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Ficção nacional que cruza fronteiras

 
 Ficção nacional que cruza fronteiras

Pesquisadores de diversos países apontam caminhos, desde dicionários bilíngües até programas de incentivo mais agressivos

Ubiratan Brasil

 
 
Enquanto os Estados Unidos assumem o primeiro posto entre os países que mais estudam a literatura brasileira, a Alemanha reserva meros 7% de seu imenso mercado editorial para a tradução de livros de escritores do Brasil. As constatações, entre outras também surpreendentes, fazem parte das primeiras conclusões obtidas pelo projeto Conexões, mapeamento internacional da literatura brasileira promovido pelo Itaú Cultural. Nos últimos meses, pesquisadores, tradutores e estudiosos de diversos países foram consultados sobre a percepção e o conhecimento da escrita literária nacional. "Já recebemos 72 questionários e, até dezembro, aguardamos mais 20", comenta Claudiney José Ferreira, gerente do Núcleo de Diálogos do Itaú Cultural.

Trata-se de um trabalho inédito, que busca clarear a real importância que a literatura brasileira ocupa no exterior. As primeiras informações serão divulgadas em um simpósio na Universidade de Salamanca, na Espanha, que acontece no dia 21. E, no ano que vem, provavelmente em agosto, acontece um congresso internacional em Chicago, nos Estados Unidos, a fim de apresentar o projeto para a comunidade acadêmica norte-americana. "E temos planos ainda para realizar o mesmo em Londres e em um país da América Latina", diz Ferreira.

As primeiras conclusões são animadoras. Segundo apontam os questionários, a quantidade de traduções vem aumentando, especialmente de autores contemporâneos e não apenas de clássicos ou best sellers, como Paulo Coelho. "O conhecimento é muito mais amplo e inclui escritores que surgiram mais recentemente, como Milton Hatoum, João Gilberto Noll, Luiz Ruffato, além de nomes mais jovens como Adriana Lisboa, Bernardo de Carvalho."

Escritores tradicionais, é claro, continuam puxando a fila, garantindo a presença permanente da literatura brasileira nos estudos e pesquisas estrangeiros. Mas, entre nomes esperados (como Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Rubem Fonseca), surgem outros que mesmo no Brasil já não têm a mesma repercussão. É o caso de José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu Pé de Laranja Lima, clássico juvenil. "Ele é muito respeitado e traduzido especialmente no Leste Europeu, onde até é adotado em escolas", conta Ferreira, que ensaia algumas explicações. "Trata-se de uma visão nada exótica do Brasil."

O mapeamento permite também rascunhar motivos do sucesso planetário de Paulo Coelho entre os críticos estrangeiros, situação que não acontece no Brasil. "Para os resenhistas daqui, a obra dele resvala na auto-ajuda enquanto, na Europa, Coelho é considerado escritor de ficção."

Os problemas ocupam, no entanto, espaço essencial. O relativo interesse pela língua portuguesa no mundo é um dos principais entraves. Pesquisadores europeus e norte-americanos apontam o espanhol como língua latina de ponta, o que acaba ofuscando as demais. "O trabalho feito por institutos culturais como o Cervantes, é muito poderoso e faz com que o idioma espanhol ganhe um espaço precioso", comenta Ferreira. "A embaixada espanhola produz uma lista de livros novos publicados em seu país e envia às editoriais inglesas, além de divulgar em seu website", completa Margaret Jull Costa, que faz traduções para o inglês.

Claudiney Ferreira não confirma, mas há um outro entrave, provocado pelos portugueses. De acordo com alguns pesquisadores, que comentam informalmente, a divulgação maciça da literatura brasileira, reconhecidamente vibrante e conectada aos problemas atuais, poderia atropelar a portuguesa que, embora viva um momento de renovação, talvez tenha chances mais reduzidas em relação à da antiga colônia.

A tímida ação governamental também é lembrada pelos pesquisadores consultados. Todos são unânimes em apontar a necessidade de se implantar um plano que facilite a tradução de obras nacionais para diversas línguas. E a divulgação dos livros exige um projeto mais elaborado - para eles, o Brasil deveria considerar o Instituto do Livro e o Instituto Camões em Portugal como modelos a serem seguidos.

"Apenas alguns escritores brasileiros de destaque são traduzidos para o inglês, enquanto vários autores excelentes não têm nem chance de serem considerados", observa Alison Entrekin, responsável por versões em inglês. "As editoras investem no marketing de escritores cujos livros tiveram boas vendas no Brasil. A ironia é que alguns dos menos conhecidos têm muito mais a ver com o de língua inglesa do que aqueles que as editoras promovem."

Além do foco, as escassas ferramentas de trabalho são outra fonte de queixas. Os profissionais que trabalham com literatura brasileira no exterior são unânimes em elogiar dicionários como o Aurélio e o Houaiss, mas reclamam de não dispor de bons exemplares bilíngües. "Eles sentem falta, por exemplo, de um dicionário inglês-português do Brasil, capaz de dirimir dúvidas sobre a língua falada em nosso País e não em Portugal", observa Ferreira.

Fórmulas de sucesso são outro caminho a ser evitado. Pesquisadores e tradutores comentam que a literatura brasileira precisa manter sua autenticidade e jamais adotar esquemas que fazem sucesso lá fora. "Não adianta tentar copiar Borges nem Cem Anos de Solidão", acredita Regina Machado, que vive na França. "Receitas já provadas não voltam a atuar, mas talvez possam nos ajudar a estender à nossa vasta paisagem humana e literária o olhar que alguns escritores souberam lançar sobre sua própria realidade."

A grande diversidade lingüística, o uso incrível da coloquialidade, além de uma interessante e fluida liberdade de expressão são, no entender do tradutor Alex Levitin, as principais qualidades da escrita brasileira que a distingue das demais literaturas.

Virtudes também encontradas em outros meios de expressão, como o cinema, que conquista terreno com mais sucesso e velocidade que a literatura. Assim, a fama dos filmes brasileiros deveria ser utilizada como plataforma para espalhar a obra de autores nacionais, no entender do americano Ross G. Forman, que vive em Cingapura, onde divulga, com dificuldade, autores do Brasil.

Apesar de tantos empecilhos, os primeiros resultados do Conexões são animadores. "A presença da literatura brasileira no exterior é superior ao que usualmente imaginamos", comenta Ferreira. "E há um grande interesse pela escrita contemporânea - os clássicos decerto são estudados, mas os brasilianistas demonstram cada vez mais preocupação com o aqui e agora da literatura brasileira."
 
(Estado de SP -  03 nov 2008)

Works on Paper: Elizabeth Bishop and Robert Lowell.

 

Works on Paper

The letters of Elizabeth Bishop and Robert Lowell.

by Dan Chiasson November 3, 2008

 
Through Lowell's dizzying psychological dramas and fits of despair, Bishop remained a steadfast but unsparing correspondent.

Through Lowell's dizzying psychological dramas and fits of despair, Bishop remained a steadfast but unsparing correspondent.

In 1947, Elizabeth Bishop published "At the Fishhouses," in this magazine. Among those who admired the poem was her new friend the poet Robert Lowell. "I liked your New Yorker fish poem," he wrote. "I am a fisherman myself, but all my fish become symbols, alas!" Bishop, who was staying at the time in Cape Breton, Nova Scotia, had written to Lowell of the region's marvellous bird life, "auks and the only puffins left on the continent, or so they tell us . . . real ravens on the beach . . . enormous, with sort of rough black beards under their beaks." In response, Lowell lamented, "Puffins are in my book of New England birds, but I've never seen one." As for Nova Scotia, he recalled it as the site of a bad trout-fishing expedition with his grandfather, including a "horrible after sea-sick feeling" and a few "dismal low-tide gulls."

From the start, Lowell and Bishop were intent on being a mismatch. When Lowell invited Bishop to visit him in Washington, where he was serving as Consultant in Poetry to the Library of Congress (a post that we now call "Poet Laureate"), she informed him that she would be travelling there with her pet canary. Staying at the home of Pauline Hemingway in Key West and deep in what she called her "female Hemingway" phase, Bishop wrote of catching amberjack and jewfish. Lowell, fresh from charming William Carlos Williams's ninety-one-year-old mother, responded that he had once "tried swimming" but "was nearly drowned and murdered by children with foot-flippers and helmets and a ferocious mother doing the crawl." The critic John Thompson recalls his friend Lowell lying in bed all day writing poems, surrounded by a "tumble-down brick wall" composed of "his Greek Homer, his Latin Vergil, his Chaucer, letters from Boston, cast-off socks, his Dante, his Milton." Bishop once interrupted a letter to witness the birth of a calf in a nearby field. These differences, sharpened for each other's amusement, made them ideal trading partners. Lowell, the literary fisherman, sent a copy of "The Compleat Angler" to Bishop in Key West, keeping the motif alive. When he absent-mindedly put away a lit cigarette in his pocket, nearly setting himself on fire, Bishop mailed him a "SAFE if not particularly esthetic ashtray."

They shared the tiny poetry orbit of stipends and seminars and itinerant jobs, but when it came to seeing each other they specialized in near-misses. Lowell's first-ever letter to Bishop rues the fact that he had already narrowly missed seeing her on three occasions. When Bishop was at Harvard to record her poems for the Woodberry Poetry Room, she listened to Lowell's recording of his poems, made there a year earlier. One season it was Lowell's turn in Washington, calling on Ezra Pound at St. Elizabeths Hospital, and then it was Bishop's, bringing Pound a bottle of cologne. When Bishop wrote of blowing bubbles on the balcony outside her magnificent room at Yaddo, the artists' colony in Saratoga Springs, Lowell wrote that he thought he had stayed in that room, too, and reminisced about games of croquet. "We seem attached to each other by some stiff piece of wire," he wrote, "so that each time one moves, the other moves in another direction." They spent their lives begging each other to visit, but when the opportunity presented itself they conspired with almost comic transparency in setting up obstacles.

Seeing each other more often would have given them less time to write, less to write about, and, since letters exist in reciprocal terms, less to read. As it is, "Words in Air: The Complete Correspondence Between Elizabeth Bishop and Robert Lowell," edited by Thomas Travisano, with Saskia Hamilton (Farrar, Straus & Giroux; $45), takes up more than nine hundred pages. Like Victorians hungry for the next installment of a serialized novel, the two looked to each other's letters for sustenance. "I've been reading Dickens, too," Bishop wrote, as though confirming the scope and flavor of the correspondence, the "abundance" and "playfulness" that she ascribed to Dickens. The letters abound in Dickensian caricature, mostly gentle and humane. "Several weird people have shown up here," Lowell wrote from Washington, including a Dr. Swigget with a terza-rima rendering of Dante and an aspiring writer named "Major Dyer, who takes Pound ice-cream, was a colleague of Patton's and teaches Margaret Truman fencing."

They were also adroit self-satirists. The poetry they perfected, so different in so many ways, shares a nearly absurdist attitude toward the self. Bishop, in "The Gentleman of Shalott," imagined herself as a man (she often chose male personae) standing with half his body in the mirror and half out. Lowell, in poem after poem, finds himself reflected in unlikely ways. A late poem called "Shaving" describes his face "aslant" like a "carpenter's problem," and in "Waking in the Blue" he sees himself "before the metal shaving mirrors" of the insane asylum:



After a hearty New England breakfast,
I weigh two hundred pounds
this morning. Cock of the walk,
I strut in my turtle-necked French sailor's jersey

The poem, written during one of Lowell's stays at McLean Hospital, outside Boston, takes a scrupulously external view: he's just another one of the Brahmin "old-timers" holding a "locked razor."

"It's funny at my age to have one's life so much in and on one's hands," Lowell wrote. Bishop responded by quoting her Maine hairdresser: "Kind of awful, ain't it, ploughing through life alone." They were introduced in 1947 at a dinner party thrown by Randall Jarrell in New York. Bishop recalled, "It was the first time I had ever talked to some one about how one writes poetry." She found that talking with Lowell, who struck her as "handsome in an old-fashioned poetic way," was "strangely easy, 'like exchanging recipes for a cake.' " It had been a strange, lonely interval for them both. Lowell was twenty-nine and coming out of his disastrous first marriage, to the novelist Jean Stafford. (Stafford had sued him, before they were married, after he permanently injured her face in a car crash. Things went downhill from there.) Bishop was turning thirty-six, and her relationship with Marjorie Stevens, from Key West, was coming to an end. Lowell's "Lord Weary's Castle" and Bishop's "North & South" had just been published to acclaim. (Lowell collected a Pulitzer Prize for his book; he was among the youngest poets ever to receive one. Bishop won the Pulitzer nine years later, for her second book.) Bishop was writing poems along with autobiographical stories and sketches, while Lowell was wringing out of his early style the long, hysterical poem "The Mills of the Kavanaughs," a daily task that he greeted with expanding dread.

Bad childhoods are a human misfortune, but for writers they are often a stroke of luck. Both Lowell and Bishop were aware that growing up lonely sponsored their imaginative lives. In the seventies, Lowell, in his great poem "Ulysses and Circe," chose a baffled and emasculated Ulysses for his self-portrait. A few years earlier, Bishop, in "Crusoe in England," had picked, for hers, a retired Robinson Crusoe nostalgic for his island days.

Both were ways of representing an essential strandedness that had its origins in childhood. Lowell was the unwanted only child of a belittling mother and a father who grew, in Lowell's eyes, "apathetic and soured." Bishop's father had died when she was eight months old. When she was five, her mother was placed permanently in a sanitarium. Bishop never saw her again, though her mother lived nearly twenty more years. Bishop was then subjected to several experiments in child rearing. She was happy in Nova Scotia with her mother's parents, but her father's parents, burghers in Worcester, Massachusetts, felt they could provide better for her. That arrangement soon failed, and she was sent to live with her aunt Maud, in Revere, Massachusetts. Maud nursed her back from the ailments she suffered in Worcester: asthma, bronchitis, eczema, symptoms of St. Vitus' dance, and allergies to practically everything in her grandparents' house. (Later, reading Proust, she discovered a voluble fellow asthma sufferer and decided wryly that she hadn't "capitalized" enough on her condition.) Aunt Maud had pet canaries and Italian neighbors with beautiful surnames that Bishop never forgot.

Poets live on two tracks: on one, life chugs along in the usual ways. On the other, art, which starts late but soon catches up, has its own landmarks and significant episodes. Interiority isn't mapped by biographical fact; that happens on the other track. And so "life" is an exceedingly difficult and unpromising subject for art. Bishop aimed for a dispassionate, even eerie objectivity, an effect that was incompatible with autobiographical writing. Lowell, the gifted parodist of persons and manners, found it comparatively easy to turn to his own person and manners, but in doing so he risked giving up the dazzling special effects of his early, Miltonic poems.

Compared with all the grand things that people have done with poems—justifying the ways of God to men, shoring fragments against their ruins, and so on—telling one's life story in more or less factual terms might seem to be a very modest goal. But Lowell was obsessed by the idea that this could be done without sacrificing poetry's ambition, its power and sweep. "Confessional" poetry—a brand inadvertently launched by Lowell's groundbreaking 1959 book, "Life Studies"—is in his practice really self-satire with the sadness left in. Bishop had a distaste for the "suffering business" of confessional poetry, but she loved "Life Studies," and thinking about why she loved it helped her define her own, very different method:



I am green with envy of your kind of assurance. I feel that I could write in as much detail about my Uncle Artie, say—but what would be the significance? Nothing at all. He became a drunkard, fought with his wife, and spent most of his time fishing . . . and was ignorant as sin. . . . Whereas all you have to do is put down the names! And the fact that it seems significant, illustrative, American, etc., gives you, I think, the confidence you display about tackling any idea or theme, seriously, in both writing and conversation. In some ways you are the luckiest poet I know!

No poet wants to hear that he is lucky, and Lowell never responded to this rather damning praise. What makes him a great poet isn't confidence about his own centrality but his yearning, brilliantly expressed throughout his work, for rest, for peace, for an integrated life. "I am tired," he wrote. "Everyone's tired of my turmoil."

"Words in Air" may be the only book of its precise kind ever published: the lifelong correspondence between two artists of equal genius. Lowell and Bishop lived various, tumultuous lives, and yet sometimes it feels as if the outside world existed primarily to be fattened up for their letters. A new sight calls for a new sentence, a night out conjures a new paragraph, a new home calls for a new letter or series of letters capturing, by a kind of demented entomology, every last scurrying detail. They were both collectors by nature. At nineteen, Lowell, a Harvard freshman, wrote of his "violent passions" for collecting: "tools; names of birds; marbles; catching butterflies, snakes, turtles etc; buying books on Napoleon." From Europe, he writes to Bishop, "We went everywhere. . . . I can't resist putting down the names." A list of thirty place names, starting with Naples and ending with Eton, follows.

