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FOLIA ELEGANTE




FOLIA ELEGANTE DE Andrea Carvalho Stark -  REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, FEVEREIRO DE  2010, NÚMERO 53, na banca de jornal mais próxima...

Um pouquinho aqui...http://rhbn.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2888

Jorge Luis Borges, Sobre a amizade e outros diálogos

Quando algo acontece, já aconteceu há muito tempo, mas de um modo íntimo, ou seja, os fatos simplesmente vêm confirmar algo anterior. (...) Quando acontece alguma coisa, algo adverso, significa simplesmente que recebemos uma carta em que nos comunicam isso.
"CITAÇÕES EM MEU TRABALHO SÃO COMO SALTEADORES NO CAMINHO, QUE IRROMPEM ARMADOS E ROUBAM AO PASSEANTE A CONVICÇÃO". (WALTER BENJAMIN )

O sempre desequilibrado humano - Roberto da Matta

Tudo o que é humano é complicado; ou melhor: não pode ser simples, senão não é humano. O humano é impreciso, enigmático, ambíguo, pérfido e, acima de tudo, espesso como os nevoeiros e as peças de Shakespeare. É como as máscaras de carnaval e as cebolas: múltiplo; e tem muitas caras, varandas, porões e infindáveis corredores. Tem também o abraço solar, a mão aberta e calorosa, o sorriso que cativa e o beijo apaixonado que promove a vida. Tudo nasce de uma mesma fonte da qual jorra igualmente ódio, inveja, coragem e ressentimento. O transitório que, para Freud e Thomas Mann é tudo, promove a busca de consistência e do eterno. A saudade articula o instantâneo que é vida e a eternidade feita do nada. Os deuses nos invejam não só porque não existiriam sem nossas preces e oferendas, pois eles precisam de nós tanto quanto nós necessitamos deles, mas porque vivemos na transitoriedade e na dúvida do aqui agora, do ser ou não ser e do você e eu que engendram tenacidade, desejo, amor, lealdade e honra. Aquele "fazer ou morrer" da canção As Time Goes By. Não estamos aqui para brincadeiras e, diferentemente dos deuses, não temos tempo a perder. Exceto no carnaval...

No labirinto da vida, como na velha Creta de Teseu, ou se encontra uma saída ou se dá de cara com o Minotauro. O caso Lula é exemplar. Ele tem mais popularidade do que qualquer outro presidente. Ademais, como Prometeu (sem trocadilho), ele roubou a mais decisiva contribuição à modernidade democrática brasileira ? o Plano Real. Virou pai da revolução realizada pelo satanizado FHC que, como manda o paradoxal esquecimento humano, era estigmatizado pelo PT como "herança maldita". Hoje, vendo o Lula como cidadão do mundo, fazendo abertamente uma campanha política que os juízes não enxergam, transferindo votos para sua chefe da Casa Civil e rompendo com o dogma da transferência de votos que os marqueteiros ? esses derradeiros matemáticos do humano ? diziam ser impossível, julguei que o "cara" estava num mar de rosas. Mas eis que ele sofre um "piripaque". Eu medito: só os seres humanos sofrem tais reviravoltas. Só eles podem ficar mal quando tudo aparentemente vai bem. Seria uma premonição, por que quem tudo promete não consegue decidir? Ou seria algo sem importância? Mas há mesmo algo sem importância quando se trata do humano? Os tigres de dente de sabre quanto mais matavam, mais lhes cresciam e afiavam os dentes. Entre nós, porém, quanto mais sucesso, mais o fracasso ronda nossa casa; quanto mais subimos, mais depressa descemos; quanto mais gozo, mais angústia e sofrimento. O amor faz sangrar como os animais sacrificados. E a morte, sendo o nosso destino, só se desliga da vida pela paixão que ilude e vira o mundo pelo avesso.

Foi só a partir da institucionalização do individualismo que começamos a dizer abertamente que "Estamos muito bem, obrigado!". Antigamente, os brasileiros eram proibidos de assumir toda e qualquer felicidade. Não pegava bem ser feliz num mundo inseguro, desigual e injusto. Todos iam de mal a pior, como aqueles personagens de Machado de Assis. Aprendi a insistir no "vou indo" e, quando muito, soltar um "mais ou menos" que, nos Estados Unidos, assustava meus amigos crentes no "the sunny side of the street" (no lado ensolarado da rua). Se para nós, sofrer é mais ou menos normal, para eles o direito à felicidade é um projeto possível, autoevidente e constitucional. Em minhas preces eu rogo pelo amor e pela felicidade; meus amigos americanos, porém, nascem com a certeza de tudo isso e o céu também.

