*************************************************************************************

................................

Entrevista Contardo Calligaris

Nossa, como eles sofrem

O psicanalista explica a angústia de homens contemporâneos
com a perda de papéis tradicionais e o que mais eles precisam
que as mulheres lhes deem – compreensão e carinho


Juliana Linhares

Lailson Santos

"O homem passou a não saber
mais como 'ser homem'. Alguns
encaram os esportes radicais
como o que lhes sobra de virilidade.
Para outros, é a vida sexual"

O psicanalista Contardo Calligaris é bonitão, sedutor e tem a solução para melhorar seu casamento: deixe seu marido comprar aquela televisão enorme, compartilhe suas fantasias sexuais, incentive-o a largar o emprego e vagar de moto pela América Latina. E sempre, sempre, trate-o como um super-herói. Bem, como sabemos que isso não vai acontecer, Calligaris também se tornou especialista nas sofridas psiques masculinas. Quando fez o primeiro seminário sobre o tema, no fim dos anos 80, em Paris, ouviu de alguns dos presentes: "Mas o homem é uma questão? Há alguma coisa para dizer sobre isso?". Na época, as mudanças nos papéis femininos ainda estavam na berlinda. Colunista e autor da peça O Homem da Tarja Preta, Calligaris, de 61 anos, italiano com nacionalidade americana radicado em São Paulo, fala aqui do duro processo de aprendizagem que já alcançou progressos como a "realização de que o bife não salta direto do supermercado para o prato".

Do que, afinal, os homens reclamam? O homem herdou, em especial a partir do século XIX, dois tipos de papel na sociedade. Um deles era o de provedor, representado bem pela figura de terno e gravata, marido e pai de família. O outro era o de aventureiro, alguém eventualmente próximo até de um criminoso. Essas duas figuras representavam quase a totalidade do leque possível da masculinidade. A partir da metade do século passado, a situação começou a mudar. O papel tradicional das mulheres passou por grandes transformações, muito antes do dos homens. Elas tornaram-se sujeitos jurídicos verdadeiros, não se viam mais na dependência de um casal ou de um marido. E o lugar do provedor, que até então era exclusivamente masculino, passou a ser distribuído entre homens e mulheres. O homem não se justificava mais simplesmente por ser quem dava o sustento à família. E o avanço delas no campo até então masculino não parou por aí. Elas passaram a ser mães solteiras, não só por ação do destino, mas por vontade própria. Assim, outra faceta do papel do homem, o de ter e cuidar de uma família, também caiu por terra.

Como eles passaram a ver seu novo papel? Isso é uma coisa que quase todos os homens gostariam de saber. Algo que pode nos dar uma pista é olhar para os ideais que foram propostos aos meninos pelo mercado cultural na fase do pós-guerra. Houve uma enorme proliferação de heróis masculinos profissionais. Mais tarde, surgiu uma outra categoria de heróis, aqueles que cultuavam a ambição pelo poder, fosse ele econômico, militar ou político. Na geração dos anos 60, por exemplo, apareceu a fantasia do herói revolucionário. Che Guevara e Lenin faziam parte disso. Uma vez internalizado esse ideal de herói, surgiu uma questão para os homens que, é preciso que se diga, não se resolveu até hoje, que é a de redefinir a sua virilidade. Se por um lado ele vinha perdido, por não possuir mais o papel central de provedor, por outro, a exigência de que ele fosse um super-herói, ou algo muito próximo dessa condição, só aumentava. Em várias línguas existe a expressão "seja homem". Por trás dela há uma ordem para que o homem seja capaz, por exemplo, de arriscar a sua vida ou aguentar uma dor muito forte.

Por que esse imperativo, que existe desde sempre, teria agora se tornado mais pesado para os homens? Porque antes o lugar de provedor que eles ocupavam, e que até então era exclusivo, de alguma forma funcionava como uma moeda de troca. Agora, as mulheres competem por essa posição. No mercado de trabalho, por exemplo, elas disputam quase em pé de igualdade. O homem passou a não saber mais como "ser homem". Alguns começaram a encarar o risco mortal na prática dos esportes radicais como tudo o que lhes sobra de virilidade. Há outros que encaram a vida sexual como um lugar onde eles deveriam provar a sua masculinidade.