Bishop, too, connects description with irrational compulsion. "I find it hard to stop when I get to describing," she writes from Brazil, where she lived for more than a decade, and where her hostess, soon to be her girlfriend, Lota de Macedo Soares, is "building an ultra modern house":



The house is unfinished and we are using oil-lamps, no floors—just cement covered with dogs' footprints. The "family" has consisted of another American girl, also a N.Y. friend of mine, 2 Polish counts for a while, the architect over week-ends etc., all a strange tri- or quadri-lingual hodgepodge that I like very much. . . . I like to cook, etc., but I'm not used to being confronted with the raw materials, all un-shelled, unblanched, un-skinned, or un-dead. Well, I can cook goat now—with wine sauce.

The letter billows onward for pages, detail upon detail, before ending with the announcement "I have a TOUCAN— named Uncle Sam in a chauvinistic outburst." When Bishop runs out of words, she draws a picture. When the occasion demands it, she switches ribbons on her typewriter and prints in red.

The result is exhilarating, consistently so, for hundreds of pages at a time. But the torrential incisiveness can also be wearying. You'd like to spend a little more time with those dogs' footprints on the cement floor, but you can't get off the treadmill of associations, from the Polish counts to the architect, from the goat to the wine sauce. This isn't writing: it's out-writing, and the spectacle of two brilliant out-writers grinding each other down over thirty years is astounding. Just when you think someone will surrender, he or she doubles down, as when Lowell antes his trip to Swarthmore against Bishop's trip to the Amazon:



What tremendous descriptions in your letter! The sick man on the amazon, the monks and nuns and Lota, the sacred heart on your bosom. I have nothing to reply with except a prosaic trip to Swarthmore. I was visiting a minute, intelligent dry poet, Daniel Hoffman, midway in a book on vegetation and other myths in Melville, Hawthorne, James, Faulkner, etc. and the American humorists, and all the way through a dry intelligent, unreadable book of vegetation myths, poems in strange ballad meters and the alliterative stanza of Sir Gawain. Exquisite Shaker and European baroque and Swarthmore stone house; nervous, charming near-sighted wife, poetry-editor for the Ladies Home Journal (ten dollars a line). . . . After their huge cocktail party, I asked them who was interesting and they said, "We are."

Who needs the Amazon when you have Swarthmore? Hoffman has gone on to have a distinguished career as a poet, but it scarcely matters: Lowell's combustible triple adjectives (minute, intelligent, dry) are the road flares that mark Hoffman's limits. "I don't know why I've stuffed this all in," Lowell concludes, "except to plaintively suggest that even here one can see the world in a grain of sand."

It must have seemed unreal to them to see one another in person. Few photographs of them together exist; the most famous ones were taken in Rio de Janeiro. In one, they wade together on a beach; in the other, they eye each other abashedly. The correspondence seems to be a counter-life richer than any lived one: how could it be made to accommodate the stubborn impediments of actual life? When Lowell's mother makes a three-month visit to him and Elizabeth Hardwick, his second wife, in Europe, Lowell writes only after they've returned, as though newly consecrating the page: "Now it's over; we have emerged triumphantly" from three months of "behaving very badly, then being very self-sacrificing," all the while "fuming inside like the burning stuffings of an overstuffed Dutch chair." When his father dies, he accelerates rapidly past the news and talks about his travel plans. When Bishop writes back, she says nothing about his father's death. When Lowell's mother dies, in 1954, in Rapallo, Italy, Lowell arrives to collect her corpse and then, as he writes to Hardwick, spends the morning "weeping & weeping" in the room with it. When he returns to America, he has a manic attack, writes a poem in Pound's style about Hitler that he then sends to Pound, and reaffirms to Hardwick that he wants to marry his Italian mistress. Again waiting until he has recovered (even though he wrote many letters when he was ill), Lowell writes to Bishop in November of that year, "I have been sick again, and somehow even with you I shrink both from mentioning and not mentioning." He goes on:



These things come on with a gruesome, vulgar, blasting surge of "enthusiasm," one becomes a kind of man-aping balloon in a parade—then you subside and eat bitter coffee-grounds of dullness, guilt etc.

The metaphors capture the illness. The manic self is an inflated "manaping balloon in a parade"—oversized, grotesque, dangerous. "Man-aping" echoes the word "mania," while the flaccid self sits in recovery, eating morning-after "coffee-grounds" of guilt. But the successful transformation of illness into metaphor is itself a sign of recovery. Lowell's recovery letters are among the most brilliant letters ever written, for the simple reason that the writing of them operates against such tragic stakes.

By the mid-fifties, Lowell's manic attacks were causing boundless damage in his life and in his relationships. While teaching in Austria in 1952, he vanished for a day and was found wandering near the German border. After that, he had to be watched by American M.P.s. At the University of Cincinnati, where he had been invited to give a series of lectures, his mien at the lectern took on a menacing aspect; the English Department had to seat a human shield of large-bodied scholars in the front row for fear that he would physically attack his audience. Because he was brilliant and sui generis and not less so when he was ill, nobody was ever able to catch him in time. Mania sharpened his intellectual aim even as it blunted his censor. He left a trail of insulted hosts everywhere, and baffled girls who thought he really was going to marry them.

In 1957, Bishop and Lota de Macedo Soares visited Lowell and Hardwick and their infant daughter, Harriet, in Maine. Lowell appears to have propositioned Bishop, suggesting that he visit her alone in Boston, New York, or Brazil. Bishop, in turn, told Hardwick. The letters that follow are grandiose on Lowell's end and strategic on Bishop's; the correspondence that had sustained so many remarkable exchanges now feels like a fraying rope over an abyss. Lowell, his mania still cresting, recasts the Maine misadventure as the unstoppering of a very old bottle. "There's one bit of the past that I would like to get off my chest," he writes:



Do you remember how at the end of that long swimming and sunning Stonington day . . . we went up to, I think, the relatively removed upper Gross house and had one of those real fried New England dinners, probably awful. And we were talking about this and that about ourselves . . . and you said rather humorously yet it was truly meant, "When you write my epitaph, you must say I was the loneliest person who ever lived." . . . I assumed that [it] would be a matter of time before I proposed and I half believed that you would accept. . . . The possible alternatives that life allows us are very few, often there must be none. . . . But asking you is the might have been for me, the one towering change, the other life that might have been had.

How should one take this letter? It is, of course, what one would say. Yet it is also beautifully and truthfully said, although, as he writes in a postscript, "too heatedly written with too many ands and so forth." Bishop responds with the name of a good analyst in Cambridge.

Reading this exchange is painful, but, oddly, it does not feel like eavesdropping. In a generally excellent introduction, Thomas Travisano, an English professor at Hartwick College, argues that Lowell's and Bishop's letters display "the apparent absence of this interest in posterity on the part of two poets famous for their obsession with craft." That's not so: even as fledglings, the two writers were the most posterity-obsessed literary creatures imaginable. No poet is obsessed with craft per se; craft is just a name for the mechanics of immortality. Travisano quotes the poet and critic Tom Paulin: "The merest suspicion that the writing is aiming beyond the addressee at posterity freezes a letter's immediacy and destroys its spirit." And yet what makes these letters so fascinating is their hawk's eye on immortality, even in the midst of lives lived fully, often sloppily. Writers like Lowell and Bishop are more human, sincere, candid—more genuine—the more ambitious they are.

The literary self-consciousness that Paulin and Travisano rule out is not just an aspect of these letters but their atmosphere and their deep subject. Lowell's "might have been" letter is, above all, a piece of writing—too heated, too many "and"s. At one point, he compares himself and Bishop to Lytton Strachey and Virginia Woolf. During this period, Hardwick writes to Bishop with news of Lowell's hospitalization, comparing the whole episode to a Russian novel. Lowell recalls Bishop's prophecy that he would write her epitaph. When, late in his life, Lowell and Hardwick were estranged (Lowell had married Caroline Blackwood and had a child, Sheridan, with her), Lowell used some of Hardwick's letters in his book "The Dolphin." Bishop dissented in these remarkable terms:



One can use one's life as material—one does, anyway—but these letters—aren't you violating a trust? IF you were given permission—IF you hadn't changed them . . . etc. But art just isn't worth that much. I keep remembering Hopkins' marvelous letter to Bridges about the idea of a "gentleman" being the highest thing ever conceived—higher than a "Christian" even, certainly than a poet. It is not being "gentle" to use personal, tragic, anguished letters that way—it's cruel.

In a letter about the misuse of letters, Bishop asks Lowell to live up to a moral standard guaranteed by an aesthetic one: be a gentleman, like Gerard Manley Hopkins. Lowell's and Bishop's letters were themselves a long, collaborative work of art, as rich in their own way and by their own standard as the poems. But Bishop seems more concerned that Lowell had changed Hardwick's letters than that he had included them. These are the objections of an author, and one who exercised an enormous level of control over her material. That Hardwick was a fellow-writer only deepened the transgression. The idea that someone would change a letter, as Lowell did in transforming Hardwick's into poems: this was a supreme violation not only of life but of art, the art of the letter.

It was Bishop, in the end, who wrote Lowell's poetic epitaph, the beautiful elegy "North Haven," which she read on the phone to Frank Bidart soon after Lowell died, in 1977. Lowell had been a chronic, sometimes hectic reviser of his work, publishing multiple versions of many poems. This habit was anathema to Bishop, who took more than twenty-five years to write her poem "The Moose." The title of their collected correspondence is taken from Lowell's late poem about that painstaking practice:



Have you seen an inchworm crawl on a leaf,
cling to the very end, revolve in air,
feeling for something to reach to something?
      Do
you still hang your words in air, ten years
unfinished, glued to your notice board,
      with gaps
or empties for the unimaginable phrase—
unerring Muse who makes the casual
      perfect?

To "err" literally means, as Lowell knew, "to wander or stray"; Bishop, the great nomad, was "unerring" in her art, utterly on the right track and on that track alone. Lowell, the greatest poet ever to be descended from the high Wasp line, never too far from Boston and New York, should have been at home in the world; and yet he was restless, almost vertiginous in his sometimes self-destructive energies. Bishop equated that dangerous energy with his life. Here are the final stanzas of "North Haven":



Years ago, you told me it was here
(in 1932?) you first "discovered girls"
and learned to sail, and learned to kiss.
You had "such fun," you said, that classic summer.
("Fun"—it always seemed to leave you at a loss. . . )


You left North Haven, anchored in its
      rock,
afloat in mystic blue . . . And now—
      you've left
for good. You can't derange, or
      re-arrange,
your poems again. (But the Sparrows
      can their song.)
The words won't change again. Sad
      friend, you cannot change.

The Complete Correspondence Between Elizabeth Bishop and Robert Lowell

 
 

The New York Times 
 
 


November 2, 2008

'I Write Entirely for You'

WORDS IN AIR

The Complete Correspondence Between Elizabeth Bishop and Robert Lowell

Edited by Thomas Travisano with Saskia Hamilton

Illustrated. 875 pp. Farrar, Straus & Giroux. $45

 

A poet should never fall in love with another poet — love is already too much like gambling on oil futures. Two poets in love must succumb to the same folie à deux as the actor and the actress, the magician and the fellow magician, because each knows already the flaws beneath the greasepaint, the pigeons hidden in top hats, all the pockmarked truth beneath illusion. Real lovers, Shakespeare long ago reminded us, have reeking breath and hair like a scouring pad.

Lovers may be permitted an exception to this ironclad rule, if they never achieve the bliss of consummation — and therefore never have to wake to the beloved's morning breath the morning after. Many would-be lovers have been divided by family, law or plain bad luck; before the days of long-distance phone calls or e-mail, the sublimated affair was conducted by postage stamp. The letters of Nietzsche and Lou Andreas-Salomé, Pirandello and Marta Abba, Gautier and Carlotta Grisi show that, though literature has always been good for love (think how many seductions may be chalked up to Shakespeare's sonnets), love was even better for literature if there was a mailbox nearby.

"Words in Air" collects the letters between Robert Lowell and Elizabeth Bishop, from a few months after they met at a dinner party in 1947 to a few weeks before his death of a heart attack 30 years later, a correspondence conducted across continents and oceans as their poetry drove them together and their lives kept them apart. As poets, Lowell and Bishop could not have been more different. His heavy-handed youthful verse, solemnly influenced by Allen Tate, laid down a metrical line like iron rail. (If Lowell's early poems seem stultified now, they were boiled in brine and preserved in a carload of salt.) Her whimsical eye and wry, worried poems condemned her to be treated like a minor disciple of Marianne Moore. Bishop for much of her life was a poet's poet, which means a poet without an audience.

Lowell and Bishop felt drawn to each other's poetry from the start. Though wary of being seduced by an alien style (Bishop, after reading one of Lowell's poems: "It took me an hour or so to get back into my own metre"), they were soon exchanging their work and, sometimes by return mail, sending back fond but exacting criticism. Lowell was a poet trying to get out of his own skin — he changed styles the way some men change socks — while Bishop was desperate to vanish into her words. (The two poets went from not being quite sure who they were to grousing mildly at what they had become.) It doesn't take a Viennese doctor to suggest that the artist's relation to art reveals something about childhood — Lowell's ­poems were often an act of vengeance upon his parents, while Bishop's concealed her anguish over a childhood best forgotten (she described herself as "naturally born guilty").

Poetry can be a surprisingly lonely art — you end up wishing that Emily Dickinson had discovered someone livelier than Colonel Higginson, someone who showed a little more rapport. It's so rare for a writer to find the perfect sympathetic intelligence, we think sadly of Melville and Hawthorne, Coleridge and Wordsworth, whose hothouse friendships came to grief, in part because of the fatal attunement of their imaginations — not all harmonies survive the wear and tear of character. Bishop and Lowell passed almost immediately from awkward introduction to rapturous intimacy. Though they were delighted by that most valuable specie of literary life, gossip, it was soon apparent what necessary company these brittle, gifted intelligences were.

Their surviving 459 letters, some surprisingly long (Bishop might elaborate hers over weeks, at times swearing she had written Lowell in her imagination), give us the closest view of these wounded creatures — his muscular, bull-in-a-china-shop intellect; her pained shyness and abject modesty, and a gaze like the gleam off a knife. She brought out the boyishness in him. They worked out in verse the terms of their fragility — its character, its allowance, its burden. It is not, not just, that their sympathies were nearly absolute (letters, however adoring, begin with an affinity of prejudices), but that each poet proved a nearly ideal audience — "I think I must write entirely for you," Lowell told her.

Sometimes falling in love is as much an act of criticism as criticism is an act of love. Before, during and after his mar­riages, Lowell took lovers, from students to a Washington socialite (his poems were charged with an intensity no earthbound lover could match). At the outset of one of his "enthusiasms," as he called his shadowy attacks of manic depression, he often fixed his attention on some starry-eyed young woman. Bishop was not starry-eyed. Lowell was so much in love with her poems, however, it must have seemed logical to fall in love with her. After a near dis­astrous visit in 1957 (their meetings, long planned and longed for, did not always go well), he wrote her that asking her to marry him was the great might-have-been of his life.

Bishop, who comes across as the more sensible and insightful of the pair, placidly ignored this revelation (she remained somewhat coquettish, from a distance); and their friendship proceeded as before — they continued to address each other as "Dearest," and once Lowell called her "Dear Heart." It is to the advantage of these letters that this love was impossible, as he must have known. Bishop was an alcoholic and a lesbian, as well as half a dozen years older. We owe the brilliance of their letters not to the love that dared not speak its name, but to the love whose name — except once — Lowell dared not speak. Eight years before he died, he wrote, "I seem to spend my life missing you!"

By 1951, Bishop had moved to Brazil, more or less by accident, or the accident of love. She fell in love during a stopover on a long freighter cruise, while being nursed through an allergic reaction to a cashew fruit. She adored the frankness of Brazilians — they took no notice of her shyness. Bishop was charmed by the exotic (perhaps one day, when she has ceased to be their darling, academic critics will accuse her of imperialist fantasies). Through coup and countercoup, through the yearly snarl of Brazilian politics, she wrote lighthearted poems that kept their darkness buried in the interior. She was always good at concealing what she felt.

Lowell became her lifeline to the literary world left behind. They discussed the books they read, their motley ill­nesses, how many poems they were writing (Lowell) or not writing (Bishop), their hopes of seeing each other (half a century ago, almost every visit was preceded by protracted negotiation by letter). If they shook their heads over the antics of Richard Eberhart or the later poems of Marianne Moore, we're amused, because we shake our own heads over Eberhart and the later poems of Marianne Moore. Their peers — John Berryman, Randall Jarrell, Theodore Roethke, Delmore Schwartz — were not exactly dismissed, but only coolly embraced (Bishop and Lowell admired Jarrell, but were not so fond of his poems). Younger poets, if mentioned at all, were mentioned for their faults.