Vejam vocês: o sujeito se livra de um apuro apenas para descobrir que passou de um problema para outro. "Controlei finalmente o meu peso ? disse-me a ex-gordinha Selma ?, só que não como mais!"

O antropólogo e escritor maranhense Nunes Pereira, de saudosíssima memória, era meu amigo e me visitava de quando em vez quando eu trabalhava num museu. Fazia minha alegria, porque não é fácil trabalhar no meio de pesquisadores, coleção de ossos, bichos empalhados e múmias. Um dia, ele me contou o caso de um médico amazonense desgostoso com a depravação reinante na civilização da borracha que fazia de Manaus um centro de esbórnia. Constatado o hedonismo da capital amazonense resolveu, como um personagem de Joseph Conrad, renunciar à fortuna e aos vícios confortáveis, para viver em simplicidade e pureza. Afastou-se de Manaus até chegar a um derradeiro povoado, limite entre o civilizado impuro e o selvagem virginal. Ali, pegou uma canoa e remou em direção a uma casa de palafita situada no mais fundo da mata. Ao aproximar-se, vislumbrou formas estranhas num barranco. De perto, discerniu enojado: era um caboclo que copulava com um mamífero cetáceo de água doce ? um boto-fêmea! ? no barranco. A bestialidade no meio da selva mais pura, como queriam ele e José de Alencar, era muito mais ofensiva do que as perversidades pagãs dos lupanares de Manaus. Depois de tanto fugir, voltara ao ponto de partida. A fábula era sempre arrematada com um sorriso e o seguinte: Ele aprendeu que onde há o humano há o depravado e o perverso. Ou o desvio seria apenas um episódio na vida de um bicho não declinável, mas que se pensa como tal?

 

 

 

O sempre desequilibrado humano - Roberto da Matta. Publicado em O Estado de SP, 10 de fevereiro de 2010

Entrevista Contardo Calligaris

Nossa, como eles sofrem

O psicanalista explica a angústia de homens contemporâneos
com a perda de papéis tradicionais e o que mais eles precisam
que as mulheres lhes deem – compreensão e carinho


Juliana Linhares

Lailson Santos

"O homem passou a não saber
mais como 'ser homem'. Alguns
encaram os esportes radicais
como o que lhes sobra de virilidade.
Para outros, é a vida sexual"

O psicanalista Contardo Calligaris é bonitão, sedutor e tem a solução para melhorar seu casamento: deixe seu marido comprar aquela televisão enorme, compartilhe suas fantasias sexuais, incentive-o a largar o emprego e vagar de moto pela América Latina. E sempre, sempre, trate-o como um super-herói. Bem, como sabemos que isso não vai acontecer, Calligaris também se tornou especialista nas sofridas psiques masculinas. Quando fez o primeiro seminário sobre o tema, no fim dos anos 80, em Paris, ouviu de alguns dos presentes: "Mas o homem é uma questão? Há alguma coisa para dizer sobre isso?". Na época, as mudanças nos papéis femininos ainda estavam na berlinda. Colunista e autor da peça O Homem da Tarja Preta, Calligaris, de 61 anos, italiano com nacionalidade americana radicado em São Paulo, fala aqui do duro processo de aprendizagem que já alcançou progressos como a "realização de que o bife não salta direto do supermercado para o prato".

Do que, afinal, os homens reclamam? O homem herdou, em especial a partir do século XIX, dois tipos de papel na sociedade. Um deles era o de provedor, representado bem pela figura de terno e gravata, marido e pai de família. O outro era o de aventureiro, alguém eventualmente próximo até de um criminoso. Essas duas figuras representavam quase a totalidade do leque possível da masculinidade. A partir da metade do século passado, a situação começou a mudar. O papel tradicional das mulheres passou por grandes transformações, muito antes do dos homens. Elas tornaram-se sujeitos jurídicos verdadeiros, não se viam mais na dependência de um casal ou de um marido. E o lugar do provedor, que até então era exclusivamente masculino, passou a ser distribuído entre homens e mulheres. O homem não se justificava mais simplesmente por ser quem dava o sustento à família. E o avanço delas no campo até então masculino não parou por aí. Elas passaram a ser mães solteiras, não só por ação do destino, mas por vontade própria. Assim, outra faceta do papel do homem, o de ter e cuidar de uma família, também caiu por terra.

