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O bebê de tarlatana rosa - João do Rio




- Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na vida? O Carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem uma história de Carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um Carnaval sem aventuras não é Carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis autêntico, parecia absorto.

- É uma aventura alegre? - indagou Maria.

- Conforme os temperamentos.

- Suja?

- Pavorosa ao menos.

- De dia?

- Não. Pela madrugada.

- Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que está adoecendo a Maria.

Heitor puxou um longo trago à cigarreta.

- Não há quem não saia no Carnaval disposto no excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confiança ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...

- Nem com um, atalhou Anatólio.

- Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade, saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da Primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodita.

- Muito bonito! ciciou Maria de Flor.

- Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andávamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champanhe aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. - "Nossa Senhora!" - disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. "Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias dos pedaços mais esconsos da rua de São Jorge, um cheiro de arroz, rolos constantes..." - Que tem isso? Não vamos juntos?

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era a desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparramando belbutinas fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos em frascos de álcool, que têm as perdidas de certas ruas, moças, mas com traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel-arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um pouquinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem-feito, tão acertado, que foi preciso observar para verificá-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro: - ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma freqüentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chique e mais secante da cidade.


- E o bebê?

- O bebê ficou. Mas no domingo, em plena Avenida, indo eu ao lado do chofer, no burburinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: "para pagar o de ontem". Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão perfeito. Ainda tive tempo de indagar: aonde vais hoje?

- A toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.

- Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.

- Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amável Anatólio.

- Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.

Heitor ascendeu outro gianaclis, ponta de ouro, continuou:

- Não o vi mais nessa noite e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele e todos os instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos inútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no Carnaval.

- A quem o dizes!... suspirou Maria de Flor.

- Mas eu estava sem sorte, com o azar, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!

- É quando se fica mais nervoso!

- Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos de bengala, caíam em sombras - sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confete. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo lago do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.

- "Os bons amigos sempre se encontram" disse.

O bebê sorriu sem dizer palavra. - Estás esperando alguém? Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. - Vens comigo? -"Onde?" indagou a sua voz áspera e rouca. - Onde quiseres! Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.

- Por pouco...

- Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com sua voz arfante e lúbrica: - "Aqui não!" Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fase do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado ao jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente ruça com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. - Então, vamos? -"Para onde?"- Para a tua casa. -"Ah! não, em casa não podes..." - Então por aí. -"Entrar, sair, despir-me. Não sou disso!" - Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda. -"Que tem?" - Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara. -"Que máscara?" - O nariz. -"Ah! sim!" E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe os lábios.

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro de resina, um nariz que fazia mal. - Tira o nariz! - Ela segredou: Não! Não! custa tanto a colocar! Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne humana.

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal-estar curioso, um estado de inibição esquisito. - Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada. -"Disfarça sim!" - Não! procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tartalana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinante - uma caveira com carne...

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. -"Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste..."

Sacudi-a com fúria, colocando-a de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar, apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da Luxúria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semitreva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixos batendo, ardendo de febre.

Quando parei à porta para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa...

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes e resumir:

- Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.

Imagem: Pietro Longhi, The Ridotto in Venice

UM DIA DE ENTRUDO - Machado de Assis

Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas dágua, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.

Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.

D. Angélica tinha nessa época seus cinqüenta e nove anos. Nascera mais ou menos no tempo da conjuração de Tiradentes. Criada por um lavrador de Minas, D. Angélica adquiriu certos princípios liberais, mas perdeu-os em 1808, quando veio ao Rio de Janeiro e assistiu à entrada da corte real. Ainda que esta mudança nos princípios políticos de D. Angélica foi resultado de uma paixão por um arqueiro ou quer que seja da guarda real. D. Angélica pertencia, fisicamente falando, a essa classe de mulheres, capazes de matar um porco de uma cajadada. Além de possuir um par de espáduas atléticas, tinha um gênio de arremeter contra qualquer obstáculo e vencê-lo. Parece que o namorado desdenhava as mulheres alfenins, as criaturas quebradiças e moles. Gostava de uma robustez que indicava saúde e disposição para trabalhar. Angélica resumia tudo isso. Amaram-se e no fim de algum tempo celebrou-se o casamento, com aplauso de amigos e conhecidos. Pouco importa saber que fim levou o Sr. Tomás Sanches no tempo em que se passam as cenas que vou relatar. Basta saber que morreu quando de todo se lhe extinguiu a vida, coisa que provavelmente não lhe aconteceu sem perder a saúde. Demais, não é bom falar do finado Tomás Sanches ao pé de D. Angélica; a pobre senhora ainda hoje o chora. Mas não lhe falem de homem que mereça o respeito, o amor e a consideração, porque D. Angélica cita logo um caso do marido, que entre parêntesis, enriqueceu em pouco tempo.

Não ficou estéril a aliança de Sanches e Angélica. Cinco foram os frutos de tão abençoada união, dois do sexo masculino e três do sexo feminino.

Carlos e Benjamim se chamaram os rapazes; as raparigas receberam os nomes de Teresa, Ermelinda e Joana. Os sinais particulares desta prole eram os seguintes: Joana tinha o nariz muito comprido, Ermelinda era muita pequena, Teresa era alta e cheia. Quanto aos rapazes, a única diferença entre Carlos e Benjamim era que o primeiro ria à cara do segundo regularmente uma vez por semana, sem que o outro tirasse nunca desforra de semelhante afronta.

Ultimamente a afronta tinha sido tal que Benjamim achou prudente deixar de falar ao irmão. Havia já cinco dias que reinava entre ambos essa interrupção de relações diplomáticas, quando a festa do entrudo veio reconciliar tudo. No momento em que tomamos conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de cheiro.

Fora injustificável esquecimento deixar de mencionar entre os fabricantes de limões o jovem Batista, rapaz alegre e magro, dono de um armarinho na mesma rua em que moravam os Sanches, amigo de moças e até, dizem, namorado de Teresa. Citarei do mesmo modo uma prima de D. Angélica (42 anos) e uma sobrinha da dita (26), sendo que esta (D. Lucinda) era filha daquela (D. Maria).

Vinham para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas de pau.

- Olhe, prima; este saiu bem bom, diz Lucinda.

- Já viu os meus? pergunta Teresa.

- Quantos tem você?

- Doze.

- Eu tenho nove.

- Eu cá já fiz vinte e quatro, exclama Carlos. O Benjamim só fez cinco.

- Mas é que eu não sei o que tem a minha fôrma, redargúi o pobre Benjamim envergonhado

- És um desastrado! não passas disto!

- Carlos! que é isso? Eu não quero bulha.

Estas palavras foram ditas por D. Angélica que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria, contava-lhe não sei que história de legumes e escravos.

- Tia Maria hoje não tem feito nada, exclamam as raparigas Sanches.

- Pois já não fiz dois limões?

- Dois só! está bem aviada!

- Está bom, raparigas, dêem cá uma fôrma, não quero parecer que sou vadia.

D. Maria sentou-se e fez vagarosamente alguns limões. Houve algum tempo de silêncio, só interrompido pelo andar das escravas, a campainha da cancela da escada, o som do nariz do Batista que estava endefluxado, e nada mais.

D. Angélica, que andava de um lado para outro, aproximou-se da mesa e disse:

- Bem, acabem com isso por enquanto, que é preciso pôr a mesa.

- Já, mamãe! exclamaram as filhas.

- Pois então? são duas horas e meia.

Carlos aprovou in-petto a idéia de pôr a mesa, e D. Maria, que costumava jantar à uma hora, achou a resolução de D. Angélica acertadíssima.

- Tem razão, prima, se deixarmos estas meninas aqui, são capazes de ficar até amanhã.

- Não é conveniente, disse Batista com uma voz entrecortada pelas urgências do defluxo, não é conveniente interromper o trabalho enquanto há cera liquida. A cera é um produto que...

