqui, eu mostro pra vocês que, ao pensar o tempo, nós pensaremos juntos também a eternidade.
Em função do que eu acabei de dizer, eu acredito que, agora, a aula possa começar. Eu acho que nós já temos todos os elementos básicos, pelo menos para esta aula... - corpo, pensamento e tempo.
Falar sobre o tempo - entrar no tempo - provavelmente é um dote - e, sem dúvida nenhuma, filosófico: porque esse procedimento tem início no século IV com o neo-platonismo - Plotino - que é penetrar no tempo, e entender exatamente o que é isso; entender o corpo; e entender o pensamento.
Então, começamos a fazer a nossa viagem...
Há uma doutrina que provavelmente tem início no séc. I d.C. - chamada animismo - que afirma que tudo aquilo que existe tem vida. Ou seja, o animismo coloca a alma em todas as coisas. Essa doutrina, por sua própria maneira de se apresentar, cai num misticismo exagerado... - e praticamente se perde. E [se perderia pra sempre,] caso não fosse adotada pela Filosofia do Plotino.
Para pensar o tempo, o corpo e o próprio pensamento, eu estou utilizando agora como instrumento teórico (poderia ser outra coisa!) uma tradição que nasce com o neo-platonismo no séc. III ou IV d. C. - tradição que vai trabalhar com a noção de contemplação - que eu vou passar a explicar. Toda a razão de ser da noção de contemplação está diretamente ligada à questão do tempo. Essa noção já é platônica... - mas no Plotino ganha uma diferença.
Essa tradição que nasce com Plotino, vem até hoje, na obra do Gilles Deleuze. Ou seja, sem medo de errar - Deleuze é neo-platônico.
- O que é exatamente isso, e por que eu estou usando esse instrumento difícil - chamado contemplação - para poder penetrar nas questões do tempo e nas questões da eternidade; nas questões do corpo e nas questões do pensamento?
Essa tradição, que começa em Plotino, prossegue com Santo Agostinho, com os ingleses - com Samuel Butler na Inglaterra, por exemplo...
Samuel Butler diz que uma semente de rosa, jogada na lama - sem mãos, sem pés e sem nenhum instrumento - é capaz de transformar essa lama na qual ela está inserida em macias e perfumadas pétalas de rosas, de forma magnífica! O que eu estou dizendo, é que as rosas são produzidas pelas sementes; e essas sementes fazem as suas roseiras e as suas rosas com a lama, - a água e a terra -, que é a matéria que elas utilizam para transformar aquilo num determinado ser: a roseira, apinhada de rosas...
Ao fazer isso, a semente não produz nenhuma atividade. A única coisa que a semente faz... - é contemplar!
Ouvir uma tese dessas, é quase enlouquecedor! Uma tese de que a natureza produz - não pela atividade - mas pela contemplação. Essa afirmação que eu fiz, de forma muito ligeira... - nós temos dez aulas para poder sustentar isso... Eu estou dizendo que, na natureza, a geração não se dá por processos de atividade... mas por processos contemplativos. Quando a gente fala "contemplação", vem logo à nossa mente a idéia de narcisismo.
Narciso era aquele que contemplava a sua imagem... Por isso, existe uma distinção, também neo-platônica, entre narcisismo formal e narcisismo material. O narcisismo material é quando Narciso contempla a sua imagem e se esgota naquela contemplação. Enquanto que contemplação formal, ou o narcisismo formal, é quando essa semente de planta - sem olhos - contempla a natureza; e, ao contemplar, sintetiza os elementos, de tal maneira, que novos objetos começam a ser gerados. Ou seja, [a partir] da contemplação de uma semente - na lama - uma série de sínteses irão se processar... - e essas sínteses vão gerar os objetos que existem na natureza.
O que eu acabei de [passar] pra vocês, numa apresentação ainda muito ligeira, foi a idéia de CONTEMPLAÇÃO. É uma idéia muito difícil - sobretudo para nós, que traduzimos toda a nossa vida em práticas! Nós só acreditamos na atividade; quando [o que eu] estou dizendo [é] exatamente o contrário. Eu estou dizendo que a natureza como a arte produzem quando contemplam. Então, entrou uma nova idéia - a idéia de contemplação.
Essa idéia de contemplação - como eu coloquei pra vocês - tem origem no pensamento platônico; se deforma ou toma outra linha no pensamento neo-platônico - no pensamento de Plotino; e vai explodir no séc. XVIII. Nesse século, os pensadores ingleses, os pensadores da ilha - Hume, Locke, mas sobretudo Hume - tomam essa idéia de contemplação como a idéia fundamental de sua obra.
(virada de fita...)
Há uma idéia que nós utilizamos nas práticas quotidianas, mas que é muito poderosa nessa filosofia que eu trabalho - é a idéia de REPETIÇÃO. Aliás, é a idéia de repetição física, de repetição psíquica e a idéia de repetição ontológica. Inicialmente, eu vou trabalhar com essa idéia de repetição - idéia terrível! idéia terrível! - que praticamente dirige a obra filosófica do Deleuze.
A idéia de repetição.