"Exceto se for um Colombo ou um Pizarro, a grande maioria dos homens vive entre a padaria, o bar, o escritório e a casa. E eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana.
É como se não devessem fazer isso"

O impulso das grandes realizações não é parte natural da psique masculina? Não foi ele que promoveu, por exemplo, a era das grandes navegações e as viagens no espaço? Esse sentimento teve dois preços. O primeiro foi a supressão do corpo. A ideia de sacrifício, de estoicismo, está sempre ligada aos heróis masculinos. O segundo preço está relacionado com a distância da vida cotidiana. A não ser que o sujeito seja um Colombo ou um Pizarro, a grande maioria dos homens vive entre a padaria, o bar, o escritório e a casa. E eles se relacionam muito mal com essa vida cotidiana. Uma grandíssima parte de sua existência é sempre vivida como se não fosse o que eles deveriam estar fazendo. Isso não acontece com as mulheres. Elas têm um saber prático, de apreciação da vida. Para eles, é como se fossem obrigados a se acostumar com uma mediocridade que não é verdadeiramente o seu destino.

E todos os bons maridos e bons pais, que constroem uma vida em comum, dividem tarefas e parecem muito satisfeitos? Os homens se adaptaram muito bem à prática de compartilhar a função de provedor com a mulher e mesmo à de dividir as atribuições materna e paterna. Os dois hoje educam e cuidam dos filhos juntos. Ela pode dar muito mais regras e instruções às crianças do que o homem, e ele pode acompanhá-las até o colégio, dois hábitos que, até pouco tempo atrás, eram feitos de maneira inversa. Evidentemente que com alguns percalços, mas tudo isso tem funcionado. O grande descompasso do homem contemporâneo está em outro lugar. Para ele, mesmo que esteja empregado em um lugar bacana, que esteja ganhando tudo de que precisa e pagando todas as contas, ainda o persegue o fantasma, fruto da tradição, de que ele não está dando tudo de si.

Um exemplo prático, por favor. O sujeito está se matando no trabalho, mas lamenta o fato de não ser um Indiana Jones. A mulher pode achar isso engraçado, mas para o homem não é. Na média, ele pode ter tudo o que quiser, casa na praia, viagens para o exterior uma vez por ano, mas lhe falta a dimensão de heroísmo. Ele não toca nem de perto a constelação de imagens que culturalmente constituem o universo de figuras masculinas com as quais sonhou. O que ele quer, acima de tudo, é uma dimensão de aventura. Uma dimensão na qual ele tem de dar provas extremas de bravura, de coragem, de desprendimento, em circunstâncias extremas.

Ah, mas as mulheres reclamam de maridos que nem sequer compram um bujão de gás. Em primeiro lugar, preciso esclarecer que, quando digo que os homens estão oprimidos, não acho que o sejam necessariamente pelas mulheres. E nem estou negando que tenham sido, por um longuíssimo período, os opressores delas. Posto isso, acredito que estão certíssimas em reclamar. O homem tem uma enorme incapacidade de lidar com a vida prática. É muito difícil comprar o gás se você está viajando naquele momento, querendo ser dom Pedro às margens do Ipiranga. É isso que está na cabeça deles na hora do supermercado.

Por falar no que vai na cabeça deles, que informação importante, do ponto de vista da sexualidade, as mulheres ignoram? O mundo das fantasias masculinas é muito grande. Não existe um homem que consiga ter uma vida sexual sem que ela seja organizada por fantasias. Alguns casais conseguem compartilhar essas fantasias. Mas na maioria elas são completamente silenciadas. Os homens acham que não têm espaço para falar sobre o assunto e vivem uma vida de casal em que frequentemente a mulher aparece como a mãe que poderá a qualquer momento surpreendê-los fazendo algo errado e feio. Isso definitivamente não é a receita de um casal feliz. Mas é uma posição na qual as mulheres entram com facilidade. As fantasias para o homem fazem com que ele mantenha o desejo vivo, inclusive o desejo por sua própria mulher. E isso é muito difícil de ser entendido pelas mulheres, porque o erotismo para elas não funciona da mesma maneira. Um casal que não compartilha suas fantasias incorre em dois riscos. O primeiro, claro, é o de o homem tentar realizá-las fora de casa. O outro é o de o interesse sexual se acabar. O casal começa a ter relações sexuais uma vez por semana, depois uma vez por mês e termina virando amigo. O que não é algo necessariamente ruim. Mas simplesmente não precisa ser assim.