- Que não dá de jantar! interrompeu brutalmente Carlos pondo a fôrma de lado e levantando-se da mesa.

As moças insistiram e ficaram ainda um quarto de hora fazendo limões. Benjamim queria levantar-se também, mas um olhar de Lucinda o deteve e desde já qualquer leitor, ainda que não seja mais perspicaz que um chapéu, terá compreendido que os dois jovens se amavam.

A saída de Carlos agradou geralmente à sociedade, o filho mais velho de D. Angélica era um verdadeiro perturbador de festas. Ausente, reinou mais tranqüilidade; Batista pôde olhar mais vezes para Teresa, e Benjamim piscar mais livremente os olhos a Lucinda. Se Carlos estivesse presente, não hesitaria em dizer:

- Temos namoro! não?... Que é isso, Sr. Batista?... Olá prima, então?...

- Dizia eu que em 7 de Abril...

E outras frases como estas reduziam as faces dos culpados a verdadeiras inflamações de vergonha.

Batista sentiu-se até mais livre da voz, e proferiu a propósito do entrudo dois ou três axiomas, um dos quais declarou tê-lo ouvido de um padre, que era o homem mais sensato que conhecera.

- Sensato era o meu Tomás, acudiu D. Angélica; que juízo tinha ele! que cabeça de homem! Deus lhe fale n'alma. Contarei o seguinte caso. No tempo do 7 de Abril...

Nesse instante entrou na sala o esfomeado Carlos e vendo iminente uma história que provavelmente já conhecia, exclamou:

- Oh! mamãe? não se janta hoje?


- Eu sei, respondeu D. Angélica, estas meninas ainda aqui estão.

- Pois acabem com isso...

Carlos atirou-se à mesa e tal bulha fez que impediu o trabalho e a anedota. D. Angélica adiou a prova do bom juízo do finado Tomás Sanches, as moças deixaram a mesa, e a mucama veio pôr a mesa do jantar.

Aproveitando o intervalo, pois aceitara o oferecimento de D. Angélica para jantar, foi Batista alguns instantes ao armarinho para saber se havia novidade. Teresa foi logo à janela e trocou um sorriso com o namorado.

D. Maria sentou-se com Ermelinda a um canto para indagar se alguma coisa havia entre Teresa e Batista.

- Eu creio que há alguma coisa. Tu não sabes nada?

Ermelinda respondeu:

- Eu nada, titia.

- Mas é impossível que não haja, e se é exato falarei disto a tua mãe.

- Por que? perguntou Ermelinda sobressaltada.

- Não convém que tua irmã se case com um dono de armarinho... um pax vobis, uma posição inferior.

Ermelinda calou-se prometendo a si mesma ir contar tudo à irmã.

Carlos passeava pela sala de jantar, atirando de quando em quando bolas de papel ao irmão, que, por prudência, fingia estar contando as tábuas do assoalho.

Joana contava a Lucinda um namoro que tivera com um rapaz da rua do Piolho, enquanto a prima lançava de quando em quando um olhar a Benjamim.

- Muito custa a vir este jantar. Parece que nunca mais se acaba de pôr esta mesa. Tia Maria, já há de estar com uma fome!

Carlos dizia estas palavras tirando da mesa um pedaço de pão e mastigando para enganar o estômago.

- Não te pareça! disse D. Maria, por certo que estou com fome...

Finalmente ficou o jantar na mesa.

- Bem, vamos entrar em serviço.

- Não, senhor! disse D. Angélica, esperemos o Batistinha.

- Onde foi ele?

- Foi à casa.

- Esta agora! Havemos de estar em casa à espera de um estranho! e logo quem!

- Carlos! exclamou a mãe, tu hás de ser sempre um...

D. Angélica mastigou o epíteto. Carlos pondo as mãos nos bolsos da calça entrou a passear como um homem chegado ao último grau do desespero.

- Estou capaz de ir jantar a uma casa de pasto.

- Pois vai!

Nesse momento ouviram-se passos na escada.

- Graças! disse Carlos. Chega o desejado.

Não era o desejado. Era o Sr. Tibúrcio Mendes, negociante de negros novos, homem taludo e bojudo, vermelho e asseado.

- Dá licença, D. Angélica? disse ele parando na escada.

- Entre, Sr. Tibúrcio. Bons olhos o vejam.

Na entrada o Sr. Tibúrcio foi cumprimentando rasgadamente a companhia.

- Faltava este cágado! disse entre si Carlos.

E já ruminava seriamente o projeto, anteriormente indicado, de ir jantar à casa de pasto, quando apareceu o dono do armarinho. Batista explicou a demora dizendo que a causa fora uma altercação com um sujeito a propósito de agulhas n. 5, coisa que não interessava absolutamente a ninguém, mas que todos ouviram com paciência cristã.

O jantar nada ofereceu de notável; os dois namoros continuaram como antes, isto é, dirigidos sempre com a máxima precaução por causa do grande desmancha-prazeres da casa. A única coisa que causou certa estranheza a Batista, que pela primeira vez se encontrava com Tibúrcio, foi a voracidade que este sujeito desenvolveu, a ponto de o deixar sem assado nem arroz.

Foi por ocasião do jantar que Tibúrcio declarou que fazia anos na terça-feira do entrudo, e, como fosse solteiro, D. Angélica convidou-o a festejar o dia jantando lá em casa. Tibúrcio não viu um olhar trocado entre Carlos e as irmãs. Prometeu que viria jantar.

Toda a tarde, manhã e a tarde do dia seguinte foram consagradas ao fabrico dos limões de cheiro, Tibúrcio assistiu até à noite ao trabalho das moças e dos rapazes. Como ele era amigo de conversar com mulheres, dificilmente se despregou da sala de trabalho. Foi muito contra a vontade que cedeu ao convite de D. Angélica que tinha a mania de jogar o solo. D. Maria também jogava e aceitou o convite. A mesa foi posta ao pé da mesa dos limões de cheiro.

Jogava-se o solo a grãos de milho, que é para os jogadores de profissão, o mesmo que, para os bêbados, beber água simples.

- Mas eu peço licença, disse Tibúrcio, para retirar-me as nove horas.

- É a hora em que tomamos chá, respondeu D. Angélica dando as cartas.

Passaram todos naquela mão. Como todos conversavam, o diálogo apresentava alguma curiosidade.

- Bolo?

- Pode vir!

- Dá cá cera!

- Dê-me o ás de paus.

- Onde está a fôrma?

- É furado?

- É seguro.

- Mano, não me quebre o limão.

- Corto.

- Olha, Lucinda, que bonito limão saiu este!...

- Rei...

- Água de cheiro?

- Valete...

- Não me pise os pés, Sr. Batista.

- É dama... Paguem!

- Dá cá o tabuleiro. Quem dá cartas?

- Pois eu cuidei que o solo estivesse furado, dizia Tibúrcio no fim deste diálogo. Os ouros estavam com a Sra. D. Maria, e se não se descarta do valete, bem podia ser que eu o encontrasse em quarto, e estava perdido.

- A prima jogou mal, dizia D. Angélica. Devia esperá-lo nos outros.

- Eu esperava nas copas.

- As copas estavam seguras.

Às nove horas terminou o jogo, serviu-se o chá, saiu Tibúrcio, e todos foram dormir.

Amanheceu o dia de domingo com um belíssimo sol; era um verdadeiro dia de entrudo. Desde manhã puseram-se os tabuleiros em ordem para a batalha. Carlos e Benjamim preparavam as caldeiradas dágua e duas panelas que mandaram para a cocheira. Nessa ocasião houve uma pequena altercação entre os dois irmãos; Carlos acabou puxando as orelhas a Benjamim, o qual, por dizer alguma coisa, disse que lhe daria uma facada, o que lhe valeu outro puxão de orelhas do irmão.