Vamos tentar entender essa idéia e vocês não precisam se preocupar se vocês tiverem perdido tudo aquilo que eu já disse.
Não faz mal - eu vou ajeitando... até que vocês possam tranquilamente dizer: "Eu estou compreendendo o que está se passando..."
A idéia de Repetição.
Pra vocês entenderem, a repetição pode ser exemplificada como a repetição do barulho de um relógio - tic-tac, tic-tac, tic-tac. Qualquer um de nós - no silêncio da noite - [percebe claramente] essa repetição do relógio... "tic-tac, tic-tac, tic-tac" (não é?) - Isso se chama repetição! Quando ouvimos esse "barulho", passamos a achar que sempre que o tic aparecer, logo em seguida virá o tac - nosso espírito fica na absoluta convicção de que esse fenômeno vai ocorrer! Ora, se é tic, em seguida tac, depois tic, depois tac - tic-tac, tic-tac... - O que faz o espírito? Quando o espírito ouve o tic-tac... - de tanto ouvir essa repetição... - quando aparece o tic - ele, o espírito - antecipa o tac; isto é: o espírito não espera que o tac chegue... - antecipa-o. Ou seja, o processo de antecipação é um processo que se dá - em nosso espírito - quando a natureza se repete; e nós acreditamos - temos a crença - de que aquela repetição vai permanecer. Sempre que acreditamos que uma repetição vai permanecer - antecipamos um de seus elementos. Neste caso - antecipamos o tac.
Quem antecipa não é a natureza - quem antecipa é o espírito! Então, quando o espírito contempla a natureza e a natureza lhe oferece um processo de repetição... - esse processo é infatigável! A natureza sempre repete [o mesmo processo...] - e o espírito começa a produzir uma diferença naquilo: começa a introduzir a retenção e a antecipação.
O que quer dizer isso?
De tanto ouvir tic-tac, o espírito retém o tic, antecipa o tac e junta os dois - no tic-tac. Isso porque - fora do espírito - o tic e o tac são dois elementos separados: ou seja, quando aparece o tic; em seguida aparece o tac. Mas o tic não pode re aparecer, se o tac não tiver des aparecido!... O que implica em dizer que, o processo de repetição na natureza, pressupõe (Olha lá, heim?) a noção de INSTANTES DESCONTÍNUOS. A natureza nos mostra isso. Ela nos mostra o que se chama - "Os Instantes Descontínuos..."
- O que são os Instantes Descontínuos?
É a aparição de um elemento... e a des aparição desse elemento - para que um outro elemento surja. Ou seja: os dois elementos jamais apareceriam ao mesmo tempo na natureza! Isso se chama - descontinuidade dos instantes. O espírito contempla essa descontinuidade dos instantes - [antecipa] um instante e retém o [outro]. Na natureza, esses dois elementos estão separados; no espírito, eles se juntam. No espírito, não existe mais um tic e um tac - porque o tic e o tac formam uma pequena extensão. Na filosofia do tempo, de Bergson, esta "pequena extensão" chama-se DURAÇÃO; ou seja - o espírito, que reteve e antecipou..., reteve e antecipou esses dois elementos descontínuos produzidos pela natureza. Esse "procedimento espiritual" é - simultaneamente - a INVENÇÃO DO TEMPO.
(Eu sei que foi muito difícil!...)
O que eu acabei de dizer pra vocês, é que, para que o tempo surja, ou melhor: a condição para que surja o tempo - é que exista o espírito que contempla.
(Eu ainda não espero nenhum resultado dessa afirmação que eu fiz pra vocês. Esses resultados, nós devemos obter na segunda aula!)
O que eu falei agora pra vocês, é que NA NATUREZA existiria um processo de REPETIÇÃO: um processo de repetição descontínuo. O espírito contemplaria essa repetição descontínua, juntaria os elementos que na natureza estão separados, e ao juntar esses dois elementos, o espírito formaria uma pequena linha: uma pequena extensão, ou seja - formaria uma DURAÇÃO.
Ou melhor: o tic aparece. Quando o tic des aparece, o tac aparece; quando o tac desaparece, o tic aparece, (não é?) Então, o tic e o tac - cada um deles é um presente que se dá na ausência do outro; ou seja: cada instante, quando aparece, para que o outro instante apareça, ele tem que desaparecer.
Quando esses dois instantes se juntam no espírito, o instante anterior passa a se chamar passado; e o instante posterior passa a se chamar futuro. O tic - que é presente na natureza; e o tac - que é presente na natureza; no espírito - tornam-se passado e futuro. Ou seja: o espírito - que contempla - produz O TEMPO!
(Ninguém se preocupe que, na próxima aula, eu vou voltar a isso daqui!)
- Como o espírito produz o tempo?
Ele produz duas dimensões - o passado e o futuro. Esse momento, em filosofia, é simultaneamente de uma dificuldade extremada... e a grandeza do pensamento: é o pensamento perdendo os seus limites - e indo além deles - para alcançar o impensado: o tempo e o corpo.
(Agora - para obter um pequeno resultado - nós vamos voltar para uma outra maneira de pensar... que acompanha essa que está aqui.)