Yet in this avid chatter there is nothing like braggadocio, nothing as bold as Keats's quiet remark to his brother, "I think I shall be among the English Poets after my death." At one point Bishop says, more in sorrow than in pride, "I feel profoundly bored with all the contemporary poetry except yours, — and mine that I haven't written yet." Their mutual praise is as affecting as the way they would shyly enclose some stray poem like "The Armadillo" or "Skunk Hour," described as trifling and now an indispensable citizen of our anthologies.

Their admiration even made them light fingered — they borrowed ideas or images the way a neighbor might steal a cup of sugar. Lowell was especially tempted by this lure of the forbidden, using one of Bishop's dreams in a heartbreaking poem about their might-have-been affair, or rewriting in verse one of her short stories. They were literary friends in all the usual ways, providing practical advice (the forever dithery and procrastinating Bishop proved surprisingly pragmatic), trading blurbs, logrolling as shamelessly as pork-bellied senators (Lowell was adept at dropping the quiet word on her behalf). There was a refined lack of jealousy between them — that particular vice never found purchase, though in letters to friends they could afford the occasional peevish remark about each other. The only time Bishop took exception to Lowell's poems was when, in "The Dolphin" (1973), he incorporated angry letters from his ex-wife Elizabeth Hardwick — "Art just isn't worth that much," Bishop exclaimed. She flinched when poets revealed in their poems too much of themselves, once claiming that she wished she "could start writing poetry all over again on another planet."

These poets, in short, inspired each other. Lowell always seems to be stuffing her newest poem into his billfold, so he can take it out later like a hundred-dollar bill. Bishop saw immediately how strange and even shocking "Life Studies" (1959) was (its confessional style caused as violent an earthquake in American poetry as "The Waste Land"); but he noticed something more subtle, that she rarely repeated herself. Each time she wrote, it was as if she were reinventing what she did with words, while he tended to repeat his forms until he had driven them into the ground, or driven everyone crazy with them. Bishop was loyal enough to admire, or pretend to, even Lowell's mediocre poems.

If Lowell and Bishop often seem to love no poems more than each other's, as critics perhaps they were right. A hundred years from now, they may prove the 20th century's Whitman and Dickinson, an odd couple whose poems look quizzically at each other, half in understanding, half in consternation, each poet the counter-psyche of the other. Their poems are as different as gravy from groundhogs, their letters so alike — so delightfully in concord — the reader at times can't guess the author without glancing at the salutation.

These lives were marked by terrible sadness. Bishop's Brazilian lover committed suicide; the poet continued drinking until she started falling down and injuring herself. Lowell's degrading seizures of manic depression, during which he often behaved contemptibly, left him in a permanent state of semi-apology. His three marriages, each time to a novelist, ended badly. Though sometimes blocked or depressed, as a poet Lowell would suddenly bull his way forward; Bishop, timid as a turtle, often terribly lonely, slowly produced small masterpieces, finishing only one or two poems a year (she said, "I've always felt that I've written poetry more by not writing it"). The interstices of their lives were remade as art; but that is not enough, if you have to live the life afterward. Even in their 40s, they sound worn out.

The pleasures of this remarkable correspondence lie in the untiring way these poets entertained each other with the comic inadequacies of the world. Letters offer the biographical hour — though in some phrase you may see the germ of a poem, you possess all the brilliant phrases that didn't make their way into poems, whether it's Lowell saying that he, his wife and his mother were all "fuming inside like the burning stuffings of an overstuffed Dutch chair" or Bishop describing the baptism of some babies: "The god-parents holding them shook them up & down just like cocktail shakers." Their remarks about writing have, in his case, a self-amused detachment ("I like being off the high stilts of meter"); in hers, deadpan modesty ("I have only two poetic spigots, marked H & C"). He: "Psycho-therapy is rather amazing — something like stirring up the bottom of an aquarium." She: "I bought a small wood Benedito, the crudest kind of whittling and painting. . . . He's holding out the baby, who is stuck on a small nail, exactly like an hors d'oeuvres." In her mid-30s, Bishop, who called herself a "poet by default," had not read Chaucer; in his late 40s, Lowell had to look up the words gesso, echolalia and roadstead.

Admittedly, in this concrete block of a volume there are long stretches of nattering, antique gossip, ideas that come to nothing (Bishop habitually started things she could never finish). The late letters often confine themselves to worries over age, money and dentistry. As the poets grow older, there come the premature revelations of death: Dylan Thomas, then Roethke, Jarrell, Schwartz, Berryman — many of their generation died too young. Comically, Lowell and Bishop more or less adopt the younger poet Frank Bidart, who catered to Lowell during his endless revisions (or perhaps encouraged his manic over-revision — "spoiling by polishing," Lowell called it) and proved Johnny-on-the-spot after Bishop moved to Boston. If at times the poets treated him as a mere factotum, Bidart served as the surrogate son they could gossip about and fuss over.

The editing of this immense volume is so genially meticulous, it reveals that Robert Giroux's selection of Bishop's correspondence in "One Art" (1994) grossly altered her punctuation. Nonetheless, "Words in Air" is marred by a raft of typos and a sketchy, inadequate glossary of names. The editors confidently announce that the poets' spelling has been corrected — all a reader can say is, would that they had corrected more of it.

This long, leisurely correspondence seems now of another world, a fading reminder of the golden age of letter writing. For some two decades, Bishop and Lowell have divided postwar American poetry between them, a shared dominion the more remarkable because their manners, their styles and their philosophies of imagination are so different. Though Bishop was not always highly rated in a generation of poets given to Sturm und Drang, she was worshiped by Lowell; and his is the taste we share now. Their devotion was crucial to their literary life, perhaps more than any of their love affairs. These star-crossed lovers found the muse in each other.

William Logan is a poet and critic whose most recent books are "The Whispering Gallery" and "The Undiscovered Country."

 

Courtesy of Vassar College Library

Robert Lowell and Elizabeth Bishop in Brazil, 1962.

01 nov 2008

Alencar, o escravista


 
Alencar, o escravista

Cartas do autor a d. Pedro 2º, nas quais defendia o cativeiro no país, são pela 1ª vez publicadas em livro, 140 anos depois
Folha de SP

08 out 2008

Reprodução

Quadro "Loja de Rapé", aquarela inacabada em que o pintor Jean-Baptiste Debret retrata escravos urbanos no Brasil do século 19

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito."
Quem vinha a público, em 1867, desejoso de ser ouvido na defesa do cativeiro no país era o romancista José de Alencar (1829-1877). A memória histórica no Brasil, no entanto, silenciaria seus argumentos no século seguinte.
A frase aparece numa das sete cartas públicas em que, naquele ano, o autor de "Iracema" criticou o imperador d. Pedro 2º por propor que o país começasse a pôr fim gradual à escravidão. Só agora, 140 anos depois, elas ganham uma edição em livro, "Cartas a Favor da Escravidão" (ed. Hedra), que chega nesta semana às livrarias.
Embora diversos pesquisadores tivessem conhecimento de sua existência -que era citada em alguns trabalhos- e das posições políticas de Alencar, o conteúdo das cartas não chegou a ser reimpresso. O conjunto não aparece, por exemplo, nas obras completas do autor romântico, organizadas em 1959 pela editora José Aguilar (hoje Nova Aguilar).
No final dos anos 90, a historiadora Silvia Cristina Martins de Souza encontrou as cartas na Biblioteca Nacional, no Rio.
Republicou parte delas numa revista especializada da Unicamp. "Elas não haviam sido reproduzidas no século 20", diz a pesquisadora, que atribui o "esquecimento" do material ao "desconhecimento e desinteresse" sobre a obra de Alencar.
O organizador do livro que vem agora a público, Tâmis Parron, tem opinião diferente.
Ele escreve na introdução aos textos de Alencar que se trata de uma "provável tentativa de expurgar sua memória artística de uma posição moralmente insustentável para os padrões culturais hegemônicos desde o final do século 19".
"É um expurgo? Pode ser. É provável, mas não tenho acesso a documentos que provem essa hipótese", disse o historiador, em entrevista à Folha.
Procurada, a Nova Aguilar não respondeu aos questionamentos sobre a lacuna e sobre a possibilidade de inclusão das cartas em edições futuras (a última, esgotada, saiu em 1965).
As "Novas Cartas Políticas de Erasmo", como foram denominadas, numa referência ao pensador holandês, apareceram num momento de crise internacional da escravidão. Com o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865) e da servidão nos EUA, aumentaram as pressões internacionais para que o Brasil, como último país independente da América a mantê-la, pusesse fim à instituição.
No princípio de 1867, o imperador pede que seu gabinete encaminhe ao Legislativo uma proposta de discussão que resulte num prazo para o fim da escravidão.

Instituição necessária
É em reação a essa movimentação de d. Pedro que Alencar argumenta, em suas cartas, contra a extinção por lei de uma instituição que, para ele, deveria acabar como resultado de um processo "natural" de maturação -processo que na Europa, ele diz, levou séculos.
O escritor e político -falava como integrante do Partido Conservador- reconhece que a escravidão já se apresentava "sob um aspecto repugnante", mas completava que "ainda mesmo extintas e derrogadas, as instituições dos povos são coisa santa, digna de toda veneração". "Nenhum utopista, seja ele um gênio, tem o direito de profaná-las. A razão social condena uma tal impiedade." As "razões sociais" do cativeiro no Brasil eram muitas, segundo o autor. Em primeiro lugar, de ordem econômica, já que era pelo trabalho escravo que se mantinha a produtividade das unidades agro-exportadoras do século 19. Depois, política, já que era daí que o Estado tirava recursos para existir.
Mas também "social", já que, segundo Alencar, a instituição no Brasil trazia a promessa de inserção, como cidadão (ainda que parcial), do escravo alforriado e de seus filhos.
Finalmente, num raciocínio pouco usual na época, Alencar, de certa forma prefigurando Gilberto Freyre, autor de "Casa Grande & Senzala", afirmava que a escravidão permitia a existência de uma cultura original no Brasil, fruto da "miscigenação" de costumes entre "brasileiros" e negros africanos.


CARTAS A FAVOR DA ESCRAVIDÃO
Autor: José de Alencar
Organizador: Tâmis Parron
Editora: Hedra
Quanto: preço a definir (160 págs.)



 
 
 
 
Análise/livro/"Cartas a Favor da Escravidão"

Esforço letrado de Alencar é chocante

Textos publicados revelam um escritor admirável e ao mesmo tempo execrável, que faz pensar nos novos senhores do Brasil

TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem ler as "Cartas a Favor da Escravidão", de José de Alencar, que a editora Hedra publica após 140 anos de sua primeira aparição, deve se espantar. De fato, o livro tende para o inacreditável.
Há muito que circula a percepção em círculos progressistas de que as elites nacionais poderiam funcionar por princípios pré-modernos em plena modernidade, diante dos quais o horizonte real de desenvolvimento social do país não é um móvel histórico forte.
A vida ideológica estável de nossa época nos impede de checarmos as concepções de mundo do poder e seu controle do corpo e destino no mundo do trabalho. Em um tempo em que todo poder emana do capital, e a crítica da violência no espaço do trabalho está vedada por princípio, apesar da virtual escravidão, a verdade é que a violência contra o trabalho continua aí, presente, configurando amplos setores da economia. No entanto, tais novos senhores do trabalho do outro estão justificados a priori.
Afinal, imensas empresas, como as grandes marcas esportivas ocidentais, não exploram também ao extremo o trabalho, até mesmo o infantil, no sudoeste asiático, ao mesmo tempo em que terceirizam as responsabilidades, como se nada tivessem a ver com essa ordem de iniqüidades, mesmo quando ganham tudo com ela?

Clareza e astúcia
Em uma certa passagem de nossa modernidade, José de Alencar se pôs a defender, com seu estilo transparente e elegante, a posição do Partido Conservador pela manutenção da escravidão no Brasil. A instituição estava abalada, pois fora abolida no império inglês (1833), nas colônias francesas (1848) e nos EUA (1863).
As pressões sobre o Brasil eram grandes, e d. Pedro 2º sinalizava, mesmo que de modo muito lento e gradual, para o horizonte de supressão do trabalho escravo. Então Alencar escreve essas peças execráveis, mas, paradoxalmente, admiráveis pela clareza e pela astúcia, sustentando a necessidade civilizatória da escravidão.
Fundado em um princípio de violência inconciliável da civilização com a natureza e com o outro humano -o bárbaro-, que seria civilizado pela força avançada que o poria como escravo, mas força que também o tornava um virtual sujeito para ele próprio, Alencar se utiliza de todos os argumentos imagináveis em seu tempo para justificar o modernamente injustificável, do risco de crise social à necessidade econômica fatalista e até mesmo um desenho de amálgama de raças pela miscigenação e pela cultura, que faria da escravidão a mãe da cultura nacional.
Hoje, o esforço letrado e frio do escritor é chocante e nos parece vazado de desfaçatez. Algo parece ter mudado no valor dos fatos e da história.
Mas o que podemos dizer dos neo-senhores, que mantêm condições de terror e ignomínia no mundo do trabalho? Se eles fossem obrigados a falar, como recentemente os neocons americanos o fizeram para justificar a ilegítima invasão no Iraque, seu sistema de razões e sofismas soaria semelhante ao do elegante e culto senhor de escravo e romancista brasileiro, como toda ordem de razão que emana da pura força.
De modo algum é acaso que este tenha sido o único trabalho publicado do autor no século 19 ausente das obras completas de 1959. Tal voz conservadora é de fato mais poderosa quando silenciosa, quando não mais necessita se justificar. Por isso o livro de Alencar é importante. Ele dá voz e configuração ao que silencia, pois não necessita justificativa, e pode apenas agir, tão sistematicamente no Brasil.


TALES AB'SÁBER é psicanalista, membro do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "O Sonhar Restaurado" (ed. 34)


Leitura e cidadania

 
 

Leitura e cidadania

JORGE WERTHEIN


No ensino, o que faz a diferença é a tecnologia. E há um caminho ainda não percebido no Brasil: a nova geração de telefone celular

O BRASIL vem reduzindo sua taxa de analfabetismo com velocidade constante nas últimas décadas. Hoje, ela é de 9% da população -16 milhões de analfabetos absolutos com 15 anos ou mais.
A pessoa que não sabe ler nem escrever se sente profundamente limitada e discriminada. Não consegue entender o jornal, não sabe pegar ônibus nem possui condições para obter um emprego. Sua auto-estima é baixa.
O Indicador de Analfabetismo Funcional informa que 67% dos brasileiros têm interesse na leitura. Mas não existem bibliotecas em cerca de 1.000 municípios dos 5.564. Em 89% deles não existem livrarias. Lê-se pouco.
O governo federal, os governos estaduais e municipais e diversas instituições da sociedade civil promovem ações para fornecer livros, informações e alcançar o brasileiro que está na ponta da linha, em alguma região menos desenvolvida. É um tremendo esforço que envolve pesada logística.
Não é fácil. Os resultados estão chegando. Poderiam ter mais velocidade. Porém, é inegável que a situação de hoje é melhor que a de ontem.
O que faz a diferença agora é a tecnologia. Os professores dispõem de recursos impensáveis anos atrás. Eles têm à disposição projetores, computadores com acesso à internet e a possibilidade de interagir com outros centros de excelência.
Em vários países, é normal ter salas de aula com até 300 alunos, que são convidados a ler antecipadamente sobre o tema que o professor vai expor.
E, posteriormente, voltam aos livros para conferir o que foi apresentado. É um ensino de massa que visa qualificar muita gente em pouco tempo.
Mas há outro caminho ainda não totalmente percebido no Brasil. A nova tecnologia dos telefones celulares -a chamada 3G. Telefone não é mais utilizado apenas para comunicação oral. Ele se presta para transmissão de dados, para ver televisão, para receber e mandar e-mails, para ouvir rádio, para ler jornais, para ver filmes.
É para essa nova tecnologia que os gestores da educação precisam olhar com atenção. Os professores devem se capacitar para usar a nova linguagem. Hoje, existem mais de 3 bilhões de telefones celulares no mundo. No Brasil, já foram comercializados 130 milhões de aparelhos. Eles cobrem mais de 80% do território nacional.
O plantador de soja no interior de Mato Grosso sabe o preço exato de seu produto nas Bolsas por intermédio do aparelho. É ele que transmite as notícias mais importantes e faz a conexão daquele remoto produtor no setentrião brasileiro com o mundo.
Esse é o novo caminho. Na internet, há de tudo. É preciso dispor das ferramentas certas e saber utilizá-las para obter o melhor resultado.
Infelizmente, os dados disponíveis nos censos elaborados pelo Ministério da Educação indicam que 50% dos professores da rede pública não têm computador. Se eles não dispõem do equipamento, não saberão ensinar o aluno a chegar à rede mundial.
O Brasil é um país de dimensões continentais, que se desenvolve apesar dos desníveis de renda entre pessoas e regiões. Algumas delas, como é comum na Amazônia, são de acesso difícil ou quase impossível via terrestre. O ideal seria ter boas escolas, inclusive profissionalizantes, em cada um dos 5.564 municípios brasileiros.
Mas, na prática, a realidade é difícil, onerosa e demorada. A cidadania decorre do processo de educação. O homem e a mulher alfabetizados conhecem seus direitos e seus deveres. Vão transmiti-los aos filhos e descendentes. Vão ajudar a escolher melhor os governantes e a julgá-los nos momentos adequados.
Isso é cidadania. Não há como falar em cidadão se não houver educação que molde o espírito e prepare o jovem para a aventura da vida adulta, com todos os seus desafios, problemas e incertezas. O Brasil cresceu aos saltos, aos ciclos, mas o seu resultado tem sido extremamente positivo.
Há um país a ser feito. E uma sociedade a ser construída por cidadãos. Seus habitantes só vão merecer a cidadania plena se cuidarem da educação com o carinho que o assunto requer e a prioridade de que necessita. Inclusão digital é um capítulo importante do processo brasileiro de levar educação de qualidade para todos.
Aqueles 9% de analfabetos deverão desaparecer em pouco tempo. O Plano de Desenvolvimento de Educação estabelece que dentro de 15 anos todas as crianças com até oito anos estarão alfabetizadas no Brasil. É possível, é viável. Restarão os analfabetos funcionais, os que sabem ler e escrever, mas não conseguem entender o texto que está diante deles. E sempre haverá espaço e caminho para evoluir na construção da cidadania.