Triste inspiração foi a de Batista que marcou esse dia para pedir a mão de D. Teresa. A moça entendia que se devia aproveitar um dia alegre para achar D. Angélica de bom humor, verdadeiro engano porque D. Angélica, conquanto não jogasse o entrudo, achava prazer em ver brincar as raparigas e não prestava grande atenção a outras coisas.

O dia começou bem; alguns sujeitos que passavam foram alvo de meia dúzia de limões de cheiro que os deixaram um tanto úmidos; e mais nada.

Jantou-se mais cedo.

Às três horas e meia estavam as moças vestidas e prontas à janela; a sala estava cheia de tabuleiros com limões de cheiro.

Os rapazes ausentaram-se.

Correu assim uma hora sem incidente notável. Constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos, munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas correspondiam ao ataque com um vigor nunca visto.

Havia em casa de D. Angélica cerca de 1.200 limões; imaginem se o combate podia fraquear.

Ao cabo duma hora de combate, desapareceu Lucinda pelo interior da casa. D. Maria e D. Angélica que estavam assentadas na sala conversavam sobre os sucessos da sua mocidade. De quando em quando algum limão ia bater numa e noutra, o que as fazia rir.

D. Maria quis ir ao interior da casa e saiu por alguns instantes. Daí a pouco voltou espavorida.

- Jesus! Acuda-me prima Angélica! Credo! Vingança!

Surpresa geral. As moças voltaram-se para dentro e os rapazes vendo aquela muralha de costas fizeram uma descarga em regra.

- Que é? perguntou D. Angélica espantada. Será o canhoto?

- Qual, canhoto! quero vingança! que desaforo!

- Mas que é?

D. Maria estava sufocada; sentou-se, bebeu um pouco dágua e falou:

- Ia eu agora lá dentro, quando encontrei na sala de jantar a um canto, adivinhem o que? Encontrei seu filho Benjamim quebrando limões no ombro de minha filha! Que desaforo! Fiquei sem saber de mim... Isto se atura, prima? Cão! Ter o atrevimento de... Prima, manda dar uma sova no seu pequeno...

Neste tempo já Lucinda tinha entrado na sala e ouviu a narração da mãe com um espanto tão fingido que parecia um diplomata.

- Estás ai!... exclamou D. Maria. Deixe estar que me pagarás lá em casa!

- Mas que é?...

D. Angélica mandou chamar Benjamim.

O rapaz que estava na cocheira, correu ao chamado da mãe.

- Que é isso, Benjamim? pois então tu tens o desaforo, o atrevimento de não respeitar tua tia nem a minha casa...

Benjamim ficou mais admirado que se visse a cascata de Paulo Afonso; olhou para todos que tinham os olhos nele e perguntou:

- Mas que é mamãe? eu não sei de que fala.

D. Angélica referiu a acusação que lhe fazia D. Maria; o rapaz negou alegando que não saíra debaixo e apelou para o testemunho de um moleque, o qual, como era o portador das cartas entre os dois namorados, não teve dúvida em dizer que o jovem Benjamim desde que descera para a cocheira, não saíra de lá ocupado como estava em seringar os homens que passavam.

D. Angélica voltou-se para a prima.

- Você enganou-se, prima.

- Mas se eu vi!...

Carlos tinha subido também, e, ou para salvar o irmão a quem não tinha raiva, ou para terminar um incidente que perturbaria a festa, confirmou o dito do moleque.

Mas D. Maria que tinha visto, insistia e punha em dúvida a asserção dos sobrinhos e do moleque.

- Foi engano! diziam uns.

- Titia estava preocupada e pareceu-lhe ver...

- Qual engano nem preocupação! Pois eu vi.

Entrara no meio desta bulha o jovem Batista, trajando casaca, luvas de pelica, e gravata branca. Veio de sege para chegar intacto, apesar de morar perto Ouviu a discussão, informou-se do que era e concluiu que devia ser engano de D. Maria. Esta insistiu na afirmativa.

- Dá-se muitas vezes, disse Batistinha sentenciosamente, que a nossa imaginação figura objetos reais quando eles são simplesmente hipotéticos... A história tem um exemplo: Brutus dizem que viu a sombra de César. Foi naturalmente a impressão imaginária que lhe produziu a espécie de presença real. O órgão visual tem fenômenos extravagantes; os recentes trabalhos da ciência...

As moças voltaram as costas e foram para a janela, exceto Teresa que ficou ouvindo o discurso do namorado. Os rapazes desceram à cocheira.

Batista continuou o discurso. Como tinha lido uns livros de ciência, explicou às senhoras qual a organização do nervo ótico, e como por acaso falasse em olhos bonitos, lembrou-se D. Angélica de contar uma anedota acerca dos olhos do finado Sanches em 1834.

O incidente acabou assim, D. Maria convencida de que realmente fora imaginação sua.

- Agora, se D. Angélica quiser dar-me a honra de uma palavra em particular, disse Batista, ficar-lhe-ei sumamente penhorado.

- Agora reparo, disse D. Angélica. Que trajo para dia de entrudo!

- Minha senhora, respondeu Batista, os grandes sentimentos não conhecem entrudo

- Fala muito bem este moço, pensou D Maria.

A dona da casa foi com Batista para o interior.

- Minha senhora, disse Batista arrestando-se na sala diante de D. Angélica, muito há que eu nutro, dentro do meu coração, um destes sentimentos que, mal aplicados, podem produzir não só os infortúnios domésticos como até a ruína dos impérios, e, bem aplicados, são a verdadeira bem-aventurança deste mundo. O amor, minha senhora, é o que o bordão é para os cegos, o vento para os navegantes, a saúde para os enfermos, o espaço para os passarinhos...

- Então, ama?

- Loucamente. Seria um inferno este amor se não fosse retribuído. O que é um amor sem retribuição? É o abutre de Prometeu. Sou recompensado com igual amor ao meu: amor amore, diz a sentença latina.

- Que deseja de mim?

- A luz. A senhora tem a minha luz nas suas mãos; pode dar-ma se quiser. Amo sua filha D. Teresa, e desejo unir-me a ela pelos laços matrimoniais...

D. Angélica tinha percebido algum namoro entre a filha e o Batista, mas não cuidou que estivessem tão próximos do casamento. O que sobretudo a fez pasmar foi a escolha do dia. A este respeito observou Batista que, vindo a palavra entrudo do latim entroito, que quer dizer entrada, estava ele de acordo com o dia desejando entrar na família. O trocadilho despertou as recordações conjugais da Sra. D. Angélica, que citou mais uma anedota do finado Tomás Sanches.

- Quanto ao que me pede, concluiu ela, se Teresa quiser, não tenho razão que opor a uma união que desejo ver feliz e tranqüila.

- A senhora chega ao sublime! disse Batista.

Depois abrindo os braços:

- Minha mãe! exclamou ele.

D. Angélica abraçou-o cerimoniosamente, porque achava o rapaz romântico demais.

- Quando poderei ter resposta definitiva?

- Já, se quer; mas é melhor logo... Quando lhe...

Neste momento ouviu-se um grande grito, depois outro e outro; depois um barulho infernal. D. Angélica correu à sala para saber o que era; Batista foi atrás dela.

Na sala ninguém sabia a causa do barulho.

O barulho vinha da cocheira.

- Há de ser algum sujeito que os rapazes meteram no banho, disse D. Angélica trêmula. Ah! meu Deus! estes pequenos ainda me hão de dar algum desgosto grande!

Quis descer; mas Batista a impediu alegando gravemente que uma senhora nunca deve descer.

Os gritos continuaram ainda algum tempo. Depois cessaram; ouviu-se uma voz trêmula de frio lançar uma imprecação aos rapazes.

- Ah! meu Deus! que rapazes! que desgostos!

Subiu alguém a escada; daí a alguns segundos, entrava na sala o Sr. Tibúrcio, vestido de branco, mas todo molhado como se saísse do mar. Entrou respingando a sala toda.

- Jesus! que é isso?

- Ah! minha senhora, eis o estado em que me puseram os seus rapazes! Veja se isto não é um desaforo! Entrei com toda a confiança em sua casa, e os seus meninos, sem que eu lhes houvesse feito mal, agarram-me, metem-me dentro de uma gamela e despejam-me um barril de água por cima, ajudados por dois moleques!

A narração fez enraivecer D. Angélica e rir as raparigas. Efetivamente a figura do Tibúrcio era mais para rir que outra coisa. O homem bufava que parecia uma baleia.

Batista agradeceu ao céu ter vindo em ocasião em que encontrou os rapazes em cima, escapando assim a alguma caçoada.

Assentou-se o Tibúrcio, enquanto D. Angélica ia ver se havia roupa em casa que lhe servisse para mudar aquela.

Tibúrcio contava as suas impressões do banho a D. Maria, e Batista conversava com D. Teresa a quem deu a agradável notícia de que tudo estava arranjado.

De repente aparece Carlos à porta da sala, armado de uma grande seringa de folha de Flandres, pede silêncio às moças com um sinal, e deita um esguicho à nuca do Tibúrcio.

Tibúrcio soltou um grito, pegou na cadeira e removeu como pôde o corpo até à porta da sala; mas Carlos, que sabia o sistema dos antigos Partos, fugiu dando-lhe mais um esguicho pela cara.

- Não se zangue, disse D. Maria acalmando Tibúrcio que prometeu desancar o rapaz; isto afinal são brincadeiras de rapazes... Todos eles o respeitam muito.

- Não está mau o respeito!

D. Angélica voltou à sala.

- Sr. Tibúrcio, vá lá para o quarto da sala de costura; já lá mandei pôr alguma roupa.

Tibúrcio obedeceu.

D. Angélica mandou ordem terminante aos filhos que subissem.

Subiram.

- Que desaforo é esse, rapazes? disse ela.

- O que é mamãe? perguntaram ambos.

- Pois então vocês não respeitam um homem velho e sério, que nos visita? Isto é bonito?

- Mas foi uma brincadeira.

- Pois eu não quero mais essa brincadeira... Brinquem lá com quem quiserem mas não com as pessoas que vêm à minha casa.

Interveio o futuro genro de D. Angélica.

- Minha Senhora, eu estou convencido que estes dignos moços brincam como todos os da nossa idade, sem nenhuma intenção de ofensa. São jovens dignos de toda a estima; incapazes de ofender a quem quer que seja, mormente às pessoas que têm a honra de freqüentar esta casa.

- É verdade! disse Carlos...

- Portanto, continuou o advogado dos rapazes. releve-se-lhes um ato próprio do dia.

- Muito bem! exclamaram os dois rapazes aproximando-se de Batista para lhe agradecer a defesa.

Batista estendeu-lhes a mão.

Mas quando menos o esperava, viu-se agarrado pelos quatro braços vigorosos dos rapazes e levado pela sala fora e depois pela escada abaixo. O pobre moço gritava e protestava contra a perfídia e a ingratidão dos seus clientes, mas embalde! A voz de D. Angélica perdeu-se no meio do barulho; Teresa deitou a chorar; D. Maria benzeu-se; e no meio do tumulto apareceu na sala Tibúrcio; apertadíssimo numas calças de Carlos que lhe ficavam acima do tornozelo e numa jaqueta de Benjamim que lhe batia pelo meio das costas.

A figura fez rir ainda mais do que quando Tibúrcio apareceu molhado da cabeça até os pés.

- Que há de novo? Alguma nova travessura?

- Ah! Sr. Tibúrcio, exclamou D. Angélica; o senhor me há de embarcar estes dois rapazes que me põem doida; meta-os na presiganga!

- Pois não, D. Angélica! Mas que fizeram eles agora?

- Levaram para baixo o Sr. Batista.

- Que! pois tiveram também a audácia? Não admira! não me meteram no banho?

Tibúrcio sentiu uma espécie de satisfação em ver que não era a única vitima.

Pouco tempo depois subiu Batista, e, sem ousar aparecer na sala, pediu a D. Angélica que lhe desse alguma roupa que vestir.

Foi satisfeito.

D. Angélica mandou vir o bacalhau com que se castigavam os escravos e foi abaixo em pessoa.

- Andem! lá para cima! quando não... vai tudo a vergalho.

Os rapazes obedeceram.

D. Angélica não era só mulher de prometer; era mulher de cumprir.

A tarde caia; os rapazes adiaram a festa para os dias seguintes. Mudaram também de roupa e deixaram-se ficar na sala de jantar.

Batista voltou à sala um pouco envergonhado. Tibúrcio já estava mais calmo; D. Maria começou a rir e D. Angélica encaixou uma anedota a respeito de Sanches. As moças sentaram-se também.

- Gastaram todos os limões? perguntou D. Maria sem ver dois tabuleiros cheios.

- Todos, não, disse Ermelinda; ainda temos para amanhã.

- Isso, sim, disse Tibúrcio, isso é brincadeira que eu aprovo; o limão é delicado e diverte a gente.

- Diz muito bem, assentiu Batista. Mas o banho!

- É selvagem!

- É brutal!

- Deve acabar!

- E há de acabar!

- A civilização não comporta...

- Apoiado!

Os rapazes voltaram à sala. Tibúrcio dirigiu-se a D. Maria para dizer alguma coisa que o impedisse de olhar para os seus algozes; ao passo que Batista tirou o relógio, trouxe-o ao ouvido, deu-lhe corda, etc...., tudo para evitar o primeiro olhar dos filhos de D. Angélica.

Ninguém reparou que os rapazes traziam as mãos nos bolsos grandes dos paletós de brim.

Sentaram-se ambos a conversar. Ao principio nem Tibúrcio nem Batista lhes dirigiu a palavra; mas, convindo evitar o ridículo do amuo depois de banho, pouco e pouco foram conversando com eles e restabeleceu-se a confiança.

Não tardou porém que Carlos pregasse em Tibúrcio um rabo de papel, e Benjamim outro em Batista. O de Batista não foi visto logo pelas outras pessoas. Mas como Tibúrcio estava de costas para o grupo das moças, viram estas logo o apêndice posto por Carlos e riram alegremente. Tibúrcio desconfiou. Olhou para Carlos; este ficou sério.

- De que se riem as moças? perguntou Tibúrcio.

- Não sei, respondeu Carlos; deixe ver. Ah! é uma mancha de cal no seu paletó, deixe limpá-la.

Tibúrcio consentiu de boa-fé; e Carlos fingindo que limpava o paletó, quebrou-lhe um ovo nas costas.

Sentiu Tibúrcio que o rapaz não o limpava, antes o sujava, a gema entornou-se parte no chão, D. Angélica correra para Carlos, este correu pela sala, levantou-se Batista para intervir, mas arrastando também um rabo de papel; Benjamim aproveitou a ocasião e quebrou um ovo nas costas de Batista.

Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.

Com a noite veio o descanso. As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até quarta feira de Cinzas.

Pelas 9 horas da noite, D. Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.

Quando se iam deitar o moleque que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e disse-lhes que precisava dizer uma coisa.

Levado ao quarto, disse que Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D. Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito tarde.

Esta comunicação inesperada tinha a seguinte explicação.

O moleque servia também de corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe pedira, entendeu que devia vingar-se assim.

Realmente, Batista podia dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque na esperança e esse foi o seu mal.

Carlos ficou espantado com a notícia.