Eu chamei a natureza de um processo de repetição. Mas ela é um processo de repetição muito estranho - porque ela é um processo que aparece e desaparece para que o outro apareça. Então, é como se a natureza fosse um permanente piscar. Essa maneira de ser da natureza constituiria os instantes - um separado do outro. Então, nós teríamos uma sucessão de instantes... e cada instante estaria eternamente separado do outro instante. A presença do espírito seria o que se chama - SÍNTESE.
- O que quer dizer síntese?
Síntese quer dizer - juntar aquilo que está separado. O espírito pratica uma síntese, porque junta - dentro dele - os instantes que estão separados. E ao juntar os dois instantes... - ele faz uma síntese; mas acontece que o espírito não produziu nenhuma atividade. Ele fez essa síntese apenas por contemplar. Por isso, essa síntese é chamada de síntese passiva.
- O que quer dizer passivo?
Passivo quer dizer - aquilo que não produz modificação no objeto contemplado, ou seja: o espírito não produz nenhuma modificação na repetição da natureza - mas ele próprio se modifica. Então - a repetição da natureza e a diferença do espírito.
Voltando: eu disse contemplação; disse que o espírito contempla; e disse que o espírito faz uma síntese.
Hume, o filósofo que eu estou citando, chama - orgulhosamente - essa síntese de Espírito ou Imaginação Contraente. O espírito tem o poder de contemplar os instantes separados na repetição da natureza..., contraí-los no seu interior, e, ao fazer essa contração - dentro de si - ele gera o tempo. O tempo emerge: o tempo emerge no espírito.
(É um momento difícil... Claro, que é um momento difícil... porque, subitamente, vocês saíram da cidade - dos movimentos da cidade - para cair dentro de sínteses passivas e das contrações do espírito!...)
Nós ficamos praticamente assustados. Mas, por quê? Porque - quando o pensamento se associa com o corpo; ao pensar o corpo... - ele verifica que o corpo secreta tempo: abandonamos definitivamente o senso comum!
Ou seja - tudo aquilo de que eu estou falando, é impossível de ser compreendido pelo senso comum! Por quê? Porque são as experiências mais possantes que o espírito humano pode fazer. Essas experiências, que eu estou mostrando pra vocês, é a repetição da natureza - que seria a eternidade; e a contemplação do espírito - que seria o nascimento do tempo.
Esse nascimento do tempo - que evidentemente não ficou claro... que evidentemente produziu uma dificuldade imensa, (não é?) - é difícil de entender... Mas é exatamente esse nascimento do tempo que vai ser a maneira como eu poderei explicar pra vocês o canto do tordo, o personagem rítmico, a paisagem melódica, as atitudes e posturas do Cassavetes, a deformação do Francis Bacon, e assim por diante.
Ou seja: o que faz o pensamento - sua única questão - é conquistar o tempo.
Parece uma coisa simplória..., mas não é, porque o modelo do organismo predomina inteiramente sobre nós - e nós não podemos compreender o tempo exatamente por causa do modelo que ele projeta sobre a gente.
A primeira aula é dificílima... - é dificílima! -...porque nós começamos a fazer um contato, um agenciamento: cada um de nós se torna o intercessor do outro - o olhar de vocês é intercessor pra mim, as minhas falas são intercessoras pra vocês! Nós começamos a fazer uma combinação, que começa a nascer num determinado período da aula - onde alguns começam a sentir maiores facilidades, outros maiores dificuldades em entrar na questão levantada.
Claudio: Quanto tempo eu falei?
Aluno: 45 minutos...
Eu vou fazer o seguinte: eu vou falar mais vinte minutos, depois vocês tomam um café, uma coisa qualquer... - porque essa aula pesa muito. Ela pesa! É preciso ter uma certa pacificação...
Al.: Claudio, a idéia de contemplação?...
Cl.: Não conseguiu?
Al.: Ainda não!...
Cl.: Vamos tentar, então.
Al.: Partindo da semente da...
Cl.: É o seguinte: esse autor que eu citei - chama-se Samuel Butler - é inteiramente desconhecido dentro do campo da filosofia. Na literatura, ele tem um certo conhecimento... Butler é um pensador dessa tradição neo-platônica. E ele diz o seguinte: você joga uma semente na lama: a semente cai na lama... Essa lama é água, terra, luz e ar. Ou - quimicamente mais bem explicado - é fósforo, é carbono, etc. E a semente está ali! Qual é o procedimento que essa semente tem para se transformar numa rosa, sabendo-se que a matéria da qual ela vai se servir, para que a rosa nasça, é a lama que a circunda? É essa a questão! Ou seja: quando você encontra uma roseira, essa roseira se originou numa semente; e essa semente retira da lama os componentes para produzir as suas rosas.
Al.: A Contemplação dá uma idéia de passividade!