JORGE WERTHEIN , 67, sociólogo argentino, mestre em comunicação e doutor em educação pela Universidade Stanford (EUA), é diretor-executivo da Ritla (Rede de Informação Tecnológica Latino-Americana). Foi representante da Unesco no Brasil (1997 a 2005) e assessor especial do secretário-geral da OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura).

folha de sp 30/09/2008

Stoics, cynics and the meaning of life

 

 

Stoics, cynics and the meaning of life

Its language is now barely known, and only a few of the works produced by its great writers and thinkers survive, but ancient Greece's influence surrounds us. In these extracts from her new book, Charlotte Higgins assesses the culture's legacy

Wednesday October 1 2008
 
 

Zeus once let fly two eagles from the ends of the world: one from the east and one from the west. They soared high over oceans, mountains, forests and plains, until they met at the very centre of the earth, its omphalos, or navel. On this spot, a temple to Apollo was dedicated, the home of the Delphic oracle, where those who wished for insight into their past, present or future might come to consult the god. The questioner would be led into the temple's dark heart. In the gloom, the visitor would more sense than see the Pythia - the laurel-crowned woman who acted as the sacred conduit for the god's communications. In a trance, amid the heady fumes of burning laurel and barley, she would begin her utterances: divinely inspired fragments that the priests would interpret and fashion. But as the inquirer passed under the temple colonnade, before he stepped into the inner sanctum itself, he would have seen some letters carved into the portico: gnothi seauton - "know thyself ".

This extraordinary challenge to achieve self-knowledge still rings out commandingly. It captures one of the things that is most exciting about ancient Greece: from the writings of its greatest thinkers and authors what stands out is an almost visceral need to question, to probe, to debate, to turn accepted opinion on its head - whether the subject of inquiry is the state of the human heart or the nature of justice.

The intellectual achievements of the ancient Greeks were quite simply extraordinary. They shaped the basic disciplines and genres in which we still organise thought: from poetry to drama, from philosophy to history, from natural history, medicine and ethnography to political science. We have been inexorably moulded by ancient Greece: the way we think about right and wrong, about the nature of beauty, goodness and knowledge; the way we conceive of what it is to be a mortal being amid the immensity of the universe; the way we talk about the past, and our ambiguous relationship with war; the way we discuss politics and citizenship. The tracks that lead back from our world to the Greeks' are narrow, meandering, sometimes virtually rubbed out or invisible - but they are there. What the Greeks did and said still casts light on what we say and do; by looking at the Greeks we can understand more about ourselves. The Greeks, in short, can help us answer their own challenge of "know thyself ".

The world of "ancient Greece" was certainly not confined geographically to the Greek mainland, nor was it a single entity. There were Greek settlements dotted all around the Mediterranean, from Marseilles in the west, to the coast of Asia Minor in the east. In fact, many of the most glamorous intellectuals of ancient Greece came from the coastline of what is now western Turkey. Nor is "Greece" (in Greek Hellas) a term that would necessarily have been widely understood. The Greek world was made up of hundreds of politically independent, often disputatious city-states, each with separate systems of government, locally distinct religious cults, even different calendars and names for the months of the year.

When we think of "ancient Greece", we tend to be drawn to just one of these hundreds of city-states, and at one particular time: Athens in the fifth century BC. This is perfectly understandable, as during its flowering of power between the routing of the Persians in 479 BC and its own crushing by Sparta in 404 BC, it was a magnet for writers, artists and thinkers from all over the Greek world, and the scene of the most exciting intellectual revolution that the world has ever witnessed. The Athenians have always made the most noise; and they left us an abundance of literary masterpieces, not least the great dramas of Aeschylus, Sophocles and Euripides, written for performance at the Athenian festival called the City Dionysia. Still, it is best to remember that the Athenians weren't the only Greeks, nor were they even "representative" Greeks.

So, it is worth thinking about ancient Greece because it brings us a perspective on the way we live now, from our politics to our sense of history. And reading the Greeks is also a source of unbounded enrichment and pleasure. But even more important than all this, perhaps, is the idea of "ancient Greece" not simply as a specific place or a time, but a realm where the imagination, the emotions and the intellect can roam free. We will never completely grasp ancient Greece. An enormous wealth of literature, art, architecture and other artefacts have survived but, for every survival, there are a thousand losses. We have 20 dramas by Euripides, but we know that his complete works numbered 90 plays. For Aeschylus, we have seven out of 90 extant. And for Sophocles, just seven out of 123. Works that were seen as masterpieces in antiquity are nothing but dust, ashes and the occasional quote in other texts.

For me, the writing of Plato acts as a wonderful metaphor for our relationship with ancient Greece. Plato did not write in the form of treatises; he did not propound theories, even. His philosophy is almost always written as dialogues between two or more speakers: its very form encapsulates disagreement, debate and provisional answers rather than unshakeable dogma. Incompleteness, as it were, is at its heart. In the same way, knowledge of ancient Greece is fugitive, fragile, difficult to grasp. When the mind travels to ancient Greece, it embarks on a quest - an idea CP Cavafy, the great modern Greek poet, put beautifully in his poem Ithaca, which takes the idea of Odysseus' homecoming:

When you set out for distant Ithaca,
fervently wish your journey may be long, -
full of adventures and with much to learn.

And, as we set out on that long but rewarding journey towards Ithaca, we will come closer to answering that ancient challenge: gnothi seauton

Do you speak more Greek than you think?

Spartan
As in, "Tarquin, I know the minimalist look is right up your street, but don't you think the room looks a little spartan with the actual floorboards removed?"

Simple, severe, lacking in comfort: that does in fact pretty much sum up what we know about the life of the Spartans. Despite its position as a Greek military superpower, the place had none of the kind of impressive architecture that would have overwhelmed the eye of a fifth-century visitor to Athens. Famously, Sparta also lacked walls or fortifications (it demonstrated that the inhabitants were such butch soldiers they didn't need nancy-boy walls to keep them safe). But being "Spartan" also meant adhering to a system of iron discipline, with boys taken out of their families for military training at the age of seven and, uniquely for ancient Greece, girls also given an education and athletic training - the better, presumably, to give birth to warrior sons. This was the background that produced the toughies who, vastly outnumbered, held off the Persians at Thermopylae, until all 300 were slaughtered. Dedication, bravery and suicidal bloodymindedness are thus also Spartan virtues.

Laconic
As in, "Darling, I know being a teenage boy is all about communicating in grunts, but if you could descend from your laconic monosyllables occasionally, I'd be terribly grateful."

Laconia was the region of the Peloponnese that Sparta controlled; "laconic" refers to another Spartan quality: a severe, economic, and sometimes dryly witty way with words.

Aegis
As in, "Don't worry, Henry, the animal care comes under the aegis of the National Donkey Protection League, which I am sure has impeccable standards."

Frankly, the aegis - a symbol of divine power - has always struck me as one of the weirdest things about the Greek gods. I can do no better than quote the Oxford Classical Dictionary, which describes it as an "all-round bib with scales, fringed with snakes' heads and normally decorated with the gorgoneion". (Gorgoneion being classicist-speak for the head of the Gorgon Medusa.) The aegis, the entry helpfully adds, may sometimes be tasselled. I have also heard it described as looking like a sporran.

Thespian
As in, "Brenda has marvellous talents as a thespian, you know. You should see her Lady Bracknell."

Thespis was the man who, according to Aristotle, "invented" Greek drama, adding a prologue and speech to what had previously been a choral performance.

Herculean
As in, "Cleaning the bathroom and kitchen floors, Muriel, seems to me to be a labour of Herculean proportions."

Hercules is the Romanised name of Heracles, the greatest of all heroes, and one of the few mortals to attain the status of a god. The labours, set him by Eurystheus, king of Argos, were 12 in number. Heracles had something of a problem with madness and mass murder: the labours were done to expiate the killing of his wife Megara and their children, which he committed in a bout of insanity visited on him by the goddess Hera. Another story has him killing the father and brothers of his girlfriend Iole. To purify himself, he worked for the queen of Lydia, Omphale, for three years. The twist was that he had to do this as a woman - spinning and weaving, in drag, a scene vividly depicted on a Roman well-head in the Townley Collection of Roman antiquities in the basement of the British Museum.

Tantalising
As in, "I've just caught a tantalising glimpse of Frank's homemade apricot ice cream and I can't wait to taste it."

From Tantalus, one of the very first generations of mortals. Invited by the gods to dine on Mount Olympus, he decided to kill, cook and serve up his son Pelops to see whether his hosts would detect the forbidden food (as you do). Demeter, distracted by her grief for her daughter Persephone, was the only immortal who tucked in, polishing off a shoulder. The gods reconstructed Pelops and brought him back to life, with a prosthetic shoulder made from ivory. Tantalus's eternal punishment in the Underworld was to stand in a pool that drained away when he tried to drink from it and beneath branches groaning with fruit that drew away when he reached for them. A tantalus is also a lockable stand for a set of decanters. You can see the booze, but you can't get at it without the key ...

Colossal
As in, "I'm heading for a colossal overdraft. Drinks on you, I'm afraid."

From the Colossus of Rhodes, one of the seven ancient wonders of the world. In 305 BC, Rhodes was attacked by the Macedonian Demetrius Poliorcetes and successfully saw off a year-long siege. Demetrius abandoned his siege equipment on the island, and the grateful Rhodians used the proceeds from the sale of all that to erect a 33m statue to their patron, Helios, the sun god. However, it stood for only 56 years; an earthquake in about 226 BC undermined the statue at the knee. Even in ruins it still excited visitors, such as the Roman writer Pliny, who noted that its thumb was too big for most men to be able to clasp in their arms, and that its very fingers were bigger than most ordinary statues. The Statue of Liberty is inspired by the Colossus of Rhodes.

Draconian
As in, "Miss, don't you think punishing smoking with a public flogging is a bit draconian?"

Draco, by tradition, set down the first Athenian law code in 621 or 620 BC, the first time the city's laws had been put in writing and displayed in public. Evidence is thin as to what these laws comprised: but according to tradition, it was the death penalty for pretty much everything. One Athenian in the fourth century quipped that Draco wrote his laws in blood rather than ink. "Draconian" is always a negative word in English, but you could argue that setting forth a state's laws in public for the first time was, in its way, a reforming measure ... though Draco's code was itself reformed soon enough, in 594/3 BC by Solon, who repealed everything except the law on homicide.

The boy's name Draco, for understandable reasons, has failed to take off: though it was famously pulled into service by JK Rowling for one of her most memorable baddies, the sinister Draco Malfoy. This is not surprising, given that JK studied classics and French at Exeter University and is rumoured to have based Dumbledore on the splendidly bearded Peter Wiseman, Exeter's classics professor emeritus.

Ostracise
As in, "I should think you'll be completely ostracised from the golf club, Derek, if you go anywhere near it in those trousers."

Ostracism was a method by which, through the Athenian democratic reforms introduced by Cleisthenes in 508 or 507 BC, a citizen could be exiled for 10 years after a majority vote in the assembly. The name of the chosen man was written on a shard of pottery, an ostrakon. Nearly 200 ostraka have been found in an Athenian well, with the name Themistocles written on them in a very few hands. Presumably he was at the receiving end of a carefully orchestrated campaign.

Odeon
As in "What's on at the Odeon? I quite fancy catching 300 again there. Nothing I like better than a pumped-up Spartan wearing leather knickers."

The notable cinema chain is named, ultimately, for one of the great buildings on the slopes of the Acropolis, the odeion, or music hall (and in fact, there were odeia in other Greek cities, too). The Athenian odeion was a square hall with pillars supposedly made from the masts of Persian ships taken at the battle of Salamis in the Persian wars. Men and boys' choral competitions, part of the festival called the City Dionysia, were held there, as well as previews of the main tragic plays. Popcorn was not served.

Hoi polloi
As in, "Ivy says she can't bear to go shopping on a Saturday. The town centre is just too full of hoi polloi, apparently."

Hoi polloi is Greek for "the many", meaning the ordinary people. Used with more than a soupçon of snobbery in English. To say "the hoi polloi", incidentally, is strictly speaking a gaffe, since it means "the the many" as hoi is the definite article.

Platonic
As in, "Susie's relationship with David is purely platonic, you realise."

The sort of admiring, passionate but asexual regard for young men that Socrates engaged in. Alcibiades slept one night under a cloak with Socrates, according to Plato - but, he said, it was just like sleeping with a brother or a father. Socrates just wasn't interested in going all the way. You could see this as a metaphor for his pursuit of knowledge: it's about the quest, not the consummation.

Cynical
As in, "I'm fed up with you lot being cynical grouches. Let's bring in a bit of joy, people!"

A philosophical school, or, more accurately, way of life, practised from the fourth century BC. Diogenes, who supposedly lived in a barrel, was the most famous Cynic - the word probably derives from the Greek for dog, so cynicism means "doggishness". It seems that adherents tried to live in accordance with nature, seeing animals as exemplars of anxiety-free living, and eschewing ambition, power, material possessions, even education. Diogenes once famously masturbated in the street. Our word "cynical" thus takes a bit of leap from its ancient origins.

Stoical
As in, "Martha has been tremendously stoical since her house burned down and she lost her job."

Stoicism, founded in the fourth century BC by Zeno of Citium, was an extremely significant philosophical school. Empiricism and materialism were key features; in the realm of ethics, freeing oneself from emotion and living in accordance with human nature (which for Stoics was indivisible from human reason), was of great importance. Virtue, argued Stoics, was sufficient for happiness.

Sceptical
As in, "The government claims it's going to have London ready for the 2012 Olympics, but frankly, I'm sceptical."

"Sceptic" was a label introduced in the first century BC to describe the position of philosophers who held no doctrine and suspended judgment on, well, everything. Particularly lively debates ensued with the materialist Stoics

a língua e seus dicionários...