- Será verdade? perguntou ele a Benjamim.

- É nhonhô, insistiu o moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...

- Virá ele hoje?

- Parece que vem.

Idéia infernal surdiu no espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.

- Um banho! disse o moleque quando Carlos consultava o irmão.

- Sim, um banho! disse Benjamim.

- Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.

Dormiam no mesmo quarto Lucinda e Teresa.

- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda; não gostei que fizesse aquilo no teu... noivo.

- Cala a boca! não fales alto! Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas idéias.

- Amanhã hei de passar uma sarabanda nos dois.

- Não digas nada, é melhor.

- Por que?

- Porque...

- Vais casar, bem sei.

Teresa sorriu.

- Depende de mim, disse ela.

- Titia já te perguntou alguma coisa?

- Nada.

- Mas há de falar...

- Amanhã, talvez.

- Sim, amanhã...

- Que é isto? Isto o que?

- Não ouviste um grito?

- Não; é uma coruja; estás medrosa.

- Pareceu-me.

As duas sentaram-se na cama.

- Que é que tu hás de dizer quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?

- Velhaca! disse Teresa sorrindo.

- Por que, meu Deus?

- Quero saber também o que hás de dizer quando...

- Quando o que?

- Quando tua mãe te perguntar se queres casar com Benjamim...

- Ora, qual!... Mas vamos lá, dize...

- Eu responderei que é de meu gosto.

- Só isso?

- Pois então?

- Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!

- Deixemos disso; é romântico demais.

Desta vez ouviu-se um sussurro no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.

- Não é nada, disse Lucinda.

Entraram outra vez e continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.

Teresa estremeceu.

- É ele!

Lucinda começou a despir-se.

- Pois então, disse ela, vai conversar enquanto eu me deito.

Teresa chegou à janela e agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.

- Por que veio hoje? perguntou Teresa.

- Acha que fiz mal? disse Batista.

- Deve estar cansado.

- De que?

Teresa quis aludir ao banho mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:

- Mamãe ainda me não falou.

- Quando falará?

- Talvez amanhã.

- Que pretende dizer?

- Ora! que sim! diga-me outra vez; está certo de que foi bem recebido por ela?

- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do paraíso?

Esta rajada lírica produziu um riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já dormia nessa ocasião.

- Riu-se de mim? perguntou Batista.

- Que pergunta!

- Parece...

- Ah! não insulte aquela que vai ser sua esposa.

- Insultá-la? jamais... Não; eu daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa, você está contente casando comigo?

- Oh! muito feliz!

- Eu também! Havemos de ter uma bela vida!

- Eu espero.

- Contanto que nos não visitem indiscretos, ah! principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!

- Deixe-os.

- Oh! se os deixo! São dois pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?

- Parece que sim; disse a moça já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.

- Mas eu perdôo a esses rapazes; só o que desejo é que me não visitem...

- Será o que você quiser...

- Teresa, você me ama?

- Muito.

- Para sempre?

- Para sempre. E você?

- Oh! eu! pergunta ao mar se ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...

Não acabou a frase. Um esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.

- Que é? perguntou a moça.

- Não sei... respondeu ele suspeitando estar descoberto.

- Mas que foi?

Batista não respondeu; imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum dos rapazes.

- Meu Deus! exclamou a moça. Que é?

- Nada...

- Alguma coisa há de ser.

- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante idéia tiveram de me meter no banho!

- Isso é irônico, disse Teresa.

- Qual! é sincero! eu só me zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar comigo...

Desta vez recebeu um esguicho por trás.

- Aí! disse ele.

- Mas que tem você? perguntou a namorada aflita...

- Nada! é um calo. São excelentes aqueles moços...

Outro esguicho nas pernas.

- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.

Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve idéia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste diante da namorada.

Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele estivesse doido.

- Há de perdoar-me, disse ele, está fazendo um frio; vou-me embora.

- Já?

- Já.

- Adeus.

- Adeus!

- Até amanhã.

Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si, não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.

Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada dágua.

- Ai! ai! gritou ele.

E saltou o muro.

Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.

- Que me quereis? disse ele tremendo.

Abriu-se a janela e apareceu Teresa.

O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela, já cheia dágua. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram acordar o resto da família.

- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu? exclamou D. Angélica saltando fora da cama.

Dentro de pouco tempo estavam todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as janelas que davam para o quintal.

D. Angélica, desceu munida de um vergalho, e apareceu no quintal onde se passava a tragicomédia.

Batista esperneava dentro da gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes dágua.

- Que é isto? perguntou D. Angélica.

E avançou brandindo o vergalho.

O perigo era iminente.

Os dois rapazes agarraram em Batista.

Carlos sentiu uma vergalhada nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o futuro genro.

Teresa desceu abaixo; e suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da viúva Sanches.

Cessou a pancadaria; Batista foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.

Aqui estava o nó da situação.

Batista, não querendo confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era uma brincadeira.

Ao mesmo tempo dirigiu um olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma infalível correção.

Nessa noite todos dormiram mal.

Quando no dia seguinte, Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a presiganga.

Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.

Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica todas as tardes.


publicado no Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1874
Imagem do topo: Augustuis Earle, Folguedos durante o carnaval no Rio de Janeiro,c.  1822- 1823, aquarela, National Library, Camberna, Australia



Fonte: Contos Avulsos - Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior - Editora Civilização Brasileira / Cia Brasileira de Livros - 1956

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Dezembro 13, 2009
Uma nova velha história

Os mensalões são a face crua de um sistema político em que a democracia solapa a República







Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo

JOSÉ MURILO DE CARVALHO | Historiador, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e autor de 'Teatro de Sombras: A Política Imperial'


Não faltou batom na cueca no novo mensalão em cartaz na cena política brasileira. Varreram o País imagens de parlamentares, do presidente da Câmara Legislativa e do próprio governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), embolsando, escondendo em meias ou enfiando na roupa de baixo maços e maços de dinheiro. Em passado nem tão remoto, já se viram cenas parecidas desse espetáculo que já vai se tornando, sem trocadilho, maçante. A sistemática e periódica distribuição de propinas aos eleitos como "representantes do povo" resultou no mensalão petista, que manchou a imagem do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e no mensalão mineiro, que na quinta-feira transformou o ex-governador tucano Eduardo Azeredo em réu no Supremo Tribunal Federal.


á certa naturalização da corrupção, a sensação fatalista de que não há o que fazer", lamenta o historiador mineiro José Murilo de Carvalho, autor de A Construção da Ordem e Teatro de Sombras: A Política Imperial, obras fundamentais para o entendimento do processo político brasileiro. Aos 70 anos e convertido em imortal pela Academia Brasileira de Letras em 2004, na cadeira que pertenceu a Rachel de Queiroz, Carvalho acostumou-se a ver o tema da corrupção frequentar os documentos da história brasileira, da Colônia à República, passando pelo Império. Espanta-se, porém, com o caráter generalizado dos esquemas atuais, que envolvem partidos, ministros, governadores, empresários - no que considera uma inviável "democracia sem república".

Na entrevista a seguir, concedida ao Aliás do Colegio Mayor Arzobispo Fonseca - um portentoso edifício de 1525 na Espanha, ocasião em que faria uma palestra a convite do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca -, o historiador se diz cético em relação à reforma política como método de eliminação dos mensalões nacionais - ainda mais se convocada por Constituinte, como sugeriu esta semana o presidente Lula. José Murilo de Carvalho considera mais eficiente o ataque frontal a pontos nevrálgicos da vida política brasileira, como o foro privilegiado e a imunidade parlamentar. E critica a ideia em voga no País de que basta combinar crescimento econômico com inclusão social para se chegar ao paraíso, sem preocupação com a honestidade, os valores cívicos ou a consolidação das instituições. "Não creio em democracia sólida num país em que a população acredita que ser político e ser corrupto é uma coisa só."