Cl.: Inteira passividade! Você não viu que, quando eu falei no espírito, eu disse que ele era passivo?É exatamente isso: é uma contemplação passiva! A dificuldade inicial que nós temos para entender isso, é que todas as tradições psicológicas são de uma psicologia ativa. A psicologia não parou de rejeitar a contemplação. Então, a dificuldade é exatamente essa. Mas se você pensar uma coisa... - é muito simples! - você joga... uma semente de qualquer coisa na terra... e ali vai brotar alguma coisa!...
Al.: Não há uma interação?
Cl.: Como, interação!? A terra cede seus elementos pra semente.
Al.: E a semente não faz nada?
Cl.: Faz! Ela.. contrai! Da mesma maneira que esse espírito contraiu... Depois você vai entender perfeitamente isso: o processo da semente é um processo de contração. Ela contrai os elementos - e ao contrair esses elementos - ela começa a gerar esse mundo lindíssimo que nós temos. Da mesma forma que um pássaro canta para o sol - uma semente contempla a natureza. É o mesmo procedimento!
(Eu estou tentando mostrar pra vocês que o nascimento do tempo pressupõe o espírito; - e se fundamenta na contemplação. Eu não quero nenhuma vitória excepcional numa primeira aula!?... Evidente, que não! O meu procedimento nessa aula é, inclusive, muito estratégico!)
Alº.: Quer dizer que o corpo histérico força o pensamento a pensar?
Cl.: Força!
Alº.: O corpo orgânico também?
Cl.: Não! Pelo contrário! O corpo orgânico se submete ao organismo; e o órgão principal é a consciência. Ou seja: o corpo orgânico é todo governado pela consciência.
Alº.: E a natureza humana?
Cl.: A natureza humana é orgânica - e dominada pela consciência. É preciso romper com o humanismo para chegar a essa posição que eu estou colocando. O maior adversário dessa posição é, sem dúvida nenhuma, o humanismo; porque o homem enquanto tal é orgânico e - como diz Nietzsche - a consciência é o órgão mais jovem. O que eu estou mostrando pra vocês... é que o pensamento só pode pensar se a consciência for paralisada - porque a consciência é um obstáculo para o pensamento.
O homem projeta o organismo que ele é - projeta sua "pequena humanidade" sobre a natureza... - e quer encontrar nela o espelho de si próprio: é o NARCISISMO MATERIAL. O homem quer se rever por toda a natureza e, a tal ponto, que nós vimos nascer, neste século, essa coisa notável, que foi a descoberta do inconsciente... - para afinal o inconsciente ser barbaramente HUMANIZADO: passamos a ter um inconsciente humano...
Eu vou tentar mostrar pra vocês que não é nada disso! O que nós temos que [fazer] é produzir a libertação do pensamento, através das forças do corpo que forçam o pensamento a pensar... O pensamento é forçado pelo corpo: pense! Mas pense, o quê? Pense a mim! Pense a mim - o corpo. O pensamento pensar as posturas e atitudes do corpo - e é nesse procedimento que nós ultrapassamos o humanismo.
O que o M. citou... (não é?) - e eu acredito que a resposta foi precisa... - porque se nós tomarmos a consciência como um órgão, a função da consciência é - permanentemente - a mesma: servir ao organismo! Em termos nietzscheanos, a consciência é uma força reativa. Em termos espinozistas, a consciência é uma força conservativa. [Enquanto que] o pensamento é avassalador, é conquistador, é criador. Ou seja, a única questão do pensamento é criar e inventar - não importa como!
Então aí a gente teria - nitidamente - não uma dialética, não um confronto do pensamento com a consciência, porque o pensamento - em momento nenhum - faz confrontos. Quem faz confrontos é a consciência, que vive sob regime das opiniões. O pensamento, não! Por isso, a questão de um pensador não é apresentar opiniões - para serem debatidas; mas constituir problemas - para serem pensados. Não haveria nem possibilidade de dizer dialética entre o pensamento e a consciência... porque a oposição, a dialética - esses conceitos - eles pertencem à consciência: não pertencem ao pensamento.
De uma outra maneira, para vocês entenderem... Vou citar até uma aluna minha, que está aqui. No século XVI, se eu não me engano... - parece que é uma loucura o que eu vou dizer, viu? No século XVI, a indústria têxtil americana estava funcionando exacerbadamente; magnificamente. E ela produzia bordados. O bordado são linhas que se põem sobre os tecidos... Ela produzia vestidos que eram só bordados. Eram de uma beleza extraordinária. Mas chegou um momento em que a indústria têxtil entra em crise... Quando isso ocorre, começa a desaparecer o pano, surge o PATCHWORK.
Os patchworks são [feitos de] remendos... (certo?) Eu diria... - há uma certa dificuldade!... -...que o bordado se origina no organismo... - e o patchwork, no pensamento.
Numa outra linguagem, quando nós acompanharmos esse curso vocês vão ver, que vai haver uma distinção - que eu vou fazer - entre espaço nômade e espaço sedentário. O espaço sedentário é exatamente o espaço do organismo, que quer, a todo tempo, a conservação. Quer tanto a conservação que inventou a vida depois da morte. Vida orgânica, depois da morte. E de outro lado, o pensamento - cuja questão é nomádica, a questão dele é - sempre - inventar e criar.