 
PASQUALE CIPRO NETO

O babador e a moça casadoura


A língua e seus usuários são muito mais velozes do que os dicionários, que, recém- impressos, já devem algo
NA SEMANA PASSADA, trocamos dois dedos de prosa sobre o valor e o emprego dos sufixos "-eria" e "-aria". Vimos que, embora seja mais do que comum no Brasil, a forma "doceria" não aparecia no "Aurélio" antes da edição de 1999 e ainda não aparece na única edição do "Houaiss", de 2001.
O que se registrava no "Aurélio" e se registra no "Houaiss" é "doçaria".
As últimas edições do "Aurélio" dão "doceria", mas remetem o consulente a "doçaria", que, portanto, é a forma preferível para esse dicionário. A terminação "-eria" vem do francês ("-erie"), daí a "rejeição didática purista" citada pelo "Houaiss", que se refere à terminação "-aria" como canônica, ou seja, seguidora da norma.
As palavras terminadas em "-eria" talvez sejam mesmo menos comuns do que as terminadas em "-aria".
Posto isso, lembro o que me perguntaram alguns leitores depois da última coluna. Um deles queria saber se deveria trocar a velha sorveteria por uma sorvetaria. Outro estava preocupado com a possibilidade de ter de deixar de usar os serviços da lavanderia do bairro e o das bilheterias do metrô, já que não conhece nenhuma lavandaria, e no metrô não há bilhetarias. Os gaúchos e os catarinenses disseram que vão ter de fazer refeições rápidas em casa, porque as lancherias e as lancharias, abundantes nos dois Estados, vão ser todas fechadas, visto que os dicionários e o "Vocabulário Ortográfico" não registram essas formas.
Pois é, caro leitor, não sei se o ovo veio ao mundo antes do que a galinha, ou se foi a penosa que precedeu o ovo, mas, em termos da relação língua/dicionário, a ordem é clara: a língua vem antes, e o dicionário deveria registrar o que se usa hoje e também o que se usou ontem com mais freqüência do que se usa hoje.
É por essas e outras que é um tanto perigoso dizer que tal palavra não existe porque não está nos dicionários. Obviamente, a língua e seus usuários são muito mais velozes do que os dicionários, que, no exato momento em que começam a ser impressos, já estão devendo alguma coisa. Veja-se o caso de "blog" (que alguns já aportuguesaram para "blogue"). O "Houaiss" e o "Vocabulário Ortográfico" não dão (a última edição do "Aurélio", de 2004, já dá).
Somem-se à inevitável "desatualização" os eventuais cochilos, a também eventual inconsistência metodológica e as idiossincrasias desta ou daquela equipe e se chega, por exemplo, à falta de registro de "doceria", "lancheria", "lancharia" etc.
Vejamos agora outro caso interessante e talvez particular, particularíssimo. Refiro-me a uma palavra terminada em "-dor", sufixo que, como se sabe, costuma indicar o agente, o executor de um processo ("vendedor" é "aquele que vende"; "agenciador" é "aquele que agencia" etc.).
Pois bem. A palavra a que me refiro é "babador". A se levar a cabo a noção vista no parágrafo anterior sobre o sufixo "-dor", "babador" é "aquele que...". Não é, certo? Alguém já se referiu a um bebê que baba muito chamando-o de babador?
"Esse menino é um babador!" Que tal? O bebê é mesmo babão, certo?
No Brasil, "babador" acabou substituindo "babadouro", forma canônica que designa o local em que se baba, assim como o "ancoradouro" e o "atracadouro" designam, respectivamente, o local em que se ancoram e se atracam embarcações. A terminação "-douro" (ou "-doiro"), por sua vez, nem sempre indica noção de "local em que". Pode, por exemplo, indicar noção de "possibilidade de execução futura de ação" ("moça casadoura", por exemplo). É isso.

folha de sp 21 agosto 2008

O Romance Tragicõmico de Machado de Assis

O ROMANCE TRAGICÔMICO DE MACHADO DE ASSIS
Ronaldes de Melo e Souza - UFRJ

1 Texto apresentado no Colóquio de Literatura organizado pela UERJ de São Gonçalo em 2005.


A originalidade do romance machadiano no contexto da literatura nacional e internacional, eis a tese que se pretende demonstrar através da elucidação hermenêutica da estrutura conjuntiva e coesa da forma dramática e da mundividência tragicômica. A concepção machadiana do romance como drama de caracteres se comprova na encenação dos personagens, que se nos apresentam como consciências cindidas em conflitos consigo mesmas e com os outros, e na auto-dramatização do narrador, que se compraz em representar os outros eus, e não o próprio eu. A originalidade do narrador machadiano consiste em atuar como ator dramático, que assume e finge todo gênero de caracteres, desempenhando diferentes papéis, articulando uma alternância vertiginosa de perspectivas ou máscaras narrativas, modulando vários pontos de vista, sempre recusando a inflexão inercial de se imobilizar na representação doutrinária de um só papel, na adoção monológica de uma visão de mundo pretensamente normativa.
O narrador que finge múltiplas vozes ou que realiza a mimesis de várias atitudes nada tem de volúvel. Pelo contrário, cumpre a sublime função dramática de legítimo mediador dos sentidos culturalmente consentidos pelos diversos estratos sociais da comunidade histórica. Exemplo extremo e sério da representação da alteridade, o narrador singularizado como fingidor representa a disputa das ideologias em luta, e não o primado epistemológico de uma ideologia em particular. Além da mobilidade dos gestos e dos atos do narrador multiperspectivado, a originalidade do romance machadiano também se verifica na mundividência tragicômica do Satyrikon dionisíaco, que subage na urdidura poética dos dramas de Eurípides e Shakespeare. A reversa harmonia da tragédia e da comédia, poematizada por William Shakespeare sob a forma do drama e por Machado de Assis sob a forma do romance, constitui o testemunho eloqüente da perenidade do Satyrikon do deus do duplo domínio da luz e da treva, do bem e do mal, da vida e da morte. O drama encenado pelo narrador machadiano se notabiliza como tragicômico, na acepção originalíssima da mundividência dionisíaca, e não somente no sentido secundário da fusão do trágico e do cômico. A fim de demonstrar a tese proposta, necessário se torna elucidar a origem dionisíaca do drama tragicômico e a sua vigência no romance Quincas Borba .

1. A origem dionisíaca do drama tragicômico
A extraordinária amplitude artística da revolução estrutural da narrativa machadiana somente se compreende quando se nota a dramatização do narrador e dos eventos narrados. O narrador se representa dramaticamente revestido das múltiplas máscaras narrativas, que se compaginam no multiperspectivismo narrativo em perfeita consonância com o saber preconizado pela gaia ciência da ficção irônica. Os eventos narrados dramatizam a natureza reticente, contraditória e multiforme dos caracteres em conflito consigo mesmos e com os outros. O plurivocalismo do narrador desdobrado em várias personalidades e o concerto de vozes que se dialetizam na interioridade anímica dos personagens transmutam a ficção narrativa de Machado de Assis numa sinfonia de reflexões devotadas à análise do bivocalismo da consciência que se bifurca no antagonismo moral da razão e da vontade, do bem público e do interesse privado, do acerto racional e do desconcerto passional. Os personagens que atuam no universo machadiano sempre se representam tensionados pelo impacto dúbio da consciência cindida em polêmica consigo mesma, empuxada por forças simétricas e opostas. A tensão dramática, que os impulsiona e lhes singulariza o perfil psicológico, submete o contorno homogêneo e coerente da conduta delineada pela caracterologia tradicional dos compêndios éticos e poetológicos a uma desconstrução irônica.