Como eles passaram a ver seu novo papel? Isso é uma coisa que quase todos os homens gostariam de saber. Algo que pode nos dar uma pista é olhar para os ideais que foram propostos aos meninos pelo mercado cultural na fase do pós-guerra. Houve uma enorme proliferação de heróis masculinos profissionais. Mais tarde, surgiu uma outra categoria de heróis, aqueles que cultuavam a ambição pelo poder, fosse ele econômico, militar ou político. Na geração dos anos 60, por exemplo, apareceu a fantasia do herói revolucionário. Che Guevara e Lenin faziam parte disso. Uma vez internalizado esse ideal de herói, surgiu uma questão para os homens que, é preciso que se diga, não se resolveu até hoje, que é a de redefinir a sua virilidade. Se por um lado ele vinha perdido, por não possuir mais o papel central de provedor, por outro, a exigência de que ele fosse um super-herói, ou algo muito próximo dessa condição, só aumentava. Em várias línguas existe a expressão "seja homem". Por trás dela há uma ordem para que o homem seja capaz, por exemplo, de arriscar a sua vida ou aguentar uma dor muito forte.

Por que esse imperativo, que existe desde sempre, teria agora se tornado mais pesado para os homens? Porque antes o lugar de provedor que eles ocupavam, e que até então era exclusivo, de alguma forma funcionava como uma moeda de troca. Agora, as mulheres competem por essa posição. No mercado de trabalho, por exemplo, elas disputam quase em pé de igualdade. O homem passou a não saber mais como "ser homem". Alguns começaram a encarar o risco mortal na prática dos esportes radicais como tudo o que lhes sobra de virilidade. Há outros que encaram a vida sexual como um lugar onde eles deveriam provar a sua masculinidade.

"Exceto se for um Colombo ou um Pizarro, a grande maioria dos homens vive entre a padaria, o bar, o escritório e a casa. E eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana.
É como se não devessem fazer isso"

O impulso das grandes realizações não é parte natural da psique masculina? Não foi ele que promoveu, por exemplo, a era das grandes navegações e as viagens no espaço? Esse sentimento teve dois preços. O primeiro foi a supressão do corpo. A ideia de sacrifício, de estoicismo, está sempre ligada aos heróis masculinos. O segundo preço está relacionado com a distância da vida cotidiana. A não ser que o sujeito seja um Colombo ou um Pizarro, a grande maioria dos homens vive entre a padaria, o bar, o escritório e a casa. E eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana. Uma grandíssima parte de sua existência é sempre vivida como se não fosse o que eles deveriam estar fazendo. Isso não acontece com as mulheres. Elas têm um saber prático, de apreciação da vida. Para eles, é como se fossem obrigados a se acostumar com uma mediocridade que não é verdadeiramente o seu destino.

E todos os bons maridos e bons pais, que constroem uma vida em comum, dividem tarefas e parecem muito satisfeitos? Os homens se adaptaram muito bem à prática de compartilhar a função de provedor com a mulher e mesmo à de dividir as atribuições materna e paterna. Os dois hoje educam e cuidam dos filhos juntos. Ela pode dar muito mais regras e instruções às crianças do que o homem, e ele pode acompanhá-las até o colégio, dois hábitos que, até pouco tempo atrás, eram feitos de maneira inversa. Evidentemente que com alguns percalços, mas tudo isso tem funcionado. O grande descompasso do homem contemporâneo está em outro lugar. Para ele, mesmo que esteja empregado em um lugar bacana, que esteja ganhando tudo de que precisa e pagando todas as contas, ainda o persegue o fantasma, fruto da tradição, de que ele não está dando tudo de si.

Um exemplo prático, por favor. O sujeito está se matando no trabalho, mas lamenta o fato de não ser um Indiana Jones. A mulher pode achar isso engraçado, mas para o homem não é. Na média, ele pode ter tudo o que quiser, casa na praia, viagens para o exterior uma vez por ano, mas lhe falta a dimensão de heroísmo. Ele não toca nem de perto a constelação de imagens que culturalmente constituem o universo de figuras masculinas com as quais sonhou. O que ele quer, acima de tudo, é uma dimensão de aventura. Uma dimensão na qual ele tem de dar provas extremas de bravura, de coragem, de desprendimento, em circunstâncias extremas.

Ah, mas as mulheres reclamam de maridos que nem sequer compram um bujão de gás. Em primeiro lugar, preciso esclarecer que, quando digo que os homens estão oprimidos, não acho que o sejam necessariamente pelas mulheres. E nem estou negando que tenham sido, por um longuíssimo período, os opressores delas. Posto isso, acredito que estão certíssimas em reclamar. O homem tem uma enorme incapacidade de lidar com a vida prática. É muito difícil comprar o gás se você está viajando naquele momento, querendo ser dom Pedro às margens do Ipiranga. É isso que está na cabeça deles na hora do supermercado.

Por falar no que vai na cabeça deles, que informação importante, do ponto de vista da sexualidade, as mulheres ignoram? O mundo das fantasias masculinas é muito grande. Não existe um homem que consiga ter uma vida sexual sem que ela seja organizada por fantasias. Alguns casais conseguem compartilhar essas fantasias. Mas na maioria elas são completamente silenciadas. Os homens acham que não têm espaço para falar sobre o assunto e vivem uma vida de casal em que frequentemente a mulher aparece como a mãe que poderá a qualquer momento surpreendê-los fazendo algo errado e feio. Isso definitivamente não é a receita de um casal feliz. Mas é uma posição na qual as mulheres entram com facilidade. As fantasias para o homem fazem com que ele mantenha o desejo vivo, inclusive o desejo por sua própria mulher. E isso é muito difícil de ser entendido pelas mulheres, porque o erotismo para elas não funciona da mesma maneira. Um casal que não compartilha suas fantasias incorre em dois riscos. O primeiro, claro, é o de o homem tentar realizá-las fora de casa. O outro é o de o interesse sexual se acabar. O casal começa a ter relações sexuais uma vez por semana, depois uma vez por mês e termina virando amigo. O que não é algo necessariamente ruim. Mas simplesmente não precisa ser assim.

As mulheres devem tentar chegar mais perto dessas fantasias? Esse é um conselho difícil de dar. Até porque muitas vezes as fantasias do homem são ligadas a uma mecânica de poder e podem parecer estranhas até para ele mesmo. É um clássico, por exemplo, a fantasia de ter relações com a mulher em um local público, aos olhos de todos. Mas a grande função das fantasias na vida do casal é a de serem ditas, e não necessariamente a de serem realizadas. O papel da fantasia é manter o desejo vivo entre os dois.

Em que medida o homem se sente responsável pelo prazer da mulher? Eu acho que essa é uma declaração mais moral do que científica. Mas o homem é responsável, sim, pelo prazer da sua mulher. Além disso, ele se sente responsável por esse prazer. Essa é uma das expectativas que pesam em cima dele.

Não é importante para a imagem que os homens têm de si mesmos propiciar esse prazer? No sentido darwiniano, não. Darwin diria que o homem que sente essa responsabilidade perde tempo em muitas atividades que não são necessárias para a reprodução. Mas, emocionalmente, o homem que não gosta de dar prazer à sua mulher é, sim, pouco evoluído, quase primário.

"O homem espera que a mulher participe de seu entusiasmo. Seja para fazer uma viagem longa e largar o emprego por um ano, seja para comprar uma televisão enorme. Ele gostaria que a mulher não colocasse o peso dela para matar seus sonhos"

Não havia muito mistério no que um homem do passado esperava de sua mulher. Mas o que ele espera dela hoje? A coisa mais importante é que ela seja a companheira que lhe permita pelo menos cultivar os seus sonhos, mesmo os mais estranhos e, eventualmente, ir atrás deles. Ele espera que a mulher participe de seu entusiasmo. Seja para fazer uma viagem longa, em que eles tenham de, por exemplo, largar o emprego por um ano, seja para comprar uma televisão enorme, cara e aparentemente desnecessária. Ele gostaria que a mulher não colocasse o peso dela para matar seus sonhos.

É, de fato, muito difícil para o homem aguentar o fato de que sua mulher ganha mais do que ele? Sim, há homens para quem isso é um problema. Eles se sentem atingidos na tentativa de salvar o que lhes restou da posição de provedor. Pior ainda é aguentar que a mulher e os filhos dela com um primeiro marido recebam ajuda financeira desse cara. O atual marido tem horror de se sentir o amante da mãe, provisoriamente hospedado naquela casa. Acha que, se ele não está bancando tudo, não vai conseguir ocupar nem a função de marido nem a de padrasto.

O homem ainda mente muito sobre sexo? Sim, sobretudo dizendo que pensa nisso mais do que verdadeiramente pensa. O homem mente porque um dos lugares onde ele joga e arrisca sua imagem masculina é no sexo. Ele mente também sobre o caráter aventuroso dele e sobre a própria intensidade de seu interesse por sexo. Ele vive tentando demonstrar que o sexo está constantemente presente na cabeça dele, o que muitas vezes não é verdade. Isso porque a intensidade de seu desejo é uma demonstração de virilidade. Para a mulher, de alguma forma, é mais fácil. Mesmo às que têm uma vida sexual pobre não faltam ocasiões em que podem se assegurar da própria feminilidade. Um exemplo claro é entrar em um restaurante e ver que há vários homens olhando para ela. Já para o homem, isso não é tão fácil. Para se assegurar de sua masculinidade é necessário que ele cultive seu desejo sexual.

Dá para dizer, afinal, o que os homens querem? A queixa dos homens é que, agora, elas não têm mais tempo para eles. Que não cuidam mais deles. E a verdade é que eles querem muito ser cuidados.

Revista VEJA | Edição 2115 | 3 de junho de 2009 

veja.abril.com.br/030609/entrevista.shtml