(Então, agora vocês vão tomar um café!)
O procedimento desta aula se assemelha às atitudes e posturas - que forçam o pensamento a pensar. Ou seja, o que eu objetivo nesta aula é fazer com que vocês pensem - não importa o caminho que eu siga! Por exemplo... eu já recebi uma observação magnífica, feita por E., onde ela encontrou uma semelhança entre a semente contemplativa e os pássaros da primavera - sem dúvida nenhuma!
Esse cinema do Cassavetes, que eu chamei de cinema de "atitudes e posturas" - ele secreta tempo. O que eu estou dizendo aqui? A obra de Deleuze sobre cinema traz uma divisão definitiva: o cinema que não produz tempo e o cinema que produz tempo. O Cassavetes estaria entre os cineastas do tempo. Mas por que eu estou dizendo isso? Porque haveria um cineasta - que eu pediria demais que vocês vissem - é o Joseph Losey. E o filme, que eu gostaria que vocês vissem, tem em vídeo, é O Criado. Certo? Quer dizer, se vocês puderem... não digo já pra depois de amanhã - isso vai ser demais, não é? Mas, vamos dizer, pra segunda-feira que vem, já ter um Cassavetes e um Losey vistos, já é bastante para mim. Do Cassavetes, Glória - que tem em qualquer vídeo.
Por exemplo: vejam a estratégia desta aula. O mecanismo desta aula, é como se ela fosse quebrada. Ela produz um espaço assim rompido... e esse é meu objetivo.
(fim da fita 1)
Fita 2
O Proust considera que a prática do artista é inicialmente um confronto que o artista faz consigo próprio. É o sujeito artista buscando quebrar o domínio do pessoal em nós: romper com a personalidade, romper com a pessoa, quebrar esses esquemas - para poder produzir a obra de arte.
É muito semelhante a tudo o que eu passei pra vocês... - ainda que com certa equivocidade... - quando eu falei no pássaro, quando eu falei no histérico do Cassavetes, quando eu falei no figural do Francis Bacon. O que eu vinha mostrando a vocês é que - por exemplo, Proust; por exemplo, Cassavetes; por exemplo, Olivier Messiaen - todos eles sabem que qualquer homem que queira fazer uma obra arte, que queira produzir uma obra filosófica ou mesmo produzir uma obra científica, o confronto fundamental que ele faz é consigo próprio. Um confronto consigo mesmo. Esse confronto consigo mesmo é um confronto terrível, um confronto dificílimo, mas que seria a única maneira, diz o Proust, que poderia surgir o sujeito artista. Então, o artista, o histérico, o tordo - esses se marcariam pelo deslocamento que eles fariam em relação à vida pessoal. É o rompimento com a estrutura psicológica, rompimento com a história pessoal, rompimento com o passado. Outra vez: rompimento com a história pessoal, rompimento com o passado.
- Por que eu estou insistindo nisso? Porque esse filme do Cassavetes - o Glória - é exatamente isso: exatamente uma personagem (a Glória) e outra personagem (o garotinho chamado Phil), e o que eles fazem no filme é romper com a história pessoal, romper com todo o passado deles, e - a partir daquele rompimento - através das atitudes e das posturas - eles produzem história; ou seja: as atitudes e as posturas não se originam numa história pessoal, as atitudes e as posturas rompem com a história pessoal - e começam a gerar mundos novos.
Essa citação do Proust e essa associação do Proust com o Cassavetes é pra vocês poderem arrancar desse filme, vocês vão verificar que tanto a Glória - personagem-título - sobretudo ela, vai romper com sua história pessoal para poder gerar as atitudes e as posturas que são um conjunto de gestus. Isso, que eu estou dizendo, marca o grande inimigo do pensamento, do corpo e do tempo - que é o sujeito pessoal, o sujeito psicológico, a história pessoal. É exatamente [contra] essa figura que Proust - ao longo de toda a obra dele - faz uma guerra sem quartel. Romper com tudo aquilo que gera, em nós, o medo da morte - no sentido de que o medo da morte é aquilo que produz Deus; e aquilo que produz Deus nos paralisa. E ao nos paralisar, nos impediria de produzir uma obra de arte.
Então, é de uma radicalidade excessiva, é como se de repente o pensamento estivesse afirmando que - a única saída que ele tem - seria o ateísmo radical; e esse ateísmo radical revelaria para nós outros mundos - mundos que não apareceriam se não houvesse o sujeito artista para produzí-los. A arte - que seria conquistada através do pensamento; e de um pensamento radical - seria a produção do que Proust chama, do que Leibniz chama de MUNDOS POSSÍVEIS. Esses mundos possíveis pertenceriam ao nosso espírito - fariam parte do nosso espírito e não da nossa história pessoal. A função do pensamento seria extrair, colocar no mundo esses mundos possíveis. Proust diz isso de uma maneira radical, e o motivo pelo qual eu estou levando esta aula para esse caminho, é para fazer um acordo ou um desacordo entre nós: é que - se não houvesse o artista - nós seríamos forçados a viver num só mundo: sempre no mesmo mundo. Quem produz os novos mundos, os novos afetos, as novas formas de vida, é exatamente a arte.
Então, o que se torna primeiro para a vida de cada um de nós, é a liberação das forças da psicologia, para o exercício dessa liberdade do pensamento. Essa prática não precisa ser feita por um grande filósofo ou por um grande artista. Ela pode ser feita por qualquer um de nós: é fazer do pensamento a busca de novos mundos; e, a produção desses novos mundos, gerando o que é inteiramente impossível fora da arte - a comunicação entre as nossas almas.
O que eu estou dizendo pra vocês, é que nós todos estaríamos encerrados num solipsismo assustador, nós todos estaríamos encerrados na mônada que nós somos - sem portas e sem janelas - e sem possibilidades de comunicação de um homem com outro homem. Isso não seria alcançado, diz Proust, nem pela amizade nem pelo amor... Ele vai a extremos, quando rompe com a possibilidade de o amor e da amizade nos dar as composições com outros homens. Isso só aconteceria na obra de arte. Na obra de arte haveria como que a comunhão das almas - comunhão essa que não seria possível nem na amizade, nem no amor.
- Por que, nesse momento, eu citei Proust? Eu abandonei todos os meus interesses teóricos da primeira parte da aula, para usar Proust como instrumento estratégico pra vocês. Para que vocês percebam, que um pensador - Proust - altamente contemplativo - que fez da obra dele aparentemente um trabalho de memória, um trabalho de recordação, é simultaneamente de uma agressividade assustadora, querendo romper com os quadros da psicologia, que impediriam a nossa liberdade.
Então, a minha aula é simultaneamente teórica - como eu mostrei na primeira parte pra vocês; mas passa também um quadro existencial e figuras práticas, no sentido de que ouvir a minha aula como se fosse alguma coisa que pudesse ser ouvida... e deixar de lado - não teria o menor sentido. O que a minha aula fundamentalmente objetiva - é a modificação das subjetividades. É nós sairmos desse modelo de dominação que existe sobre nós, desde que nós nascemos até que nós morremos - que é uma subjetividade material - toda constituída em termos de hábitos e sentimentos; para produzir uma subjetividade espiritual - capaz de lidar com o pensamento, com o corpo e com o tempo.
Eu acho que aqui não há nem um tema de dificuldade... Essa exposição, que eu estou fazendo pra vocês, é pra mostrar que não pertence a homens excepcionais essa potência de fazer da arte o caminho da sua vida. Ou seja - quando lemos a obra de Deleuze, ela - literalmente - não pode ser compreendida, se nós não fizermos uma modificação [nas nossas vidas]. Ou seja: se nós não fizermos uma modificação, nós não a compreendemos. Não é que ela queria modificar alguém - é porque o ato de passagem dela, imediatamente produz uma imensa modificação, como vocês vão passar a assistir na próxima aula.
Eu considero a primeira aula como uma aula impossível - uma aula impossível de ser compreendida - porque todo um jargão, todo um modo de me expressar, que vocês nunca ouviram - que a maioria nunca ouviu... - citando pássaros, sementes, contemplações, espíritos, repetições, que parece que entramos num grande delírio... Muitos podem pensar assim - entramos num grande delírio! Mas não é exatamente isso. O meu procedimento - ao dar uma aula - visa fazer, daquele que está estudando comigo, torná-lo uma espécie de heterônimo meu, fazer dele um intercessor. Ou seja: fazer com que ele exerça os procedimentos dele - mas seguindo essa linha que eu passo pra vocês.
A história da arte, com muito mais potência que a própria história da filosofia, marca a distinção de uma arte clássica - que ela chama de arte orgânica; e de uma arte gótica - que ela chama de potência histérica. Se nós começarmos a entender os procedimentos de conflito entre o instinto e a inteligência - entre as nossas forças instintivas e as nossas forças intelectuais - nós vamos começar a verificar que a arte não é apenas um procedimento de entretenimento. Ela é uma luta, um confronto no interior de cada um de nós, e os objetivos dela são sempre os mesmos: a liberdade. A história da arte nos revela que - permanentemente - houve um confronto entre o instinto e a inteligência. O instinto predominou na arte primitiva ao ponto de produzir uma arte inteiramente angustiada, uma arte sofrida, uma arte dilacerada, uma arte instintiva, em que o homem se julgava uma metade separada da natureza... e, por causa disso, nasceria uma arte profundamente angustiada.
Quando esse tipo de arte aparece entre os gregos... - e os gregos são aqueles que superaram os instintos e elevaram o intelecto, elevaram a razão -...nasce o que se chama a arte orgânica - a arte da felicidade; uma arte em que o homem e a natureza fazem uma harmonia - porque o homem é dotado de razão e a natureza de racionalidade. Então, a natureza e o homem formam um bloco só - e é nessa arte, nesse momento, que nasce a arte que eu chamei de arte orgânica - uma arte em que o homem projeta o seu organismo sobre a natureza.