As mulheres devem tentar chegar mais perto dessas fantasias? Esse é um conselho difícil de dar. Até porque muitas vezes as fantasias do homem são ligadas a uma mecânica de poder e podem parecer estranhas até para ele mesmo. É um clássico, por exemplo, a fantasia de ter relações com a mulher em um local público, aos olhos de todos. Mas a grande função das fantasias na vida do casal é a de serem ditas, e não necessariamente a de serem realizadas. O papel da fantasia é manter o desejo vivo entre os dois.

Em que medida o homem se sente responsável pelo prazer da mulher? Eu acho que essa é uma declaração mais moral do que científica. Mas o homem é responsável, sim, pelo prazer da sua mulher. Além disso, ele se sente responsável por esse prazer. Essa é uma das expectativas que pesam em cima dele.

Não é importante para a imagem que os homens têm de si mesmos propiciar esse prazer? No sentido darwiniano, não. Darwin diria que o homem que sente essa responsabilidade perde tempo em muitas atividades que não são necessárias para a reprodução. Mas, emocionalmente, o homem que não gosta de dar prazer à sua mulher é, sim, pouco evoluído, quase primário.

"O homem espera que a mulher participe de seu entusiasmo. Seja para fazer uma viagem longa e largar o emprego por um ano, seja para comprar uma televisão enorme. Ele gostaria que a mulher não colocasse o peso dela para matar seus sonhos"

Não havia muito mistério no que um homem do passado esperava de sua mulher. Mas o que ele espera dela hoje? A coisa mais importante é que ela seja a companheira que lhe permita pelo menos cultivar os seus sonhos, mesmo os mais estranhos e, eventualmente, ir atrás deles. Ele espera que a mulher participe de seu entusiasmo. Seja para fazer uma viagem longa, em que eles tenham de, por exemplo, largar o emprego por um ano, seja para comprar uma televisão enorme, cara e aparentemente desnecessária. Ele gostaria que a mulher não colocasse o peso dela para matar seus sonhos.

É, de fato, muito difícil para o homem aguentar o fato de que sua mulher ganha mais do que ele? Sim, há homens para quem isso é um problema. Eles se sentem atingidos na tentativa de salvar o que lhes restou da posição de provedor. Pior ainda é aguentar que a mulher e os filhos dela com um primeiro marido recebam ajuda financeira desse cara. O atual marido tem horror de se sentir o amante da mãe, provisoriamente hospedado naquela casa. Acha que, se ele não está bancando tudo, não vai conseguir ocupar nem a função de marido nem a de padrasto.

O homem ainda mente muito sobre sexo? Sim, sobretudo dizendo que pensa nisso mais do que verdadeiramente pensa. O homem mente porque um dos lugares onde ele joga e arrisca sua imagem masculina é no sexo. Ele mente também sobre o caráter aventuroso dele e sobre a própria intensidade de seu interesse por sexo. Ele vive tentando demonstrar que o sexo está constantemente presente na cabeça dele, o que muitas vezes não é verdade. Isso porque a intensidade de seu desejo é uma demonstração de virilidade. Para a mulher, de alguma forma, é mais fácil. Mesmo às que têm uma vida sexual pobre não faltam ocasiões em que podem se assegurar da própria feminilidade. Um exemplo claro é entrar em um restaurante e ver que há vários homens olhando para ela. Já para o homem, isso não é tão fácil. Para se assegurar de sua masculinidade é necessário que ele cultive seu desejo sexual.

Dá para dizer, afinal, o que os homens querem? A queixa dos homens é que, agora, elas não têm mais tempo para eles. Que não cuidam mais deles. E a verdade é que eles querem muito ser cuidados.

Revista VEJA | Edição 2115 | 3 de junho de 2009 

veja.abril.com.br/030609/entrevista.shtml

Nenhum comentário: