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Os 80 ciclos de Amir Haddad

Jornal O Globo, 23/06/2017


Décadas à frente: os 80 ciclos de Amir Haddad

Ator e diretor com centenas de peças no currículo prega a volta às origens do teatro por meio de relação mais intensa e honesta com a plateia

Amir Haddad completa 80 anos no dia 2 de julho - Leo Martins

POR THALITA PESSOA
23/06/17 - 16h25 | Atualizado: 23/06/17 - 18h21

RIO — Prestes a completar 80 anos no dia 2 de julho, o ator e diretor Amir Haddad confessa ter alguma dificuldade em detalhar a cronologia ao longo das décadas de trabalho que o alçaram ao posto de um dos grandes nomes do teatro brasileiro com cerca de 250 ou 300 peças dirigidas, pelas suas contas. Ou melhor, do pós-teatro, como nomeia o que faz. O Teatro mesmo, com T maiúsculo, posto no pedestal e encarado como forma de arte superior, inabalável e imposta — ou seja, da forma como a conhecemos e somos apresentados, pontua ele —, Haddad não vê a hora de que seja extinto.

—Basta um segundo de teatro no pós-teatro para estragar tudo — enfatiza.

Para ele, o pensamento linear responsável pelas tais linhas cronológicas, incluindo a de seus 80 anos, não é capaz de apontar os rumos futuros das manifestações artísticas porque não revisita o passado. Tudo é cíclico, em sua visão, e o pós-teatro disponibiliza isso. "Não existe contemporaneidade sem ancestralidade", repete o diretor durante a entrevista em sua casa, em Santa Teresa. Ele sente ter vindo a esta vida com a missão do teatro.


É na rua, falando e interpretando para o povo, sem palco ou delimitação de paredes para a cena ("Não foi a arquitetura que inventou o teatro, o teatro é que inventou a arquitetura", diz), que ele cumpre a incumbência e se sente conectado à arte de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e outros dramaturgos da Grécia Antiga. No nascedouro do teatro, as encenações eram feitas nas praças, ao ar livre. Mesmo após tanto tempo, seus textos persistiram conhecidos e icônicos porque representam o passado, o presente e o futuro em cena, acredita o diretor. O texto de "Antígona", de Sófocles, com Andréa Beltrão e sob a direção de Haddad, mostra-se tão atual que comprova isso (a peça estreou em novembro de 2016 no Rio e agora viaja pelo Brasil).

Assim, ele fundou em 1980 o grupo Tá na Rua, com espetáculos produzidos para o povo e no meio dele, como feito nos primórdios. Neste cenário, existe a interação entre ator e plateia que Amir Haddad sempre perseguiu. Isso é pós-teatro, defende:

— O teatro passou a ser o local de pessoas interessantes fazendo uma arte ruim. É um sal bom em carne estragada e que fica tão putrefato quanto ela. Em "Antígona", com a Andréa, a gente esquece o Teatro. É fácil diferir o teatro do pós-teatro: no pós-teatro, o público gosta, tem prazer de ver, se sente respeitado. A relação do palco com a plateia é horizontal, o ator é uma carta aberta, não é afirmativo nem impositivo. O teatro é amor, cheiro, suor. O pós-teatro remete ao início do teatro, não é uma exibição do ego. Só existe essa preocupação nos atores inteligentes que buscam se livrar disso, como a Andréa, a Renata Sorrah, a Adriana Esteves, que querem sair desse lugar acomodado.


A experiência adquirida ao longo dos anos, jura, lhe permitiu saber diferir o joio do trigo com facilidade ímpar.

— Quando vou ver Teatro, sou capaz de identificar logo se é algo bom ou ruim. Se for ruim, na primeira fala já penso "me f..., vou ficar horas preso aqui para ver essa porcaria" — relata.

Algo bem diferente do tempo empregado em seu ofício. Quase num transe, firmado num pacto entre atores e público, o encenado fica suspenso da atuação dos ponteiros.

— A noção de tempo abstrato desaparece porque ela é uma invenção do mundo e por ser eu fruto do teatro da maneira como fiz. Ele me tirou dessa abstração, me levando às dobras do tempo. É muito normal que nos meus espetáculos tanto os atores quanto a plateia percam esta noção. É como uma antevisão que na hora vira só uma confirmação daquilo que já foi vivido. Por isso, a sabedoria de hoje é um produto do trabalho — afirma.

E acrescenta:

— Einstein estava certo: o tempo não é linear. "2001 — Uma odisséia no espaço" (filme de Stanley Kubrick, de 1968) também está, ao mostrar o mesmo homem novo e velho ao entrar nessas dobras de tempo. Saber disso te dá uma liberdade grande, uma força, reforça sua vitalidade, e sexualidade. O tempo não para porque ele não é igual.

O conceito que melhor se aplica a tudo que viveu e vive graças ao seu dom ele tira do conceito grego do oroboro, também presente nas culturas egípcia e chinesa e nas ciências místicas, expresso na simbologia da serpente que morde a própria cauda. Oroboro representa eternidade, continuidade e perpétuo retorno, que ajudam a explicar como ainda pequeno Haddad, então com 7 anos, encontrara sua vocação.

— O insight aconteceu recitando um poema na escola. Ali eu já era um homem do teatro. O arrebate que aquele menino sentiu no momento é o que sinto eternamente. É o que sinto hoje quando vejo que cumpri o meu destino. O oroboro é a serpente que morde a própria cauda. É como me sinto: um corpo só com o que fui e o que vou ser, num perpétuo movimento — explica Haddad.

Com a clareza e a maturidade adquiridas por experiências passadas e futuras com as quais se comunica nas tais dobras do tempo, ele se diz satisfeito com a obra e as pessoas que conseguiu tocar ao longo da vida.

— Alguém que tem 80 anos tem dificuldade de fazer uma cronologia. Passado, presente e futuro... é tudo igual, são partes de uma coisa só. A vida te dá essa clareza, de saber que você é quem era para ser, de que cumpriu a sua tarefa. E este momento de sabedoria me deixou encantado. Emociono-me por perceber que passei 80 anos aproveitando a vida. Se você tem 80 anos e não sonhou, passou a vida em branco, não fez valer a pena — celebra.

TEATRO COMO SOBREVIVÊNCIA

A vida inteira de Amir Haddad foi dedicada ao teatro. Ainda novo, quando tinha por volta de 16 ou 17 anos, chegou a trabalhar por seis meses numa casa bancária. Mas a raiva do trabalho era tanta que acabou deixando o local, que não tardou em falir. O seguinte "bico" escolhido acabou sendo bem menos conservador: na década de 1970, surgiu a opção de vender baseado "só para ajudar a complementar a renda e pagar o aluguel", conta ele. Ainda assim, Haddad não tem do que reclamar em relação às oportunidades que teve.



Nascido em Guaxupé, em Minas Gerais, e criado em Rancharia, no interior de São Paulo, foi para a capital para cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Acabou abandonando o curso ao viver a efervescência cultural de uma São Paulo em crescimento nos "cinquenta anos em cinco" do governo do presidente Juscelino Kubitschek. O dom de ator e diretor encontrara terreno propício para florescer. Assim, conseguiu cumprir sua missão no mundo.

— Tem de se estar no lugar certo para aproveitar as melhores condições. Fui de uma cidade com cinco mil habitantes para outra que, na época, tinha dois milhões. Cheguei em São Paulo na segunda metade de 1950, no início da industrialização. Era uma cidade efervescente e com inteligência sensível ao novo, às ideias, com vida cultural intensa, que abrigava o teatro brasileiro de comédia. Era o momento em que o Brasil saía de uma realidade obscura e de pobreza intelectual, arrastando todos para um novo patamar e eu fui junto — lembra.

Haddad agradece à formação que recebeu no colégio público para decidir o próprio caminho.

— Foi onde me ensinaram Manuel Bandeira, latim, filosofia. Foi no pátio do colégio que vi minha primeira peça, com Sérgio Britto e Eva Wilma. Eu me sinto grato por ter vivido entre 1950 e 1960 no Brasil. Quando veio o golpe militar, já estava imune ao que ele produziu — conta.

A alma de artista, já bem estruturada na época, não impediu, no entanto, que fosse barrado no teste da Escola de Arte Dramática. Um não que ele endossa não ter sido um erro circunstancial.

— O Sérgio Mamberti morava na mesma pensão e me chamou para fazer o exame na Escola de Arte Dramática, do Alfredo Mesquita. Ele passou e eu fui reprovado. Um ano depois, fundei o Teatro Oficina, ao lado do Zé Celso Martinez Corrêa e do Renato Borghi. Desde o primeiro momento comecei dirigindo, e bem, até conseguir juntar o ator e o diretor. Não é possível ser um bom diretor sem a vivência do ator. A Escola de Arte estava certa: eu não servia para aquilo. Até hoje vivo para demolir a escola de arte, para demonizá-la — afirma.



Com o passar dos anos, numa prova do destino selado, quando Haddad teve a chance de ensinar o pós-teatro, teve de lidar com a dificuldade de tirar a arte do pedestal.

— Quando o ator chega até mim, tem que se desarmar. O que eu proponho é um processo doloroso, de desfazer essa imagem de si, de deixar essa persona que é a máscara que ele usa. Como pode uma máscara usar outras máscaras? Uma das prisões do ator é ser o ator de só um tipo de papel, que é diferente do que acontecia na comédia dell'arte, onde uma pessoa fazia o mesmo papel a vida inteira. Lá, o ator se especializa na máscara a tal ponto de ter um discurso próprio. É diferente do ator falando um texto de outra pessoa — compara.

No processo de preparação de ator, Amir Haddad garante: não precisa de malha preta, declamação, nada disso. No seu modo de ver, são o discurso e o seu desenvolvimento na coletividade que devem ficar em foco.