Na deliberada oposição aos axiomas propugnados pela tradição cultural e literária, que se tornou hegemônica no decurso histórico da civilização ocidental, Machado de Assis adota uma perspectiva através dos séculos e transpõe para a forma inovadora da ficção irônica a visão tragicômica do drama dionisíaco, que celebra o duplo domínio da vida e da morte. A interpretação do mito e do culto de Dioniso, efetivada por Walter F. Otto, elucida a duplicidade do deus que os contrários não contradizem, porque ele os contêm em si mesmo (Otto, 1969). Nascido da hierogamia do imortal Zeus e da mortal Semele, Dioniso se distingue da idealidade dos deuses olímpicos porque o seu ser não se contrapõe ao não-ser, e a sua vida não subsiste, senão porque a morte existe. Ele aparece, nos mitos e ritos, como agente da expansão vital e, ao mesmo tempo, como paciente da contração mortal. Dobrando e desdobrando o selado segredo do ser que bem quer ocultar-se, as epifanias dionisíacas, tanto as teriomórficas (Zagreus), quanto as fitomórficas (Dendrites), dramatizam a tensão harmônica do movente conúbio do superno celestial e do inferno terrestre. Divino guardião da reversa harmonia da euforia luminosa e da disforia trevosa, Dioniso se manifesta como portador da fulgurante presencialização olímpica e da ofuscante ausencialização tartárica.
Na hierofania do êxtase dionisíaco, cantado e dançado no ritmo ditirâmbico, a patência teofânica do ser e a latência teocríptica do não-ser mutuamente se implicam. Renascendo do sacríficio de sua vida para sempre recomeçada, Dioniso se cultua como
senhor dos vivos e dos mortos. A sacrossanta essência do seu nascimento se consuma na consagração do seu falecimento. No desvelamento da matriz abissal da sacralidade subterrânea, a verdade paradoxal da religiosidade báquica se condensa na enunciação de que viver é não cessar de morrer. Em confronto com a idealidade consignada nos axiomas da conduta disciplinada, o ditame dionisíaco confuta a pretensão hegemônica do simbolismo apolíneo, que se expressa no vitalismo antropocêntrico do povo grego. Dioniso, que se anuncia como deus destruidor do homem puramente humano, demasiado humano (Dionysos anthroporraistes ), submete a uma descontrução irônica a simbólica antropoplástica da cultura grega, que se tornou normativa no decurso histórico da civilização ocidental. No fulgor sombrio do complexo ritual do perséquito das mênades, o alarido passional e o silêncio glacial se complementam como expressões polares do louvor e do terror provocados pelo aparecimento súbito e pelo desaparecimento repentino da divindade que prodigaliza o desenvolvimento da vitalidade e o envolvimento da mortalidade.
Justamente porque não alegoriza nenhum ente dissimulado ou oculto numa suposta idealidade substancial, precisamente porque tautegoriza a realidade processual e diluvial da essência inebriada de ausência é que a máscara se impõe como símbolo da teofania dionisíaca (Otto, 1969, 81-6). Sem avesso nem fundo, porque nada contém dentro de si, a máscara simboliza a manifestação do que é simultaneamente presente e ausente. Na religação da sobriedade cósmica e ebriedade caótica, em que o luciforme universo divino e o cruciforme destino se congregam na concórdia discordante ou na discórdia concordante, a máscara dionisíaca assinala a eurritmia do mundo que devém e revém no eterno retorno da fascinante essencialização e da excruciante nadificação. Símbolo epifânico do plexo da vida e da morte ou do nexo do ser e do nada, a máscara divina constitui a sagrada cifra em que se decifra o enigmático fragmento heraclítico, segundo o qual Dionysos e Hades são um e o mesmo deus.
A fim de confirmar que a mascarada do narrador machadiano se fundamenta na mundividência dionisíaca, convém remontar ao período arcaico da cultura grega, em que se representava o drama tragicômico em homenagem ao deus do duplo domínio da tristeza e da alegria, do rapto trágico da morte e do impulso festivo da vida, do funesto canto da tragédia e do riso cordial da comédia. A separação aristotélica dos gêneros da poesia trágica e cômica, que se impôs à tradição literária ainda dominante, corresponde ao desígnio histórico da época clássica da Grécia, que se caracteriza pelo primado da análise e da classificação filosófica em oposição ao conhecimento preconizado pelos poetas e pensadores antigos, que poematizam a unidade dual dos contrários que se complementam na intimidade ambivalente da natureza que bem quer ocultar-se e no duplo domínio divino do vivo e do morto. A representação do drama mesclado de alegria e dor da tragicomédia constitui a única forma artística que se compatibiliza com
a reversa harmonia da arte dionisíaca. A forma tragicômica da poesia do som e da palavra remonta ao Satyrikon, que não se perdeu no passado imemorial, mas se conserva como princípio de construção de várias obras da literatura ocidental. Os textos teatrais de Eurípides na antigüidade e de Shakespeare no alvorecer da modernidade são testemunhos inequívocos do vigor criativo da mundividência tragicômica.
Na parte final do Banquete de Platão, Sócrates tenta convencer Aristófanes e Ágaton de que o homem que sabe compor tragédias deve também saber compor comédias. A convicção socrática de que aquele que tem a arte de poeta cômico tem igualmente a arte de poeta trágico (Symposium, 223 D) supõe uma fase anterior à separação dos gêneros da comédia e da tragédia. A existência de um gênero poético originariamente tragicômico como fonte comum da arte dos comediógrafos e dos tragediógrafos não se atesta apenas na alusão de Sócrates, mas também no capítulo quarto da Poética de Aristóteles, em que se afirma que, na linha evolutiva do ditirambo ao gênero solene e austero da tragédia, interpõe-se o Satyrikon, que é a forma poética de estilo sério-jocoso da tragédia vinculada originariamente ao mito e ao culto dionisíaco. Quintino Cataudella, no estudo sobre a referência aristotélica ao Satyrikon, argumenta a tese de que a antinomia da comédia e da tragédia constitui uma negação injustificável da religião do deus do duplo domínio da ebriedade vital e do rapto mortal (Cataudella, 1965).
O helenista Cataudella observa que o termoSatyrikon, utilizado por Aristóteles, pode ser entendido em duas acepções, uma literal, que designa as composições destinadas aos coros de sátiros, que se assemelham embrionariamente aos dramas satíricos dos tempos ulteriores, e outra figurada, que se refere ao gênero poético sui generis, que contém na sua unidade dual a consonância dissonante ou a dissonância consonante do cômico e do trágico. Muito aquém da separação da comédia e da tragédia, o neutro Satyrikon define a forma originária da poesia tragicômica. A definição aristotélica da satyrike poíesis concebe o Satyrikon como uma forma poética primeva, que se distingue da representação ritualística do drama protagonizado pelos sátiros e do drama satírico propriamente dito. (Cataudella, 1965, 164). Nascida do ditirambo entoado em louvor do deus do duplo domínio da vida e da morte, da alegria e da dor, do entusiasmo triunfante e do lamento fúnebre, a forma poética do Satyrikon constitui a fonte criadora dos autores que poetizam a tensão harmônica dos extremos contrapolares.
O estatuto tragicômico da forma poética do Satyrikon assegura a coesão dramática das Bacantes de Eurípides. A peça considerada pela maioria dos críticos como a mais trágica das tragédias euripidianas dramatiza um argumento genuinamente dionisíaco. No terceiro episódio (vv. 576-861), o deus Dioniso, invocado pelos figurantes do coro, comparece in persona no palco dos eventos, dirige-se aos fiéis e lhes alivia a aflição com o relato em que explica os eventos ocorridos no interior do palácio. Cataudella
enfatiza que a forma métrica adotada na enunciação da fala do deus, precedida e acompanhada pelo comentário do coro, é a do tetrâmetro trocaico, que Aristóteles julga ser o metro próprio do Satyrikon (Cataudella, 1965, 171). Cantarella sublinha, em dois estudos complementares, que a natureza dual, desmesurada e contraditória de Dioniso requer a interação poética do trágico e do cômico como a forma capaz de se harmonizar com a duplicidade do deus que contém os contrários no seu próprio ser (Cantarella, 1971 e 1974). Seidensticker demonstra, no ensaio e no livro dedicados à exegese dos elementos cômicos na tragédia grega, que a comicidade e a tragicidade mutuamente se correspondem, tanto na cena ridícula de Tirésias e Cadmo, quanto na terrível cena do ludíbrio com que Dioniso induz a morte de Penteu (Seidensticker, 1978, 303-320 e 1982, 115-129). No início do primeiro episódio, os dois velhos, Tirésias e Cadmo, se revestem das insígnias do deus Dioniso e se apresentam empunhando o tirso, cingindo a nébrida e com a hera lhes coroando a fronte. O efeito tragicômico dos velhos revestidos de bacantes resulta do contraste entre a fraqueza física, que se nota nos passos trôpegos, e o entusiasmo contagiante das Mênades, emblematizado nas insígnias dionisíacas
No quarto episódio (vv. 912-976), Dioniso promete a Penteu satisfazer-lhe o desejo de contemplar as bacantes acampadas na montanha desde que o rei consinta em disfarçar-se de mulher. O deus justifica a necessidade do disfarce, alegando que as mênades matam os homens que ousam espioná-las. Para assistir ao que lhe parece ser uma bacanal de mulheres ébrias, Penteu cinge o corpo com um peplo de linho, ataviando-se com mitra na fronte, pele de corço e longa cabeleira. A cena do rei travestido de mênade atinge a culminância de uma bufoneria, sobretudo porque a guerra santa de Penteu tem por objetivo aniquilar o menadismo. No entanto, o efeito cômico não se dissocia do trágico. Eudoro de Sousa observa que o sinistro humor da disposição resoluta com que Penteu se dirige a Dioniso e se declara pronto para envergar a vestimenta feminina se condensa na ambigüidade do verso 934: "Pronto! Enfeita-me tu, em tuas mãos estou!":
"(...) no original, 'anakeímesthai soí' tanto pode significar 'estou nas tuas mãos', como 'estou consagrado a ti', ou, com os olhos postos na seqüência do mito, 'sou a vítima destinada ao sacrifício', que hão de celebrar para gáudio teu'"(Sousa, 1974, 106).
Dodds surpreende, no estatuto calculado da arte euripidiana, a simetria irônica que se estabelece entre os episódios segundo, em que Penteu aprecia com desdém o traje de Dioniso, e o quarto, em que Dioniso zomba de Penteu travestido de mênade (Dodds, 1960, 192). A ironia dramática encalça os passos do rei em marcha rumo ao Citeron, onde lhe aguarda, malgrado a indumentária, a morte por decapitação e despedaçamento nas mãos das sacerdotisas do ritual sangrento de Dioniso Zagreus. O fulgor sombrio da cena em que Ágave, a mãe de Penteu, toma em suas mãos a cabeça do filho e a espeta na ponta do tirso suscita compaixão e terror, que são as emoções trágicas por
excelência, mas, ao mesmo tempo, efetiva a reversão irônica do perseguidor de Dioniso em vítima dionisíaca. No enlace tragicômico das cenas do travestimento e do desfecho horrível de Penteu despedaçado pelas furiosas mênades, Eurípides provoca no espectador ou leitor as comoções indissociáveis do riso da comédia e do lamento fúnebre da catástrofe trágica. A mistura indissolúvel do trágico e do cômico, que articula a forma dramática das Bacantes, isomorficamente se relaciona com a ambivalência do mito e do culto dionisíaco.
A vigência poética do Satyrikon como drama tragicômico atua como força plasmadora das peças de Shakespeare, que convertem o ditame tradicional da separação dos gêneros na interpenetração dinâmica da tragédia e da comédia. Na primeira cena do ato quinto de Sonho de uma Noite de Verão (vv. 58-71), o jocoso e o trágico são evocados como fatores constitutivos de uma tragicomédia em que possível se torna a representação simultânea do ruidoso riso e das lancinantes lágrimas. Na ambivalência dramática do acordo no desacordo das emoções tensionadas na reversa harmonia dos contrários ritmados na dissonância consonante ou na consonância dissonante das disposições animicamente empuxadas em direções opostas, subage em surdina o substrato dinâmico do Satyrikon dionisíaco. Macbeth se inicia com o sinistro humor das bruxas que profetizam o destino sombrio do regicida, que repercute no motejo do falar dobrado dos oráculos que anunciam a coexistência do bom e do mau no caráter do herói e da vitória e da perda em sua luta pelo poder. O assassínio de Duncan converte o itinerário existencial de Macbeth na sombria senda de horror e sangue. O sentimento de culpa, que lhe tumultua a mente, transforma a sua vida numa errância tenebrosa, sacudida de pesadelos. A insana disputa do personagem duplicado no antagonista de si mesmo suscita aflição e terror. Contudo, na cena do porteiro, funcionalmente justaposta à cena do regicídio, a comicidade dos gestos e palavras obscenas do porteiro sonolento se consorcia com a tragicidade do ato nefando (Macbeth, II.3). A justaposição tragicômica das cenas funestas e ridículas de tragédia e bufoneria constitui o testemunho artístico de que Shakespeare é o poeta da modernidade intimizada com a antigüidade do Satyrikon.
As figuras cômicas do camponês na segunda cena do ato quinto de Antônio e Cleópatra , dos coveiros em Hamlet e do bobo em O Rei Lear são notáveis exemplos da tensão harmônica do jocoso e do sério, que singulariza o drama tragicômico de Shakespeare. Na desconcertante cena em que o camponês traz um cesto de figos e áspides para a rainha do Egito oficiar o drama ritual do suicídio, Cleópatra pergunta se a serpente a comerá, e o campônio, num tom ambíguo e reticente, responde que lhe deseja bom proveito da cobra. Na reversa harmonia da tragicomédia, o cômico parece mais cômico, e o trágico se torna mais trágico. A arte shakesperiana da unidade tragicômica dos contrários se impõe como matriz literária de vários escritores
modernos. Karl Guthke, no estudo intitulado A Tragicomédia Moderna, demonstra que Luigi Pirandello, Eugène Ionesco, Friedrich Dürrenmatt, Jack Richardson e Harold Pinter se notabilizam como autores que realizam com tamanha intensiddade a interpenetração dinâmica do cômico e do trágico em cada um de seus dramas, que o cômico parece trágico, e o trágico se revela cômico (Guthke, 1968).
O reconhecimento do drama tragicômico como forma suprema da arte constitui uma das glórias de pensadores e poetas alemães no alvorecer da modernidade. Schelling sustenta a tese de que a interação do cômico e do trágico constitui o princípio articulador da estrutura do drama moderno (Schelling, 1859, 718). Hoffmann exalta o efeito portentoso que a unidade tragicômica da obra de arte provoca no ânimo do espectador ou do leitor (Hoffmann, 1957, 100). Nas preleções vienenses de 1808, Ausgust Wilhelm Schlegel concebe o gênero mesclado da tragicomédia como expressão da natureza contraditória do homem da modernidade. De acordo com Guthke, o autor que colige e interpreta copiosa documentação relativa à moderna teoria tragicômica, as preleções de A. Schlegel se credenciam como súmulas poéticas, que alcançam notoriedade internacional através do livro De L´Allemagne, de Mme de Staèl, publicado em 1810 (Guthke, 1968, 107). Friedrich Schlegel aponta o extraordinário alcance especulativo do drama shakesperiano como exemplo consumado do interesse moderno em conciliar o comedimento do espírito e a desmesura da natureza (Guthke, 1968, 109).
A teoria francesa da tragicomédia como gênero especificamente moderno da conciliação dos contrários se encontra no prefácio que Victor Hugo escreveu em 1827 para o seu drama Cromwell. Na defesa calorosa da nova forma dramática, o poeta alega que o feio e o belo, o disforme e o gracioso, o grotesco e o sublime, o bem e o mal, a sombra e a luz coexistem como parelhas que se harmonizam com a natureza ambivalente da realidade cósmica e com o caráter dúplice do homem que congrega em si mesmo o corpo e a alma, a matéria e o espírito, o sensível e o inteligível (Hugo, 1976, 25-35). Em oposição aos valores tradicionais da arte, que confutam a duplicidade em nome da unidade abstraída da alteridade, Victor Hugo argumenta que a função da poesia moderna consiste em substituir a melodia monótona da organicidade do uno unitário pela tensão harmônica da identidade e da diferença. Na reversa harmonia, o sublime e o grotesco se atraem e mutuamente se gratificam, de modo que o sublime se torna mais sublime, e o grotesco se revela mais grotesco. No contraste e pelo contraste é que o sentido de tudo que existe se intensifica e se perfaz: "A salamandra faz sobressair a ondina; o gnomo embeleza o silfo" (Hugo, 1976, 31).
Na visão hugoana, o grotesco se define como forma embrionária da comédia, e o sublime se reporta à epopéia e à tragédia, gêneros considerados nobres, belos e solenes pela tradição historiográfica da literatura. A harmonização do sublime e do grotesco,
postulada pelo manifesto em forma de prefácio, equivale à interpenetração dinâmica da comédia e da tragédia, que se realiza magistralmente na dramaturgia shakesperiana. Poeta supremo da tragicomédia moderna, Shakespeare é, por antonomásia, "o drama que funde sob um mesmo alento o grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia" (Hugo, 1976, 37). A poesia correspondente aos tempos modernos tem por função realizar a mimesis do real que se realiza, tanto na ambivalência do homem tensionado entre o impulso espiritual e a solicitação corporal, quanto na duplicidade originária da natureza que se revela e, simultaneamente, se oculta no eterno processo da criação e da nadificação. A vida em geral, já de si, manifesta-se como ato essencialmente poético de formação e transformação das formas incessantemente renovadas. Na sintonia com a unidade da natureza que se desdobra na multiplicidade das suas criações, o poeta tragicômico se compraz na mobilidade pura, que o faz passar "da seriedade ao riso, das excitações cômicas às emoções dilacerantes" e que o singulariza como ser que contém em si mesmo os contrários, porque se nos apresenta "dotado com a alma de Corneille e a cabeça de Molière" (Hugo, 1976, 69 e 84).
A tragicomédia, concebida como forma poética que remonta ao Satyrikon, se mantém, no decurso de sua evolução histórica, como o gênero radicalmente moderno da literatura ocidental. Moderno, não no sentido cronológico de ser atual ou de estar na moda em determinada época, mas na acepção poetológica da originalidade. O estatuto tragicômico como parâmetro de avaliação estética permite compreender, numa perspectiva através dos séculos, que os poetas Eurípides e Shakespeare são contemporâneos. O argumento de que o termo tragicomédia é uma invenção tardia não se justifica por dois motivos. Primeiro, porque a forma tragicômica do Satyricon precede a separação da tragédia e da comédia. Segundo, porque o uso do termo tragicomédia, que ocorre pela primeira vez no prólogo do drama de Plauto, intitulado Anfitrião, corresponde à necessidade da invenção de uma palavra latina, que traduza com precisão a síncrise da comédia e da tragédia, contida no mito e no culto de Dioniso, o deus que que ultrapassa limites e distinções de gênero e de classe social:
"Primeiro, vou dizer aquilo que vos vim pedir; depois vou revelar o argumento desta tragédia. Por que é que franziste o sobrolho? Por ter dito que seria uma tragédia? Sou deus, de modo que, se quereis, mudo já isto; farei que de tragédia passe a comédia, e exatamente com os mesmos versos. (...) O que eu vou fazer é que seja uma peça mista, uma tragicomédia, porque me não parece adequado que tenha um tom contínuo de comédia a peça em que aparecem reis e deuses. E então, como também entra nela um escravo, farei que seja, como já disse, uma tragicomédia (tragicomoedia)" (Plauto, 1952, 8)
A conexão da tragicomoedia de Plauto e dos dramas e teorias dramáticas dos séculos XV até o XVII, estabelecida por Guthke, permite compreender a vitalidade do gênero tragicômico. As tragédias de final feliz (tragedias di lieto fin ) de Giraldi Cinthio e as variantes terminológicas das comédias tristes, do drama de prazer e dor
(Lust-und Trauerspiel ), drama comico-tragicum, drama misto, comédia trágica, drama comitrágico e drama tragicômico corroboram o interesse dramático por uma forma de arte que contenha em si mesma a interação dos contrários. A indistinção da tragédia e da comédia se comprova nos subtítulos de várias peças: comédia ou tragédia, na Infância de Cristo (1557), de Hans Sachs; comédia trágica, no Cristo Redivivo (1543), de Nicholas Grimald. No prólogo de Baptistes (1603), de Cornelius Schonaeus, afirma-se que o drama é "uma nova tragédia sacra", (sacra et nova tragicomoedia), que se notabiliza por representar "um argumento trágico" no "estilo cômico" (argumentum tragicum in oratio comica) (Guthke, 1968, 19-24). Copiosa documentação comprobatória da gênese e do desenvolvimento da tragicomédia na Alemanha, França, Itália e Inglaterra se compagina nos livros de Karl S. Guthke (1961), T. Herrick Marvin (1955), Cyrus Hoy (1964), Henry Lancaster (1907), Frank Ristine (1910), e J. Styan (1962).