Qual foi o primeiro "mensalão" da história do Brasil?
Sempre houve negócios escusos, compra de votos, subornos, trocas de favores. Mas não me lembro de algo sistemático e generalizado como o que tem havido ultimamente, envolvendo os principais partidos, ministros, governadores, secretários, congressistas, empresários. É uma inovação em nossa história.

Virou clichê dizer que a corrupção é endêmica no Brasil. O senhor concorda, como historiador?
Endêmica é a tradição patrimonial, é a dificuldade em separar o público do privado. No antigo regime, o patrimonialismo era prática comum e normal. Quando, a partir da constituição de 1824, inauguramos o Estado moderno que separou os bens do Estado dos bens privados do monarca, essa prática passou a ser ilegal, corrupta. No entanto, os valores sobreviveram às leis: uma longa batalha teve início entre os dois, ainda indecisa. Até hoje, muitos governantes não se pejam de usar o Estado para favorecer interesses particulares, nem os particulares se constrangem em privatizá-lo. É uma proposta de construir a democracia sem república, que me parece pouco viável.



Na época do Brasil Império, a figura de d. Pedro inibia a corrupção?
Práticas patrimonialistas, clientelísticas, nepotistas, existiam. Mas o imperador foi educado no sentido de combatê-las, tarefa facilitada pelo fato de não precisar disputar eleições. Governou em permanente conflito com seus ministros sobre nomeações e demissões de funcionários, pois tinha dificuldade em aceitar mesmo as exigências da política partidária de recompensar aliados. Tratava-se, além disso, de uma elite pequena governando um Estado com poucos recursos. Daí que as críticas republicanas se dirigiam, sobretudo, à corrupção da monarquia como forma de governo - e não à corrupção do imperador ou da elite política.

Tem sido comum, na vida política brasileira, a referência a ideais "republicanos". São palavras vazias?
Depois da moda de cidadania, inaugurada com a Constituição de 1988, apareceu na retórica política um termo que estava esquecido - república - sem que se saiba exatamente o se quer dizer com ele. Em seu sentido clássico, que remonta à Roma antiga e passa pelas cidades-Estado da Itália renascentista, além de uma forma de governo, república significa coisa pública, bem comum, virtude cívica. Foi assim que Frei Caneca a concebeu em 1822. República não se confunde com democracia, embora, desde o século 19 não sejam incompatíveis. Ela exige predomínio da lei, igualdade perante a lei, ausência de privilégios e hierarquias, cidadãos ativos, governos responsáveis e eficientes. E é incompatível com patrimonialismo, clientelismo, nepotismo. Nossa República nunca pregou esses valores e nunca os pôs em prática. Pode-se argumentar, isso sim, como muitos fazem, que nossa democracia não precisa de república, que aos trancos e barrancos vamos construindo a inclusão política e social, que preocupação com honestidade política, bom governo e valores cívicos, instituições respeitadas, é udenismo, moralismo pequeno burguês. Mas acredito que haja cada vez mais brasileiros que discordam dessa posição.

Alguns cientistas políticos afirmam que a corrupção no sistema representativo brasileiro é "residual", sempre vai existir e não compromete seu funcionamento de fato.
Isso é um truísmo. Ninguém que reclama de corrupção está propondo uma sociedade de anjos. Mas é também elementar saber que há níveis distintos de corrupção e há maneiras distintas de lidar com ela. Uma coisa é a corrupção eventual e de alguns, outra é a corrupção que atinge todo o sistema o tempo todo. Uma coisa é ter corruptos, mas dispor de um sistema que os puna, outra coisa é a impunidade generalizada. Eu diria que no segundo caso a corrupção compromete, sim, o funcionamento do sistema democrático, na medida em que desmoraliza suas instituições. Não creio em democracia sólida em país em que a população acredite que ser político e ser corrupto seja uma coisa só.

Brasília, que completa 50 anos em 2010, era para ser a sede do governo e um centro administrativo, mas transformou-se praticamente em outro Estado, com orçamento, assembleia e câmara, representação de oito deputados federais e três senadores. É estímulo à corrupção?
Brasília teve grande importância geopolítica ao incentivar o desbravamento do interior do País. Mas teve efeito deletério para os costumes políticos. Afastou os três Poderes do contato com o povo. Um mensaleiro no Rio de Janeiro, por exemplo, seria vaiado na Câmara e nas ruas. Em Brasília, pelo distanciamento e pelas próprias dimensões da Praça dos Três Poderes, esse contato é limitado. Tenho também dúvidas se um distrito federal deva ter o mesmo status político que um Estado. Uma prefeitura seria mais adequada, e mais econômica.

Brasília, então, seria uma redoma para os políticos?

Brasília, por seu isolamento geográfico, não por culpa das pessoas, se transformou em uma corte que cria um cinturão de proteção em torno dos políticos, livrando-os da pressão direta do povo. Lá só vão grupos organizados que podem pagar o transporte de militantes.

As imagens na TV mostraram maços de dinheiro sendo escondidos em paletós, meias e cuecas - em contraponto aos escândalos financeiros no mundo, sofisticados, difíceis de flagrar. Como entender essa corrupção tosca de Brasília?
Sem dúvida, as falcatruas de nossos políticos são toscas diante da sofisticação do grande negócio. Os reais nas cuecas são coisa de ladrão de galinha. Ainda não chegamos ao ponto em que os lobbies aproximam o grande negócio do Congresso. Justifica-se, no entanto, a reação maior ao roubo menor, porque os políticos estão exercendo um cargo de representação popular e lidando com dinheiro do contribuinte.

Esse raciocínio não livra a barra do lobista e do corruptor dos políticos?
Eu me referia aos lobbies americanos, que são registrados e agem abertamente. Pode-se contestar a legitimidade dessa ação, não sua legalidade.

O bombardeio de imagens de corrupção pode gerar um certo conformismo na sociedade?
Creio que há, sim, certa naturalização da corrupção, a sensação fatalista de que não há o que fazer. O bom momento que vive o País e a grande popularidade do presidente ironicamente favorecem essa postura. Os setores da população mais beneficiados pelas políticas governamentais tendem a ser mais tolerantes com os escândalos. Em política, o bolso ainda é o principal argumento. A reação procede mais de camadas sociais não diretamente beneficiadas. Sem estar acoplada a outros motivos de insatisfação, a luta contra a corrupção é árdua.

O governador Arruda ameaçou os colegas de partido dizendo "se radicalizarem comigo, vou radicalizar também". De que maneira a chantagem e o conluio forçado fazem parte da corrupção no Brasil?
Essa é uma das melhores armas dos que são pegos em falcatruas, pois sabem que não são os únicos a praticá-las. O PSDB aliviou as críticas ao mensalão do PT quando as denúncias viraram contra seus correligionários, que decidiu acobertar. Agora, tocou a vez ao DEM. O partido tem a oportunidade de quebrar esse pacto de conivência. Se o fizer, fará grande bem à República.

A reação inicial do presidente Lula foi dizer que "as imagens não falam por si só". Depois, veio a público e definiu a crise como "deplorável". Como entender essa mudança?
A resposta foi coerente com reações anteriores do presidente de leniência em relação às denúncias de corrupção, por parte de políticos de seu partido ou de outros. Deve se ter dado conta da inconveniência diante de evidências tão gritantes.