A arte gótica - que vai romper com essa arte orgânica - é como se fosse o retorno das forças instintivas. As forças do instinto retornam, mas já não retornam como eram no primitivo; elas retornam para produzir uma nova arte, uma nova geometria, uma nova figuração, ou seja - a arte gótica é de tal forma criativa, que ela investe no Caos, para do Caos gerar novas linhas. À diferença da arte grega, que é uma arte representativa - que supõe um modelo - um modelo da natureza, que deve ser copiado; a arte gótica é uma arte que se supõe lidar com o Caos; e ao lidar com o Caos, o que ela pretende é produzir no Caos novas formas. Então, esse exemplo que eu dei agora, da diferença da arte orgânica para a arte gótica - a arte gótica, sendo a arte histérica - é que é uma arte que lida com o Caos e uma arte que supõe que lida com um universo inteiramente formado.
O que o gótico traz de original e magnífico é a liberação do Caos. Essa posição é que o pensamento, quando se produz, a sua matéria não é uma matéria organizada e harmônica. O que o pensamento lida é com o Caos. A matéria do pensamento é o Caos. Nós, os humanos, procuramos, ao longo das nossas vidas, encobrir [essa questão através de] um jogo incessante de opiniões, onde procuramos nos proteger das forças insaciáveis desse Caos. O que Deleuze comunicou pra nós, é que o pensamento tem afinidade com o Caos; e que as razões principais das nossas infelicidades não são a relação do pensamento com o Caos, mas a relação da opinião com as harmonias.
O que eu disse para vocês, é que não é só a produção do pensamento - o pensamento sendo forçado a pensar o corpo - mas é o pensamento nos dirigindo para um "sem volta", para um "sempre", nos dirigindo para o Caos. O Caos que levaria o homem a produzir cidadelas, guarda-chuvas, proteções, é, segundo a obra de Deleuze, a única linha possível de salvação para a vida. É nós nos confrontamos com o Caos e produzimos, nele, um ritmo e uma melodia.
Esse final de aula, em que eu citei o Proust, quando Proust fala no sujeito artista, e no confronto que o sujeito artista vai fazer com o sujeito psicológico, e esse confronto vai se passar sempre em nossa vida; e de outro lado, o pensamento quando ele se confronta com o Caos. Se, de outro lado, o nosso pensamento não se confrontasse com o Caos, e do Caos arrancasse novos mundos, nós estaríamos sempre prisioneiros da mesma forma de viver. Então, tudo aquilo que dizem para nós, que o mundo orgânico nos diz - que só existe um mundo - mundo esse que precisa ser reformado e restaurado, se origina nos ideais orgânicos. Mas nós não temos que restaurar e reformar esse mundo: o que nós temos que fazer é inventar outros.
Ou seja, o processo da associação da vida, do corpo e do pensamento é um processo que exalta a nossa própria existência. Exalta, no sentido de que nós saímos do nada de vontade, saímos das tolices, que geralmente governam a nossa existência, para compreender que essa passagem que nós fazemos aqui é um processo de criação permanente.
Eu agora vou – como um processo só da primeira aula, na segunda e na terceira eu não farei isso - eu abro pra vocês me fazerem perguntas.
Alº.: Claudio, aquilo em relação ao tempo, que você falou no final da primeira parte, esse tempo produzido seria o tempo cristalino?
Cl.: Seria o tempo cristalino. A sua pergunta de tempo cristalino, é um conceito deleuzeano, é um conceito que vem num livro dele chamado Imagem Tempo, é o cristal do tempo, onde ele opõe tempo cristalino ao tempo orgânico. Sem dúvida nenhuma, seria o tempo cristalino, eu não pude mostrar isso hoje, na próxima aula eu vou mostrar.
Alª.: Na disposição de trabalhar e ver trabalhados, vamos dizer, esses conceitos... não seria que nós estaríamos sempre empenhados em não refazer, mas repetir --? -- quer dizer, todas as conquistas que se possa ter, em determinadas situações, elas não deixam de fazer valer a necessidade de entrar novamente nessa luta?
Cl.: Eu não diria luta. É um processo expressivo, permanente. Ainda não ficou claro, na minha exposição, mas nós teríamos como que duas subjetividades. Uma subjetividade psicológica - que está o tempo todo marcando seus sentimentos, seu organicismo; e uma subjetividade propriamente espiritual - de onde sairiam os processos de pensamento; ou seja: uma subjetividade que expressaria os mundos possíveis. No procedimento que eu expliquei sobre Proust ou mesmo Cassavetes, ou Godard, ou que importa quem seja... - são as mesmas coisas que eles estão pensando.
Alª.: O que eu queria colocar é que você não pode pensar em fazer um acervo de contemplação, você está entendendo? Fazer um arquivo de contemplação... A contemplação é sempre novamente aquele desconhecido que impõe a você... se você contempla!? É sempre "de novo"! A experiência já feita, ela retornará a ser necessária...