Os dramas que representam a divergência convergente ou a convergência divergente do trágico e do cômico suscitam emoções discordantes e complementares. Alegria e dor, o jocoso e o sério, o risível e o terrível simultaneamente se atraem e se repelem na estrutura complexa da tragicomédia. O efeito dramático da peça genuinamente tragicômica desencadeia um impacto tão dúbio, que o espectador ou leitor não sabe se ri ou chora. Convém observar que a conversão poética da oposição tradicionalmente antagônica da tragédia e da comédia na oposição complementar da antiga e nova síntese teatral da tragicomédia realiza a recuperação da mundividência dionisíaca. Na visão desdobrada do deus do duplo domínio do ser e do nada, a tragicomédia representa o drama universal da vida que não subsiste, senão porque a morte existe. O otimismo triunfante e o pessimismo resignado são igualmente refutados por pensadores e poetas educados na escola ditirâmbica do Satyrikon de Dioniso. A tragicomédia vinculada ao Satyrikon circunscreve a harmonia suprema do saber acerca do ser, porque lhe pertence a dissonância como a mais profunda forma de consonância. A gaia ciência dionisíaca ensina que a vida não cessa de morrer e que a morte não cessa de nascer. O riso e o choro são o anverso e o reverso do mundo regido pelo deus da vida e da morte.
Na história da literatura ocidental, a obra de Machado de Assis sobressai como perfeita expressão da mundividência tragicômica. A concepção da complementariedade dos contrários se comprova em todos os textos do escritor brasileiro. O ditame machadiano da conversão do raciocínio dicotômico no pensamento que se dialetiza na conciliação dos opostos transmuta os valores compendiados na inflexão inercial da mundividência monológica. Aos dezoito anos, no ensaio polêmico "Os Cegos", Machado de Assis ironiza o dualismo antagônico, que constitui o princípio articulador da tradição ontoteológica da metafísica. A separação platônica do sensível e do
inteligível, de que decorrem as oposições do corpo e da alma ou da matéria e do espírito, o jovem ensaísta a submete a uma desconstrução irônica:
"Nós não somos nem espiritualista puro, nem materialista; harmonizamos as doutrinas de ambas as escolas e seguimos assim em ecletismo com o qual nos damos às mil maravilhas" (Machado de Assis, 1965, 62).
No exercício da crítica teatral, Machado de Assis exalta a "fusão da tragédia e da comédia, operada por Shakespeare sob a forma do drama" (Machado de Assis, 1961a, 73). A separação do trágico e do cômico, canonizada por Aristóteles e reiterada ao longo dos séculos nos compêndios poetológicos, converte a tensão harmônica das duas formas dramáticas da tragicomédia na oposição pura e simples dos gêneros da tragédia e da comédia, ignorando que a forma suprema do drama se realiza na reversa harmonia do "verso valente da tragédia" e da "frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao espírito" (Idem, 146). Como cronista, reconhece que o princípio lógico do terceiro excluído, que pretende anular a contradição do saber acerca do ser, não tem validade na arte nem na vida, porque não corresponde à natureza dúplice do homem, que traz impresso na própria fisionomia o sinal de dois em um, e de um em dois:
"Que é o homem senão uma duplicata de alma e corpo? Uma duplicata de olhos, de orelhas, de braços, de pernas, de ombros. Tem, é certo, um só nariz; mas esse nariz é uma duplicata de ventas. Tem uma só boca, mas essa boca é uma duplicata de lábios.
Tudo neste mundo é duplicata" (Machado de Assis, 1961b, 209).
Educado na eurritmia dos contrários que se complementam, o cronista declara que "a monotonia de um céu pasmadamente azul" se lhe afigura reles e vulgar, porque "a vida sem peripécias, sem novidade, sem esse relâmpago do inesperado" se assemelha à pior das mortes. No mundo próprio do homem, belo e feio se irmanam, pois "o aleijão é necessário à harmonia das coisas; o monstro é o complemento da beleza". A sabedoria consiste no reconhecimento de que a tensão dos opostos perpassa a natureza ambivalente do homem e do mundo:
"Os antigos, que entendiam do riscado, casaram Vênus a Vulcano; e a lenda cristã reuniu a beleza física à fealdade moral, na pessoa do anjo réprobo" (Machado de Assis, 1961c, 43).
Na forma dramática do conto "Viver!", articulada pelo diálogo de Ahasverus e Prometeu, Machado de Assis representa o sentido tragicômico do mundo propriamente humano. O judeu errante, depois de viver milheiros de anos, sente-se enfarado da existência, mas se consola ao perceber que a espécie humana está morta e que ele é o último homem prestes a morrer. Sentado numa rocha simbolicamente situada nos confins da terra, que se lhe apresenta como exteriorização perceptível da sua alma
petrificada pelo peso do tédio, delicia-se com a idéia da morte como potência liberadora do fardo milenar da mortificação. Subitamente, ouve a voz do deus grego Prometeu, que ressoa em contraste irônico com a disposição anímica desesperada de Ahasverus. O criador dos homens surge in persona no palco do evento que se acredita final, afirmando que a vida não se encerra com a morte do último dos homens. Prometeu alega que a toda espécie que morre sucede outra espécie melhor, que exsurge para a vida. O homem responde que não se interessa por delícias póstumas e que nada lhe compensa o martírio sofrido. O deus replica que a pena celestial, que o condenou a vagar por tanto tempo, foi benévola, porque lhe permitiu conhecer o todo da vida, e não apenas a parte. Na unidade em si mesma diversa do duplo domínio dionisíaco, que se manifesta na "dança alternada da natureza" em que se albergam a origem primeira e o fim último de tudo que devém no horizonte móvel do tempo, um ponto de vista somente se legitima quando se liga a outro, que lhe é oposto:
"Os outros homens leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. Há páginas melancólicas? Há outras joviais e felizes. À convulsão trágica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandoná-lo inteiramente; é assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, não dez vezes, não mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificência da terra curando a aflição da alma, e a alegria da alma suprindo à desolação das coisas; dança alternada da natureza, que dá a mão esquerda a Jó e a direita a Sardanapalo" (Machado de Assis, 1988a, 136).
2. O drama tragicômico de Quincas Borba
No prólogo da segunda edição de Quincas Borba, Machado de Assis reafirma o parentesco entre Memórias póstumas de Brás Cubas e o romance protagonizado pelo filósofo do humanitismo. O romancista reconhece, não somente a semelhança, mas também a divergência das obras:
"Já na primeira edição se disse (capítulo IV) que o título do livro é o nome de um personagem que apareceu nas Memórias póstumas de Brás Cubas. Se lestes os dous livros, sabeis que é o único vínculo entre eles, salvo a forma, e ainda assim a forma difere no sentido de ser aqui mais compacta a narração" (Machado de Assis, 1988b, 19).
A convergência ocorre em duas seções narrativas de Quincas Borba. A primeira, no capítulo treze, refere-se à carta recebida por Rubião, em que Brás Cubas lhe comunica o falecimento de Quincas Borba. A segunda, no capítulo cento e cinqüenta e nove, descreve a reação de Sofia ao ler a carta em que Maria Benedita confessa a sua felicidade junto do marido Carlos Maria. Brás Cubas e Rubião se relacionam como discípulos de Quincas Borba. Sofia se aproxima de Brás Cubas na visão irônica do narrador, que a representa com nojo na alma e desprezo pelas mãos, provocados pela
confissão de alegria conjugal da amiga. Sob o impacto da notícia, Sofia transpõe em vida o limiar da morte, assumindo, ainda que provisoriamente, a condição existencial do defunto autor:
"Sofia meteu a alma em um caixão de cedro, encerrou o de cedro no caixão de chumbo do dia, e deixou-se estar sinceramente defunta. Não sabia que os defuntos pensam, que um enxame de noções novas vem substituir as velhas, e que eles saem criticando o mundo como os espectadores saem do teatro criticando a peça e os atores" (Machado de Assis, 1988b, 230).
No capítulo cento e doze, o narrador louva o método dos velhos livros, "em que a matéria do capítulo era posta no sumário: "De como aconteceu isto assim, e mais assim "(171). Em Quincas Borba, o procedimento metatextual da súmula exegética não se aplica às seções narrativas, mas ao título da obra. O nome do filósofo supõe a metalinguagem crítica do humanitismo. Apesar das diferenças de pessoa gramatical e da forma mais compacta ou menos livre da narração, o romance borbista se irmana com Memórias póstumas de Brás Cubas, sobretudo porque põe em ação o pensamento que se divulga no princípio de humanitas e na lei da equivalência das janelas. Ambos convergem na adoção da forma dramática de fabulação, que se caracteriza pela subordinação do texto narrativo ao metatexto do humanitismo e do bivocalismo da consciência em polêmica consigo mesma. As versões romanescas de um mesmo drama protagonizado por Brás Cubas e Quincas Borba constituem o testemunho inequívoco do estatuto calculado da arte machadiana. A invenção narrativa do defunto autor e a encenação do drama tragicômico do filósofo humanitista mutuamente se clarificam.
No capítulo sexto de Quincas Borba, o inventor do humanitismo se vale da morte da avó para expor ao discípulo Rubião o sentido do novo sistema filosófico. De acordo com a explanação borbista, a sege que atropelou e matou a sua avó confirma o princípio de humanitas. A motivação humanitista da ocorrência se traduz no argumento de que o cocheiro, compelido pela fome, fustigou as mulas para satisfazer mais prontamente o seu apetite. Aconteceu, no entanto, que encontrou um obstáculo - a avó do filósofo - e teve de derrubá-lo. Quincas Borba conclui o raciocínio, enfatizando que o acontecimento resultou de "um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. (...) Humanitas precisa comer." Ao perceber que Rubião não se conforma com a morte da pobre mulher, o filósofo lhe assegura que não há morte:
"O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum" (Machado de Assis, 1988b, 28).
Na alternância eterna da expansão e da contração, subage o princípio indestrutível de humanitas. Mundo e homem se afeiçoam e se correspondem no ritmo do devir. A forma humana e mundana de tudo que existe surge e desaparece no fluxo ininterrupto
do tempo, mas a força formativa da totalidade cosmo-antropológica perdura para sempre. A morte significa o início de uma nova vida, e não somente o fim de um determinado regime existencial. Tudo se forma e se transforma no incessante movimento de criação e nadificação. No drama cosmo-antropogônico do humanitismo, nada se perde, porque o aniquilamento de um ser propicia o surgimento de um outro. O lucro e o prejuízo são relativos. Não comprometem a economia geral da existência. De acordo com a mundividência do borbismo, que constitui uma versão tragicômica das cosmogonias e escatologias tradicionais, os valores supremos do idealismo devem ser confutados, e não cultuados. Quincas Borba contesta o primado moral da ação edificante com o argumento humanitista de que a preservação da comunidade depende da guerra, e não da paz. Para demonstrar o caráter benéfico da conduta belicosa, apresenta a Rubião o exemplo de duas tribos famintas diante de um campo de batatas, capaz de satisfazer a necessidade alimentar de uma só das sociedades tribais. O pregador do humanitismo solicita do discípulo o reconhecimento da atitude absurda dos pacifistas:
"A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas" (Machado de Assis, 1988b, 28).
Os episódios da morte da avó e da disputa das tribos famintas são ironicamente justapostos no capítulo sexto como súmulas didáticas do princípio do humanitismo. A equivalência funcional implica a similaridade dos fatos narrados. Os acontecimentos não se combinam na ordem lógica da correlação consecutiva, mas se representam como variações em torno de uma mesma lei narrativa, que se compagina no postulado filosófico de humanitas. A subordinação dos axiomas de conduta ao primado teórico do humanitismo transforma os personagens de Quincas Borba em protagonistas do processo de alienação da sociedade. O ditame de que humanitas precisa comer desencadeia a luta de todos contra todos. No mundo regido pela antrofagia social, não resta outra alternativa, senão comer ou ser comido. O alcance exegético do sistema filosófico do humanitismo não se limita à desconstrução satírica do positivismo e da doutrina naturalista, mas se distende na perspectiva mais ampla da representação dos atos regulados pela trama das relações humanas no regime social da exploração generalizada. A ironia suprema do romance machadiano reside na elaboração de uma teoria atribuída a um filósofo louco, mas que corresponde ao comportamento alienado de homens socialmente considerados normais. Na visão criticamente armada de Antonio Candido, o humanitismo representa a alienação da sociedade, de que decorre a reificação da personalidade:
"Os críticos, sobretudo Barreto Filho, que melhor estudou o caso, interpretam o Humanitismo como sátira ao positivismo e em geral ao naturalismo filosófico do século XIX, principalmente sob o aspecto da teoria darwiniana da luta pela vida com sobrevivência do mais apto. Mas além disso é notória uma conotação mais ampla, que transcende a sátira e vê o homem como um ser devorador em cuja dinâmica a sobrevivência do mais forte é um episódio e um caso particular. Essa devoração geral e surda tende a transformar o homem em instrumento do homem, e sob este aspecto a obra de Machado se articula, muito mais do que poderia parecer à primeira vista, com os conceitos de alienação e decorrente reificação da personalidade, dominantes no pensamento e na crítica marxista de nossos dias, e já ilustrados pela obra dos grandes realistas, homens tão diferentes dele quanto Balzac e Zola" (Candido, 1970, 28-9).
O relacionamento entre o mestre e o discípulo sintetiza o intercâmbio do vencedor e do vencido no sistema do humanitismo. Quincas Borba submete Rubião ao regime da nova filosofia e o convence a adotá-la como regra de conduta para bem viver. O discípulo assimila a doutrina do poder e suplanta o mestre. A reversibilidade das situações simultaneamente equivalentes e opostas determina o mecanismo estrutural do enredo de Quincas Borba. A análise das seqüências do romance, efetivada por Teresa Pires Vara, permite concluir que a correlação reversível do filósofo e do aprendiz de humanitismo constitui a matriz narrativa do drama representado:
"(...) o esquema elementar que caracteriza a narrativa-padrão se desdobra em duas seqüências equivalentes e complementares, caracterizando, por um lado, as relações degradadas entre Palha, Sofia e Rubião no processo de exploração do capitalista; por outro lado, define as relações entre Camacho e Rubião, num processo equivalente que, estruturado por um sistema de encaixe, permite novo desdobramento nas seqüências seguintes. Enquanto a exploração de Palha e Sofia se desenvolve na seqüência principal (I-LXXIX), o processo de exploração de Camacho se desenvolve numa seqüência secundária (LIV-LXXIX), como variante objetiva do modelo" (Vara, 1976, 44).
Herdeiro da fortuna de Quincas Borba, Rubião se transfigura. O poder que lhe confere o dinheiro no sistema político de hierarquia e coerção da sociedade pautada pelo valor econômico descerra-lhe o amplo horizonte do sentido compendiado na fórmula vitoriosa do apólogo das batatas. Somente ao abandonar a condição subalterna de professor e assumir a posição privilegiada de capitalista é que compreende o alcance significativo do ditame de humanitas. No capítulo dezoito, o narrador ironiza a conversão humanitista do personagem que se torna capaz de decifrar o enigma das batatas ao caraterizá-la como decorrência pura e simples da substituição do ponto de vista do vencido pela visão do vencedor:
"- Ao vencedor, as batatas!
Tão simples! tão claro! (...) Ia descer de Barbacena para arrancar e comer as batatas da capital. (...)
Gostava da fórmula, achava-a engenhosa, compendiosa e eloqüente, além de verdadeira e profunda. (...)
Não a compreenderia antes do testamento; ao contrário, vimos que a achou obscura e sem explicação. Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor meio de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão" (Machado de Assis, 1988b, 42).
Na equação humanitista da vontade de potência, ser vencedor significa comer. Os vencidos são comidos. As batatas designam os objetos comestíveis, que se classificam de acordo com a voracidade dos poderosos. Endinheirado, Rubião pretende comer Sofia, que se finge disposta a satisfazer o apetite do capitalista a fim de auxiliar o marido, que deseja abocanhar o dinheiro do falso conquistador. Ávido de notoriedade, Rubião se torna sócio do jornal de Camacho com o deliberado propósito de se promover através da publicação dos atos que lhe confirmem a nobreza de caráter. Astuciosamente, Camacho absorve o investimento monetário de Rubião e se torna proprietário exclusivo da empresa jornalística. Os fatos narrados ilustram o princípio de reversibilidade, que articula a estrutura de seqüências narrativas simultaneamente opostas e equivalentes. Na primeira, Rubião persegue Sofia e consegue dominar-lhe o marido. A situação se inverte, e Rubião vem a ser dominado pelo casal. Na segunda, Rubião incialmente domina Camacho, mas ao fim aparece submetido ao domínio do jornalista.
As vicissitudes dramáticas dos personagens que intercambiam posições no sistema de dominação social obedecem ao estatuto calculado do enredo persecutório do humanitismo. Os agentes que protagonizam o drama da perseguição desencadeada pela fome de humanitas realizam um verdadeiro mimetismo da violência geral, em que o violento vem a ser violentado, e o violentado assimila o poder do violento, num rodízio permanente do perseguidor que se torna perseguido e do perseguido convertido em perseguidor. Na sociedade organizada sob o regime do impulso predatório, os seres humanos se relacionam como predadores e presas, que se revezam no círculo vicioso das violentações e agressões recíprocas. O valor monetário, na economia capitalista, aciona o dispositivo do ritual persecutório, e todos aparecem comprando ou sendo comprados. A exploração advogada pelo capitalismo constitui notável ilustração de uma fase do movimento universal da espoliação preconizada pelo humanitismo.
Na perspectiva universal da filosofia humanitista, o processo da alienação e a decorrente reificação da personalidade resultam da vocação imperial da natureza humana, e não apenas de uma de suas formas de manifestação histórica. O ideal de humanização, instaurado pelo mito genuinamente grego do homem, condiciona a subordinação da alteridade ao estatuto da identidade. Privilegiado como protótipo do sentido do mundo e dos entes intramundanos, o culto do homem se impõe como desígnio absoluto da cultura grega. Os próprios deuses são submetidos ao arbítrio humano, conforme se verifica em Hesíodo, que se nos apresenta como legislador dos nomes divinos, precisamente ao substituir a mitologia da esparsa presença dos signos hierofânicos pela organização genealógica dos agentes da diacosmese olímpica. Sub specie hominis, as potências primevas são denominadas a fim de serem dominadas. Os
poderes elementares que resistem ao pendor antropofílico dessa revolução teogônica têm de suportar o exílio de uma existência tartárica num estado plutônico-subterrâneo.
A invenção grega do mito do homem constitui o prólogo em que se anuncia o drama antropocêntrico da civilização ocidental. A forma humana dos deuses gregos, o primado figurativo da imagem do homem nas manifestações artísticas da civilização helênica, a reversão filosófica do problema cosmológico para o antropológico, que culmina em Sócrates, Platão e Aristóteles; o incontido pendor antropofílico da poesia, que se traduz na militância no humano e pelo humano, e o Estado grego, cuja essência se compreende sob o ponto de vista da formação integral do ser humano, tudo, enfim, são expressões do drama passional do culto do homem, a que corresponde a trama processual de uma cultura tão centrada no regime da auto-representação do homem, que o helenista Werner Jaeger, valendo-se de um neologismo, a caracterizou como cultura antropoplástica (Jaeger, 1966, 13). O primado grego do sentimento vital antropocêntrico instaura a tradição humanista da civilização ocidental, que se consuma na metafísica do sujeito imperialmente concentrado em si mesmo.
A filosofia moderna celebra o conúbio do ser com a consciência, e o eu humano se impõe como fundamento de tudo que existe. Em conformidade com os impulsos da subjetividade, representa-se o mundo como desdobramento da interioridade da consciência na exterioridade do universo. O horizonte do mundo humanamente concebido como unidade de uma projeção de relações sistemáticas permite tão-somente a realização do que se compagina com a força plasmadora do sujeito que se consagra ao ingente esforço da auto-representação. Como a unidade do todo condiciona todas as partes, e como cada parte significa o todo numa espécie de concentração punctual, impõe-se a conclusão de que a interioridade unitiva do sujeito imperial reproduz o universo de acordo com a sua própria pauta, não só ao aplicar-se a tudo o esquema correlativo de suas medidas pretensamente paradigmáticas, mas também ao ampliar ou diminuir a totalidade do real em consonância com a sua visão napoleônica ou liliputiana. Em toda e qualquer eventualidade, a representação sujeitiforme dissolve a ontologia da alteridade na metafísica da subjetividade, tornando disponível cada um dos entes como uma entidade concordante com o sistema hominídio em sua totalidade uniformizadora.
Ao determinar a existência do centro unificador do sentido do mundo, o homem interioriza o sentido de todas as manifestações entitativas, edificando o seu poder sobre as ruínas de um universo anterior, como nas seqüências das gerações divinas do poema teo-cosmogônico de Hesíodo. O ente em geral, projetado pelo sujeito imperial, aparece como negação projetiva da alteridade. Os atos que disponibilizam o conhecimento revelam o mundo prefigurado no mitologema grego do homem e consumado no filosofema cartesiano da subjetividade. A fulguração ofuscante do sujeito confinado no
ângulo fixo de sua mundividência estática obscurece a luz natural do mundo, porque submete o dinamismo sensível da matéria da vida ao dispositivo inteligível da estrutura a priori da subjetividade. Desintegradas pelo atomismo representacional dos esquemas de inteligibilidade do sujeito imperial, as coisas perdem a carnadura concreta e se transmutam em simulacros.
A vontade de potência da subjetividade se representa na projeção do mundo que espelha a sua constituição transcendental, traduzindo as suas valorizações, preferências e escolhas. No regime monádico do sujeito imperial, os outros eus se reduzem ao nível infra-ôntico dos objetos manipuláveis. A insana disputa de todos contra todos, que se dramatiza no romance Quincas Borba, decorre da vocação despótica do intelecto voluntarioso. O predomínio da guerra se justifica como meio de resolver os interesses em conflito. A versão romanesca do princípio de humanitas submete o sistema axiológico da tradição humanista da civilização ocidental a uma desconstrução radicalmente irônica, sobretudo porque mostra que o humanitismo constitui a essência recôndita do humanismo. Nos domínios do mundo criado à imagem e semelhança do homem, todos são perseguidores e simultaneamente perseguidos, porque vivem sob o acicate do mecanismo da perseguição de um centro de poder que somente pode ser assumido por um mandatário. Efeito teórico da constituição ontológica, e não simplesmente econômica do homem ocidental, o novo humanismo machadiano assegura que o homem não é apenas o veículo, mas também o passageiro e o cocheiro de humanitas.
O humanismo compendiado no sistema do humanitismo implica o reconhecimento da vigência histórica da lógica da perseguição ou da dialética da violência solidariamente vinculada à metafísica da subjetividade. O homem violento atua como sujeito imperial, que não reconhece a alteridade do outro. O cogito cartesiano limita-se a conjecturar a simples distinção numérica, não se dignando a considerar o diferir qualitativo do outro. Cartesianamente, viver não significa conviver, nem existir equivale a coexistir, porque o outro eu não se concebe, senão como objeto de uma inferência analógica. A filosofia inglesa extrai conseqüências imediatas dessa teoria atomizada do sujeito humano. Hobbes concebe a pulsão da subjetividade como egoísmo belicoso, que provoca a luta de todos contra todos. Diversos pensadores compartilham a concepção hobbesiana, principalmente Bentham, que a desdobra na teoria do utilitarismo. Em oposição ao egocentrismo, os moralistas advogam a simpatia como ideal comunitário da existência. Shaftesbury, Hutcheson e Hume apregoam os valores sociais da benevolência, do amor ao próximo e da justiça. O apelo à solidariedade culmina no livro intitulado Teoria dos sentimentos morais do economista Adam Smith (Laín Entralgo, 1983, 32-79).
O axioma básico da teoria moral de Adam Smith consiste em exortar o homem a comportar-se de modo a suscitar assentimento e simpatia de um espectador imparcial. O preceito do economista preludia o imperativo categórico de Kant. No capítulo quinto da segunda parte de sua obra denominada O formalismo na ética e a ética material dos valores , Max Scheler refuta a ética da simpatia propugnada pelo moralismo smithiano com o argumento de que o sentimento moral não avalia o pendor ético da própria pessoa, mas deriva-o de um espectador ou juiz imparcial. Além disso, nem todo juízo ético se exprime num sentimento de simpatia, bastando conferir o diálogo da consciência de um sujeito que avalia o sentido de sua vida, confirmando o que lhe convém e renegando o que lhe causa prejuízo. Que significa a simpatia para um homem inocente, mas socialmente considerado culpado, senão o absurdo de ter que assumir a culpabilidade, simplesmente porque todos se revelam antipáticos à sua causa? E que dizer, afinal, do sujeito destituído de consciência moral, mas que cinicamente consegue angariar a simpatia dos jurados?
Importa observar que a ética da simpatia coaduna-se com o utilitarismo preconizado por Jeremy Bentham em sua Deontologia ou A ciência da moralidade. A moral do egoísmo reforça a ética da solidariedade. Para a deontologia, o egoísmo se torna abominável somente quando se manifesta de modo absoluto, esquecendo-se de ativar a simpatia alheia. O sujeito deve ser benévolo e simpático a fim de granjear a benevolência e a simpatia dos outros. Além de se mostrar simpático, o egoísmo de Bentham se revela filantrópico. Centrada em si mesma, a subjetividade sente-se compelida ao uso de duas violências contra a alteridade do outro eu: lº) aceitando-a simpaticamente, porque corresponde aos seus interesses racionais, afetivos e volitivos; 2º) recusando-a antipaticamente, porque não se ajusta aos reclamos voluntariosos de sua disposição anímica. No sistema deontológico, a simpatia e a antipatia são comandadas pelo impulso egoísta do sujeito imperial. A invocação do humanismo e da ética da solidariedade e do amor não altera em nada a lógica da representação persecutória. Até mesmo porque a tradição milenar do humanismo constitui o fundamento da subjetividade despótica. Compreende-se, portanto, o motivo por que Machado de Assis não indica uma solução para o drama da existência submetida à trama da violência. O problema não se resolve doutrinariamente, porque depende da resolução de todos e de cada um dos seres humanos.
A representação de humanitas como princípio que configura o universo ficcional de Quincas Borba se aperfeiçoa no decurso da elaboração do romance. A versão definitiva, estampada em livro pelo editor Garnier, resultou das modificações decisivas a que foi submetida a primeira publicação no quinzenário A estação (Machado de Assis, 1969). Na revisão acurada do autor, a seqüência linear e cronológica da narrativa publicada na revista se transmuta na forma dramática da justaposição descontínua dos
eventos narrados. A trama lógica das ações se converte na propulsão dialética do drama de paixões. O efeito mais tangível da sutileza artística com que o romancista alterou a estrutura narrativa se revela na conversão dos capítulos vinte e vinte e um da primeira redação nos capítulos um e dois da versão definitiva do romance. Reordenados e estilisticamente reduzidos a duas cenas breves, os capítulos primeiro e segundo são funcionalmente justapostos como representações dramáticas do litígio de vozes na interioridade anímica de Rubião. No primeiro capítulo, o herdeiro da fortuna de Quincas Borba aparece fitando a enseada de Botafogo. O narrador ironicamente acentua que o olhar do novo capitalista avidamente se apropria do mundo circundante ao mirar as chinelas, a casa, o jardim, os morros, o ceú. Na visão do do personagem "tudo, desde as janelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade":
"- Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça..." (Machado de Assis, 1988b, 21).
A assimilação do humanitismo se traduz na supervisão geral do sujeito revestido do poder que lhe confere o dinheiro e na reflexão de que os males dos outros rendem o seu próprio bem. O romance se inicia, portanto, com o reconhecimento irônico do supra-senso da fórmula das batatas. O pobre professor, que não compreendia o sentido alegórico da luta das tribos, deixa a condição de vencido e assume a estatura do vencedor, que lhe permite decifrar o que lhe parecia enigmático. A significação obscura subitamente se clarifica, sobretudo porque a fórmula tautegoriza o seu próprio ser, e não se limita a alegorizar uma outra existência. A abstração alegórica se concretiza na dicção que simboliza a sua vitória. Além de assumir a teoria do humanitismo, Rubião adota a lei da equivalência das janelas para resolver os impasses de sua consciência, conforme se verifica no segundo capítulo:
"Que abismo que há entre o espírito e o coração! O espírito do ex-professor, vexado daquele pensamento, arrepiou caminho, buscou outro assunto, uma canoa que ia passando; o coração, porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lhe importa a canoa nem o canoeiro, que os olhos de Rubião acompanham, arregalados? Ele, coração, vai dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinha de morrer, foi bom que não casasse; podia vir um filho ou uma filha... - Bonita canoa! - Antes assim! - Como obedece bem aos remos do homem! - O certo é que eles estão no céu! " (Machado de Assis, 1988b, 21-2).
O capítulo supracitado se inicia com a enunciação exclamativa do narrador concebido como analista da natureza contraditória da existência humana. No enunciado seguinte, o narrador se comporta como encenador dos caracteres que se antagonizam na intimidade ambivalente da consciência cindida em polêmica consigo mesma. A enunciação interrogativa representa a réplica passional da voz do coração ao apelo moral do espírito racional. O restante do capítulo dramatiza o bivocalismo da
consciência tensionada entre duas interpelações opostas, uma que o aconselha a defender o interesse pessoal, e a outra que o acusa de lesar o direito alheio. Submetido ao impacto dúbio das vozes que se dialetizam, Rubião se vale da lei da equivalência das janelas, segundo a qual o melhor meio de neutralizar o remorso da consciência consiste em abrir uma janela para o outro lado da moral, precisamente o lado que advoga em causa própria. O ar fresco que lhe ventila a consciência angustiada comicamente se expressa na canoa que se move em obediência ao cálculo do homem. A catarse cômica do drama de consciência se realiza na substituição do pensamento relativo à morte da irmã e do filósofo pela astúcia diversiva da ponderação do movimento de uma simples canoa no mar.
O princípio do humanitismo, intimamente associado à lei da equivalência das janelas, preside à gênese e ao desenvolvimento dramático da estrutura narrativa de Quincas Borba. A intimidade ambivalente da consciência se desdobra no conflito intersubjetivo dos personagens submetidos ao sistema de hierarquia e coerção da sociedade. No capítulo noventa e seis, que desempenha a função de súmula exegética das ações e dos gestos motivados pela forma tirânica do comportamento social, o narrador ironiza as comoções opostas do diretor de banco. A primeira se refere ao sentimento de inferioridade que o subjuga na audiência com um ministro de Estado, que o trata com absoluto desdém. Humilhado e ressentido, o diretor se dirige à casa de Palha, que o recebe com as mesuras e os apoiados de cabeça. Imediatamente o diretor se reanima, adota o estilo superior, distanciado e desdenhoso do ministro e submete Palha a uma situação vexaminosa. No mundo regido pelo ditame de humanitas, o agredido e o agressor se revezam no interminável processo da agressão generalizada. O comportamento do diretor exemplifica a transposição da lei da equivalência das janelas para o amplo domínio do relacionamento público. Subjugar e tiranizar o outro equivale a compensar uma atitude subalterna.
A funcionalidade artística da lei da equivalência das janelas se consuma na representação do drama tragicômico de Rubião. Os primeiros sintomas da alienação do personagem transparecem nos monólogos que se alternam em sua consciência dividida. Uma voz o recrimina por desejar a mulher do Palha, e a outra o liberta do sentimento de culpa, atribuindo a Sofia a iniciativa da sedução. No capítulo vinte e sete, as vozes em litígio são demarcadas por travessões, sublinhando a cisão de uma consciência que discute consigo mesma. O fenômeno da alternação dos monólogos como expressão dramática do desdobramento da personalidade continua no capítulo quarenta cinco. Desdobrado no eu e no outro, Rubião se acusa e se defende ao sofrer o impacto dúbio do amor por Sofia e da lealdade devida ao suposto amigo Palha. Valendo-se da ironia que o caracteriza, o narrador assinala a situação difusa de Rubião:
"Confuso, incerto, ia a cuidar na lealdade que devia ao amigo, mas a consciência partia-se em duas, uma increpando a outra, explicando-se, e ambas desorientadas..." (Machado de Assis, 1988b, 75).
Os monólogos de Rubião são monodiálogos, que lhe traduzem a cisão e o desdobramento da personalidade. No acordo e desacordo consigo mesmo, o personagem se duplica e se contempla como uma outra pessoa. Ao se alienar de si mesmo e assumir a máscara do filósofo do humanitismo, Rubião chega ao limite extremo da heteromorfose, que consiste em ouvir a voz interior da consciência como se fosse a enunciação de Quincas Borba. No capítulo setenta e nove, o protagonista do drama da alienação psíquica imagina que a pergunta que lhe ressoa na mente provém do espírito de Quincas Borba, supostamente reencarnado no cachorro homônimo:
"Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sem público, diante de si mesmo" (Machado de Assis, 1988b, 129).
Na representação da heteromorfose de Rubião, que se expressa no anelo dramático de adotar a personalidade revestida do poder imperial, o narrador machadiano atinge o máximo de sua perfeição artística como encenador de dramas tragicômicos. A mascarada e a pseudomorfose do ex-professor travestido de imperador adquirem o sentido de uma peça em que se interpenetram os estilos opostos da tragégia e da farsa, do sublime e do grotesco, do patético e do ridículo. No capítulo oitenta e um, o aspirante a imperador, antes de cuidar da noiva indispensável à celebração das pretendidas bodas, imagina as pompas matrimoniais, os grandes e soberbos coches, o cocheiro fardado de ouro, os condes, cristais da Boêmia, louça da Hungria, vasos de Sèvres, etc. No capítulo subseqüente, o narrador assinala que as noivas imaginadas por Rubião constituem variações figurativas de Sofia. A justaposição dos capítulos traduz a aliança do poder político e da força erótica na inflação psíquica do personagem que confere imaginariamente a si mesmo o título de Marquês de Barbacena:
"Esses sonhos iam e vinham. Que misterioso Próspero transformava assim uma ilha banal em mascarada sublime? 'Vai, Ariel, traze aqui os teus companheiros, para que eu mostre a este jovem casal alguns feitiços da minha feitiçaria'. As palavras seriam as mesmas da comédia; a ilha é que era outra, a ilha e a mascarada. Aquela era a própria cabeça do nosso amigo; esta não se compunha de deusas nem de versos, mas de gente humana e prosa de sala. Mais rica era. Não esqueçamos que o Próspero de Shakespeare era um duque de Milão; e eis aí, talvez, por que se meteu na ilha do nosso amigo" (Machado de Assis, 1988b, 131-2).
No capítulos CXLVI-CXLVIII, o processo heteromórfico e o emascaramento se materializam através do trabalho do barbeiro que, a pedido de Rubião, lhe deitou abaixo as barbas, "deixando somente a pêra e os bigodes de Napoleão III". Com a máscara do sujeito imperial impressa no rosto, o personagem se transfigura no governador de Estado, que recepciona ministros e embaixadores. A transfusão de dois em um ou de
um em dois acarreta a alternação da própria pessoa de Rubião com o imperador dos franceses. O eu e o outro se tornam reversíveis no drama tragicômico da alienação da personalidade:
"Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais" (Machado de Assis, 1988b, 218).
A mascarada sublime e grotesca culmina no penúltimo capítulo. Abandonado pela tribo faminta dos comensais da capital, que lhe devoraram a fortuna nos comes e bebes e nos golpes financeiros, Rubião retorna à condição de exterminado. Ensandecido e sem nenhuma batata que lhe assegure a sobrevivência na sociedade dos esfomeados, volta para a cidade natal, onde acaba morrendo de inanição:
"Poucos dias depois morreu... Não morreu súbdito nem vencido. Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, - uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas. O esforço que fizera para erguer meio corpo não durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservou porventura uma expressão gloriosa.
- Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dous minutos de agonia, um trejeito horrível, e estava assinada a abdicação" (Machado de Assis, 1988b, 276).
O apólogo do campo de batatas adquire na hora da morte de Rubião um sentido que suplanta a distinção possível de dois modos discursivos, um prescritivo e outro narrativo. Se é certo que a moralidade tem por objetivo decifrar o enigma da narrativa, também é verdade que a narrativa realiza a osmose da forma e do sentido, de modo que o matiz significativo transcende o significado prefixado na súmula didática. Encalçando os passos da revolução poética a que La Fontaine submeteu a tradição literária do apólogo ou da fábula moralizante, o narrador machadiano introduz uma discreta reflexão irônica no ditame de humanitas. Ao invés de representar realisticamente a verdade, o apólogo machadiano das batatas questiona a verdade da representação. A morte do herói coroado de nada atinge a plenitude da representação tragicômica do destino humano quando se compreende que o narrador ironiza a fórmula imperial através da utilização da gíria como recurso expressional, conforme se demonstra no belo estudo de J. Mattoso Câmara Jr. sobre a gíria em Machado de Assis (Câmara Jr.,1977, 135-143).
Câmara Jr. observa que as batatas têm um sentido pejorativo na gíria brasileira. O lingüista inicialmente argumenta que "uma batata" equivale a "uma tolice", e que o adjetivo "batatal" exprime aprovação zombeteira e petulante. Acrescenta, em seguida, que a frase "Vá plantar batatas" conota desprezo e repulsa. De acordo com essa ordem de raciocínio, o sentido do apólogo evocado por Rubião no derradeiro instante de sua
vida nada tem a ver com a lei do mais forte. A expressividade da gíria consiste em desprezar o vencedor, mandando-o "às batatas". Assim é que são jogados "num refugo geral vencidos e vencedores, dissolvidos na inanidade das lutas humanas". Enfim, o intérprete da cena do coroamento de Rubião conclui que a fórmula dos exterminadores sintetiza a única vitória possível no mundo regido pelo humanitismo: "a de um pobre louco miserável e sem norte que se julga imperador dos franceses":
"E volta a frase na aposiopese com que culmina a agonia do pobre lunático:
"- Guardem a minha coroa, murmurou. Ao vencedor..."
Temos assim a gíria como uma espécie de forma interna do preceito filosófico do Quincas Borba. Externamente há o endeusamento do vencedor; e, internamente, está a irrisão da sua vitória. Ele vai às batatas num duplo sentido - material e simbólico. E é o sentido simbólico, sutilmente estruturado na base da gíria, que transfere o apólogo para um niilismo desencantado e definitivo" (Câmara Jr., 1977, 143).
A ironia do narrador singularizado como encenador do drama tragicômico de Rubião se perfaz no reconhecimento de que a lei do contraste regula o ritmo do mundo em que se exerce a experiência do homem submetido ao regime imperial da vontade de potência. No capítulo quarenta e cinco, o narrador ironicamente conclui que a mundividência tragicômica se impõe como a forma suprema do conhecimento compatível com o estatuto ambíguo e reticente da natureza humana. Na visão armada do narrador machadiano, o otimismo triunfante dos deslumbrados e o pessimismo resignado dos atrabiliários se revelam simplórios, porque não se dão conta de que a contradição se inscreve no ser do homem e do mundo. Em consonância com o princípio da reversibilidade dos contrários, que articula a estrutura do romance Quincas Borba, as almas se revezam no rodízio universal da alegria e da dor:
"E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida" (Machado de Assis, 1988b, 73).
No final do romance, o narrador sublinha que a miséria do vencido e a megalomania do imperador mutuamente se implicam, gerando o supra-senso da tragicomédia da vida que se agita na gestação incessante das compulsões do desejo de realeza. De nada vale aconselhar o comedimento da razão contra a desmesura da paixão. O impulso passional da existência suplanta os argumentos racionais. No regime imperial da vontade de potência, prevalecem as personalidades emprestadas, que preferem uma coroa de nada ao desamparo social dos exterminados pela fome de humanitas. No tom sério-jocoso que notabiliza o analista sutil dos caracteres contraditórios, o narrador reconhece que a ilusão da consciência nadifica a consciência da ilusão. Por isso mesmo, solicita do leitor de sua obra uma atitude crítica, que seja capaz de perceber que a contradição constitui
um tropo vital, e não simplesmente retórico, porque pertence ao drama tragicômico da natureza humana:
"Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens" (Machado de Assi, 1988b, 277).
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