O presidente também disse ter enviado propostas de reforma política para o Congresso que não foram votadas e sugeriu a convocação de uma Constituinte. É a solução?
Propostas de reforma política e de Constituinte a esta altura, em plena campanha eleitoral, são um tanto inócuas. Em sete anos de governo não houve empenho em fazê-las. O que menos há hoje no País é ambiente para debate político. Só há debate eleitoral, a luta pelo controle da máquina do Estado. Não creio que haverá menos ou mais corrupção se o País for presidencialista ou parlamentarista, se o sistema eleitoral for proporcional ou majoritário, se houver ou não financiamento público de campanhas. Medidas simples poderiam ser mais efetivas. Por exemplo, acabar com privilégios antirrepublicanos como o foro especial para políticos, a imunidade parlamentar para crimes comuns, a prisão especial para quem tem diploma e as infinitas brechas da lei que garantem a impunidade dos políticos e ricos em geral. Também acho interessante rever a permissão de candidaturas de pessoas condenadas em primeira instância. Depois de tanto escândalo, quem foi condenado em última instância? O próprio governador de Brasília ainda não foi julgado pela acusação de violar o painel de votação há dez anos. Uma Justiça rápida poderia ter evitado o novo escândalo retirando-o antes da vida pública. O crime compensa e os criminosos sabem disso.

A velha história se repete?
Nossa democracia política é jovem: começou em 1945. Em 1932, havia 2,5 milhões de eleitores registrados. Em 2000, 110 milhões. Hoje, são 130 milhões. No período da ditadura, 43 milhões de novos eleitores entraram no sistema. Essa dramática incorporação de eleitores foi acompanhada da também dramática ampliação do leque de candidatos. Até 1930, no Brasil, a elite política era pequena. Hoje, basta olhar a lista de candidatos a vereador e prefeito que vemos muitos Zé da Padaria, Maria das Couves, Chico Bombeiro, etc. Isso não podia deixar de ter impacto na qualidade do voto, dos eleitos e das práticas políticas. Mas é um preço que temos de pagar pela tardia abertura do sistema. Além do custo do atraso, houve ainda o custo da ditadura que afetou a qualidade e treinamento dos políticos oriundos da elite tradicional. Na realidade, o aprendizado democrático e republicano de milhões de brasileiros começou mesmo só depois de 1988. É muito pouco tempo. É possível que nossas mazelas se devam em boa parte a essa cronologia. E que, com alguma paciência, possamos nos educar para novos e melhores tempos.

A falta de limites entre público e privado também aparece na vida dos políticos, não só no manejo da coisa pública. Filhos fora do casamento, derrapadas verbais, amantes usados no jogo político... Já há sinais de que a campanha de 2010 será pesada. O que é pior para o político: o escândalo pessoal ou ser pego com a boca na botija?
A pergunta é boa. O ponto é complexo: a vida pessoal de uma pessoa pública é assunto público ou privado? De um lado, há o dito: a mulher de César não só deve ser honesta como parecer honesta. Nos EUA, país puritano, vigora essa ideia, a vida privada do homem público é pública. Na França, pelo contrário, país católico, a vida privada é privada. Entre nós, há ambiguidade e uso oportunista das duas regras. A vida privada do adversário é pública, a dos correligionários é privada.





Hércules Florence

ESTADO DE SP  Dezembro 12, 2009
 

Retrato do Brasil por um inventor

Pioneiro da fotografia, Florence fixou imagens de fauna, flora e tribos hoje estudadas por historiadores

 

 

 

Há pessoas, como Hércules Florence (1804-1879), que nascem para ter suas invenções exploradas por outros. Exemplo recente dessa apropriação aparece na obra do romancista contemporâneo francês Stéphane Audeguy. Em seu livro A Teoria das Nuvens (Editora Record), Audeguy fala de todo mundo que estudou o comportamento das nuvens, do meteorologista inglês Luke Howard (1772-1864), que lhes inventou os nomes, a Ralph Abercromby (1843-1897), que rodou o mundo para ver se elas eram de fato iguais em toda a parte. Só não fala de Florence. O mesmo vale para sua principal invenção, a fotografia. Esse francês, que cunhou o nome e inventou o processo de revelação três anos antes de Daguerre, morreu um século antes de o fotógrafo, arquiteto e historiador brasileiro Boris Kossoy apresentar, nos EUA, as evidências de sua invenção, em 1976. Hoje, porém, se corrige uma injustiça. É inaugurada na Pinacoteca do Estado a exposição Hércules Florence e o Brasil, que reúne 180 obras, entre aquarelas, desenhos e manuscritos desse artista e inventor que acompanhou a expedição Langsdorff.


A mostra, com curadoria de Leila Florence, bisneta do artista, é a mais completa entre as que prestaram homenagens a Florence, habilidoso desenhista a quem o barão alemão Georg Heinrich von Langsdorff, pago pelo governo imperial russo, contratou para acompanhá-lo em suas andanças pelo Brasil, entre 1825 e 1829. O talento artístico e seus conhecimentos de cartografia o levaram a uma viagem de 13 mil quilômetros, partindo de São Paulo, então uma vila de 15 mil habitantes, e chegando à Amazônia. Florence dividiu com outro desenhista, Adrien Taunay, que morreu afogado durante a expedição, a tarefa de registrar a fauna, a flora e os tipos locais. Muitas dessas imagens estão na mostra da Pinacoteca e num livro que a curadora Leila Florence vai publicar no próximo ano, justamente dedicado ao estudo das nuvens do bisavô, O Teatro Pitoresco Celeste de Hércules Florence, com textos do crítico Jorge Coli, do psicanalista Guilherme Massara Rocha e do meteorologista Rubens Junqueira Villela.


As aquarelas que mostram as nuvens de todos os gêneros, de altos-cúmulos (em forma de carneirinhos) a nimbos (aquelas carregadas, de chuvas), formam a série mais espetacular de uma exposição que tem desde paisagens de fazendas de café a retratos de políticos liberais como o padre Diogo Antonio Feijó - Florence era simpatizante ideológico do partido -, passando pelo registro da vida cotidiana e costumes de diversas tribos indígenas (apiacás, bororos, guatós). O que torna o estudo da paisagem celeste por Florence ainda mais interessante é que não se trata apenas de uma apropriação artística do atlas celeste, como o fez o inglês Turner. Florence, antes de tudo, encarou a arte como uma forma de ciência para ajudar a humanidade. E enfrentou outras profissões - de dono de uma loja de tecidos a tipógrafo, começando por caixeiro - para sustentar seus 20 filhos.

A curadora Leila Florence confirma a suspeita de que o bisavô morreu ressentido por não ser reconhecido como inventor da fotografia e da poligrafia - impressão simultânea de cores, da qual a exposição reúne exemplares. Em 1834, numa das páginas de seu diário, ele conta como usaria o nitrato de prata para imprimir uma imagem sobre tecido, experiência realizada graças à observação de como o brim descoloria à luz do sol. No mesmo dia (15 de março de 1834), ele deixa claro que as coisas teriam sido diferentes se tivesse ficado em Paris. "Lá, possivelmente, encontraria pessoas que me dariam ouvidos, me compreenderiam, me protegeriam."


Essa sensação de isolamento de um homem que passou 50 dos seus 75 anos no Brasil é reforçada em outras passagens do diário. Generoso, ele revela como os fabricantes e atacadistas de tecidos poderiam utilizar sua descoberta, o polígrafo, como maneira de imprimir amostras de rendas, tule bordado e musselinas. Leila Florence lembra que o bisavô foi pioneiro até na propaganda. "Ele criou alguns anúncios usando a técnica do polígrafo", diz, mostrando desenhos que seriam utilizados para os mais variados fins, entre eles na imprensa - ele fundou o primeiro jornal de Campinas - e em notas bancárias para evitar falsificações.


Leila chama a atenção para as aquarelas que retratam povos indígenas como os guatós, hoje em extinção (restam apenas 500), o desmatamento e as queimadas, que Florence considerava desastrosas já naquela época. Observador da natureza, ele estudou os sons emitidos pelos animais durante a expedição Langsdorff e registrou a vida dos escravos na zona canavieira, escandalizando-se com os maus tratos a que eram submetidos. Há pelo menos uma aquarela que trata do tema na mostra. Ela revela um artista sensível e atento ao detalhe.


Serviço
Hércules Florence e o Brasil. Pinacoteca. Praça da Luz, 2, 3324-1000. 10 h/18 h (fecha 2.ª). R$ 6 (sáb., grátis). Até 14/3. Abertura hoje, 11 h, para convidados

 

Short Stories

Short stories: great literature


Female authors have won a clutch of short story awards this year. It's a form women excel at, says Sarah Crown. Below, she profiles six of the best







The Guardian, Friday 11 December 2009





Novelist Kate Clanchy, who has just won the 2009 BBC National Short Story award. Photograph: Sarah Lee







Given that 2009 looks set to live in literary memory as the year that brought us Dan Brown's The Lost Symbol, Jordan: Pushed to the Limit and Pride and Prejudice and Zombies, it is important to take comfort where it can be found – in the sudden and splendid blossoming of the short story. What's more, in 2009, it is women who have been picking up the laurels.


In May, Alice Munro, modern-day virtuoso of the short form, was awarded the £60,000 Man Booker International prize in recognition of a body of work that the judges described as "practically perfect". Last week, Zimbabwean author Petina Gappah ran away with the Guardian's own fiction prize, the First Book award, for her collection, An Elegy for Easterly. And this year's BBC National Short Story award made headlines for the fact that its five-strong shortlist was made up entirely of women – on Monday evening it was won by Kate Clanchy. Naturally, as is always the case when it comes to women excelling in a field, everyone is on the hunt for a reason.


Might it be that the form itself is particularly suited to "female" subjects; to women's perceived preoccupation with the domestic, with relationships' subtle ebbs and flows? Certainly, the short story's taut boundaries can act as a check, condensing the sprawl of family life into gleaming droplets faceted with the sort of insights that might easily dissolve over the course of a novel. The problem, obviously, lies in the suggestion that these subjects are specific to women. Male short story writers are equally alive to the form's usefulness for grappling with these sort of small-scale situations. Just think of William Trevor – or Chekhov, for that matter.


The second suggestion that generally surfaces is that women turn to short stories because they are easier to slip into the spaces in days that may be overstuffed with paid work and a pram (or two) in the hall. Munro herself seemed to support this view when she said: "In 20 years, I've never had a day when I didn't have to think about someone else's needs. And this means the writing has to be fitted around it." But are short stories simpler to write, just because they're shorter? James Lasdun, himself a former winner of the National Short Story award, doesn't think so. "I'm not sure [short fiction] is necessarily better suited to a life full of interruptions than writing novels might be," he says. "Personally I find it the most demanding and time-consuming of all literary forms."


Perhaps, then, the real question isn't why women are winning prizes for their short stories, but why they are less likely to win them for novels. One possibility is that when women tackle the domestic sphere on the grander scale, their efforts tend to be packaged as "women's fiction" (for marketing purposes) and dismissed accordingly. Short stories, on the other hand, are famously uncommercial; that, coupled with the perceived exactingness of the form and its heavyweight literary lineage, means that short stories by women are taken seriously – and awarded accordingly.


Whatever the reason, their current success has the welcome effect of reminding us that great writing doesn't have to be set on the grand scale. And for anyone wanting to read some world-class short story writing, here are six essential authors to start with.


Katherine Mansfield

Born into a well-to-do New Zealand family in 1888, Mansfield was sent to school in London and at 20 moved to Europe permanently. An early and ardent admirer of Chekhov, she was part of a circle of modernist writers that included Virginia Woolf and TS Eliot. Her short stories, which dwell on the relationships between middle-class men and women and the endless ways in which they crumble, show both of these influences.


At her best – and she is rarely less than her best – there is something rapturous about her work: through her acute eye and cool, appraising descriptions, she has the power to distil the apparently inconsequential into frozen moments laden with significance. She died of tuberculosis in 1923, aged 34.


Three to read: Bliss and Miss Brill (both from Bliss, and Other Stories), The Woman at the Store (from Something Childish and Other Stories).


Grace Paley

The daughter of Ukrainian immigrants, Paley grew up in the Bronx in New York in the 1920s – a double-inheritance that would inform both the substance of her fiction and her committed political activism. After the success of her first collection, The Little Disturbances of Man (1959), a hymn to the shift and glitter of Jewish New York life, her publisher tried to nudge her into novel-writing; she worked at a draft for several years but finally threw it over in favour of the short form.


Through the semi-autobiographical character of Faith Darwin, Paley painted an unforgettable portrait of a thoroughly modern woman: a writer who exists in the centre of a tangle of relationships with lovers, children, parents and female friends. She created, said Philip Roth, "a language of new and rich emotional subtleties, with a kind of backhanded grace and irony all its own".


Three to read: Goodbye and Good Luck (from The Little Disturbances of Man), A Conversation With My Father and Wants (both from Enormous Changes at the Last Minute).


Alice Munro

Set in the fields, farms and modest towns of her native Canada and thrumming with the rhythms and rotations of daily life, Munro's stories tend to focus, as the title of her second collection has it, on the lives of girls and women, digging down to uncover the passions and excesses that rumble beneath the surface of everyday life. While the stories themselves frequently unspool over pages, pressing up against the limits of the form, her prose is distinguished by its plain- spokenness and descriptive economy. A famously unassuming woman, her reputation has grown incrementally over the four decades since her first collection was published; fellow author, Cynthia Ozick, called her "our Chekhov", and her Man Booker International victory was widely viewed as a long-overdue coronation.


Three to read: A Wilderness Station (from Open Secrets), The Bear Came Over The Mountain (from Hateship, Friendship, Courtship, Loveship, Marriage), Passion (from Runaway).


Helen Simpson

Simpson's work exhibits a profound fascination with the modern domestic sphere: how we organise it; how we arrange ourselves within it. Childbirth is considered from every angle (an over-due mother is described as "a bulbous bottle, unreliably stoppered"); the grind and elation of motherhood is anatomised; marital compromises, compensations and indignities are dissected in razor-sharp prose that veers between unbearable poignancy and side-splitting wit, often in the same sentence. The British writer has won several awards for her short fiction; her next collection, In-Flight Entertainment, is due out next year.


Three to read: Dear George and Heavy Weather (both from Dear George), Cafe Society (from Hey Yeah Right Get A Life).


Mavis Gallant

Born in Montreal in 1922, by the midpoint of the century, Gallant had cast off her marriage and her journalistic career to move to France and pursue fiction. "I felt that the only thing I was on earth to do was to write," she said, in a recent Guardian profile. A fiercely private, self-reliant woman, the epigraph to her collection Home Truths is a quotation from Pasternak, "Only personal independence matters".


Gallant has written two novels, but it is for her short stories that she is loved. Structurally dexterous but morally flexible, they focus on the truth of situations and emotions over devices of character and plot, and articulate the expat experience with piercing insight.


Three to read: Madeline's Birthday (from The Cost of Living), The End of the World (from The End of the World, And Other Stories), A State of Affairs (from Across the Bridge and Other Stories).


Lorrie Moore

Currently in the spotlight for her mordantly witty novel A Gate At The Stairs, Lorrie Moore (by day a creative writing teacher at the University of Wisconsin-Madison) is as famous – justly – for her short story collections, Self Help, Like Life and Birds of America. Her tales pick delicately at the fissures that criss-cross relationships, detailing them in close-up, sometimes claustrophobic detail, but her arch observations and knack of revealing the comedy in the most tense and tragic situations leavens the mix, without ever undermining the warmth with which she draws characters.


Three to read: People Like That Are the Only People Here and Community Life (both from Birds of America), Two Boys (from Like Life).