— A Fernanda Montenegro é quem fala: "Amir, com você ou o ator melhora ou desiste". Acho que por isso muitos nem vieram (até mim). Um terço dos que me procuram desistem porque não entendem o que eu faço. Teatro é afeto vivo, é verbo, não é virtual. É lugar de sobrevivência. O teatro entrou nesse lugar para a burguesia protestante capitalista e está apodrecendo com ela. Teatro é ideologia e reflete a decadência da sociedade. Por isso, não tem como ser salvo e caminha para o fim. Não quero salvar nada do que está aí — enfatiza ele.

DEVORAR E SER DEVORADO

Em cartaz com a peça "Antígona", de Sófocles, Andréa Beltrão declara estar "completamente apaixonada" pelo espetáculo e pelo que representa Amir Haddad, com quem trabalha pela primeira vez. A montagem vai desembarcar no Cine Teatro Brasil Vallourec, em Belo Horizonte, no fim de semana em que o diretor completará 80 anos. Ao fim da apresentação do dia 1º, à meia-noite, o local se transformará na casa que abrigará comemorações e honras ao aniversariante. Homenagens logo após uma peça que, segundo Haddad, é "um espetáculo que dura uma hora ou mais mas que levei a vida inteira para ter a maturidade para ele"



— Eu tinha vontade de trabalhar com o Amir e essa peça sempre estava na minha gaveta. Abria e lá estava, "Antígona". Quando decidi fazer, eu me enchi de coragem para ligar para o Amir. No que ele atendeu e falou "E aí, o que você manda?", eu pensei "F..., agora vou ter que falar que sou eu e o que eu quero fazer". "Antígona" me transformou, me deu uma vida diferente, nova. Quando chamei o Amir para me dirigir, ele me perguntava o porquê de querer fazer essa peça, onde eu queria chegar. Eu respondia "Eu não sei", mas só queria fazer se fosse com ele. Foi uma experiência radicalmente nova — conta Andrea.

Mesmo sem saber onde queria chegar, ela embarcou no exercício proposto por Haddad. E garante não ter se arrependido.

— Começamos as conversas mesmo sem saber se ia mesmo ter a peça. Não tinha data, prazo, não estava na esteira de produção. Só havia a vontade enorme de descobrir se nós dois íamos nos apaixonar um pelo outro. Começamos no zero total. Ele me passava pesquisas e trabalhos para fazer. Tive de estudar muito para corresponder ao que ele queria. construímos uma relação muito honesta, sincera. Eu perguntava "E se ficar um horror?", ele respondia "Então a gente não faz". Quando eu queria desistir ele me dizia: "Não, vamos fazer, tem coisa legal aí, calma". E no meio desse processo nos apaixonamos um pelo outro, perdidamente — garante ela, que vai além. — Ele é uma figura, um homem especial, um homem de teatro muito raro. É preciso aproveitar a sabedoria dele, devorá-lo, como ele diz, para fazermos. Porque a gente entra no palco para ser devorado. É preciso perder para ganhar.

Andréa fala ainda com carinho da reação do diretor no dia em que errou uma das falas da peça. Incomodada com a troca da fala por uma gíria, ligou para Haddad:


Reconhecimento. Haddad e Renata Sorrah em entrega de prêmio - Cristina Granato (15-11-2016) / Agência O Globo
— Com ele, eu sinto que estou lidando com os meus limites o tempo todo, os meus vícios, as minhas dificuldades. O espetáculo dessa maneira vira uma coisa viva, que se mexe. O Amir brinca comigo que teatro é a liberdade eterna, que você não pode ter vergonha de nada. No fim da peça, quando só tinha mais duas falas, me foge uma completamente fundamental e eu troco uma frase do Sófocles, imagine, por uma gíria. Então parei, pedi perdão ao público e falei que ia retomar — conta Andréa. — Quando liguei e falei para o Amir, ele me falou no telefone: "Que maravilha!, que ótimo!, meus parabéns!". Então eu contei que tinha trocado a fala por uma gíria e ele: "Que erro bonito!", que erro enorme, agora você está livre, é a liberdade eterna!". Naquele dia eu senti que foi o meu batismo.

Fernanda Montenegro também não poupa elogios a Amir Haddad e ao que representa para o teatro brasileiro.

— Toda maneira de amar vale a pena. A maneira de amar o teatro que o Amir tem é de suma relevância. É importante porque ele tira a poeira, o presumido, o pré-decodificado. É muito rico isso. É um desafio para o intérprete, um susto, talvez seja o mergulho no impossível. Chego a achar que o trabalho do Amir é único no teatro brasileiro — analisa ela.

A atriz consegue traduzir em palavras uma das máximas do diretor de que o teatro acontece antes da peça e que não se restringe ao palco:

— O Amir se concentra no humano, no ator. Não precisa cenário ou figurino, o importante é ter o desafio de renascer dentro do mesmo processo. O Amir nem quer que a gente entenda, ele quer que a gente sinta, no sentindo da sensualidade, da pele, mais do que do invólucro. Isso para um ator é algo explosivo, desafiador, contestador. É possível que muitos queiram se queixar desse processo. O ator com o Amir ou muda ou desiste porque com ele é tirar tua pele para carnificar de outra maneira.



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