Cl.: Essa experiência da contemplação recebe, inclusive, uma nomenclatura diferente. Porque o campo experimental, que nós temos, é a experiência do mundo que nos é dado. Essa experiência da contemplação chama-se experimentação fantástica - experimentação transcendental. Você vai como que penetrar em novos mundos. Na próxima aula, nós já vamos entrar nisso! Essa aula de hoje foi uma aula inteiramente inicial, onde eu apenas trabalhei de uma maneira que vocês pudessem ouvir, com certa tranqüilidade, aquilo que eu estava dizendo... - mas devido à velocidade do nosso curso, quarta-feira já é um processo de entrada mesmo dentro do campo da filosofia, sem retorno!
Então, o que eu peço pra vocês, a única coisa que eu peço pra vocês, é um filme - um Losey, um Cassavetes, pode ser um Godard, também, no lugar do Cassavetes... Se vocês quiserem olhar, nessas revistas de pintura, o Egon Schiele, o Francis Bacon, o Lucien Freud. Esses - entre aspas - figurativos..., tá? Em questão de música, uma música eletrônica - bastaria um Stockhausen... porque, em matéria de arte, são os elementos que nós vamos trabalhar na próxima aula.
Eu vou tentar ajudar um pouco fazendo projeções. Enquanto eu estou dando a aula, as projeções serão feitas... Eu não estarei falando sobre aquilo, mas vocês estarão observando para "preencher" [os dados], (não é?) devido à pequena quantidade de tempo que nós temos.
Alª.: Você já ouviu aquela... Monk?
Cl.: Meredith? A Meredith Monk é minha namorada há muitos anos!
(risos...)
Al.º Eu tenho a impressão de que o pensamento não tem nenhuma função utilitária...
Cl.: Nenhuma!...
Alº.: Eu vou pensar no que esta aula vai ser útil para mim, para o meu trabalho!
Cl.: Nada!
Al.: No entanto, a gente vai continuar a ouvir, para abrir as portas...
Cl.: Do paraíso???
Alº.: Do amor... do dinheiro...
Cl.: O que nós vamos fazer, em função dele, é uma distinção muito grave entre intelecto e pensamento. É uma distinção que nós vamos fazer! A noção de intelecto e a noção de pensamento não se recobrem. Ou melhor, de outra maneira: isso é um modelo do Nietzsche, ouviu? A razão é um instrumento propriamente platônico. O Nietzsche não identifica razão e pensamento. A razão é o pensamento a serviço do orgânico. Acho que já dá para entender o que eu disse...
Alº.:Ah, dá!
Cl.: Perfeitamente!A razão é filha do orgânico. Por isso, a razão trabalha com dois elementos - conhecimento e moral. Pronto! Dê-me conhecimento, dê-me moral! Dê-me um fio de Ariana! É isso que a razão quer: ela quer conhecer e quer moralizar. Por isso o Nietzsche diz: "a razão é o pensamento governado pelo organismo". Acho que eu respondi a vocês, certo?
Alª.: Claudio, você falou que a obra de arte é única coisa que traz a comunicação entre as almas. (Cl.: Isso!) Al.: E a filosofia?
Cl.: Olha, classicamente, a filosofia quando nasceu, ela nasceu em função do amor. O filósofo é aquele que ama a sabedoria. Como existiam, na Grécia, diversos amantes da sabedoria, formou-se um bando de filósofos - que eram os amigos, os homens da philia. E esses homens eram - simultaneamente - rivais. Logo, eles não se comunicavam: eles tinham uma rivalidade entre eles. O que eu disse, é que a filosofia, segundo o seu modelo clássico - o modelo do intelecto e o modelo da rivalidade - ela não produz a possibilidade da intersubjetividade, nem da comunicação. Pelo contrário! O que eu estou querendo mostrar, é que é preciso romper com os quadros clássicos das nossas faculdades - liberar o pensamento - e essa figura complexa, (não é?) da comunicação entre as almas - que o amor parece não conseguir realizar, pela sua própria inconstância, pelo próprio fugidio, que é o amor... O amor assim, mais ou menos, segundo os versos do Bizet - ele foge, sempre, não é?
Essa questão que o Proust levantou acerca do amor e da amizade tem uma gravidade imensa! Porque todos nós - ao longo das nossas vidas - o que nós exaltamos é a amizade e o amor. E Proust radicaliza: os amigos estão sempre de acordo uns com os outros... e os amantes estão permanentemente em inconstância.
Olha, há uma saída para o amor... amar a inconstância. É a saída...
(risos...)
Cl.: Eu sei que é grave, isso que eu estou falando, (não é?) Eu aconselharia, aqui, um livro que saiu em português - é sobre Proust - de um autor chamado Grimaldi - O ciúme. Leiam esse texto: é muito bonito! É um texto sobre Proust, mas só a questão do ciúme. Porque o ciúme é devorador, (não é?) O ciúme é devorador! O Proust chega ao extremo! Ele diz: o ciúme não se origina no amor. O amor é uma produção do ciúme. O ciúme inventa o amor... - para ele poder passar.
Quando nós nos deparamos com esse tipo de pensamento, é como se nós nos entrássemos em linhas tão diferentes do senso comum, que elas nos assustam, elas nos assustam!
Então, esse livro do Grimaldi vai ser magnífico pra vocês!
Aula de 4/01/1995
primeira aula do Curso de Verão
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