Peter Burke: 'O passado é um país estrangeiro'
Livros como "Uma história social do conhecimento" e "O renascimento italiano" fizeram do inglês Peter Burke um dos mais respeitados historiadores contemporâneos. Conhecido por seus estudos sobre a cultura na Era Moderna, Burke é também um importante teórico da atividade historiográfica. Em obras como "A escrita da História", ele discutiu os limites e possibilidades de sua profissão, e propôs pontos de contato entre a escrita histórica e a literária. "Cada geração, vivendo com os problemas do presente, interroga o passado pensando em suas próprias questões. Por isso é importante reescrever a história a cada geração", diz ele nesta entrevista, concedida no final do ano passado durante o seminário Comunicação e História, realizado pela Escola de Comunicação da UFRJ com apoio do Globo Universidade*.
Nos anos 1990, você escreveu que já não havia um consenso a respeito do que constituía uma boa explicação histórica. Algo mudou desde então?
PETER BURKE: Se algo mudou, é que há ainda menos consenso do que antes. Em parte, eu acho, por que se você escreve para audiências diferentes, precisa dar explicações diferentes. Escrever sobre a Revolução Francesa para os franceses é diferente de falar sobre ela para os americanos. Há conjuntos distintos de coisas que podem ser dadas como já sabidas por cada grupo de leitores.
É apenas uma questão de audiências, então, ou há também uma discussão teórica por trás disso?
BURKE: Sim, claro, há a idéia de que não existe uma única explicação fixa, objetiva, para a história. Quando eu estava na escola, meu livro dizia que havia 14 causas para a Revolução Francesa. Hoje todo mundo ri quando digo isso, o que mostra que há um consenso que de que não existe um consenso. Isso não significa que não tentemos verificar as explicações, mas que você nunca para, que sempre há a possibilidade de haver mais explicações.
A Escola dos Anais foi provavelmente a corrente historiográfica mais influente do século XX. Como o senhor avalia seu legado hoje?
BURKE: É difícil. Até o começo dos 1990, eu sentia que a Escola ainda tinha alguma unidade, e talvez fosse o grupo de pesquisas fazendo o trabalho histórico mais inovador no mundo. Mais e mais, no entanto, têm ganhado espaço grupos de outros lugares. Hoje, vivemos um momento mais policêntrico. A maior influência das últimas décadas talvez venha dos estudos subalternos iniciados por historiadores da Índia. Não acho que os pesquisadores da Escola dos Anais tenham deixado de inovar, mas foi um grande golpe quando o autor mais original da nova geração da Escola, Bernard Lepetit, morreu num acidente de carro há poucos anos. Hoje, há trabalho muito interessante sendo feito na sede pelos herdeiros da Escola dos Anais, mas nada que saia dos caminhos já traçados por Jacques Le Goff e Roger Chartier.
Que novas linhas de pesquisa o senhor enxerga no diálogo entre a história e as ciências naturais? Existe possibilidade de cooperação entre os historiadores, que estudam o condicionamento cultural do comportamento humano, e os neurologistas, que tentam encontrar seus princípios biológicos?
BURKE: Vai ser difícil. Os historiadores não alegam saber tudo sobre seres humanos, e claro que há espaço para a investigação neurológica, mas quanto mais se fala sobre aquilo que não muda, menos espaço existe para o estudo das mudanças, de que os historiadores se ocupam. Na minha opinião, se há uma área onde veremos mais colaboração nos próximos anos será na história do meio ambiente, porque ele só pode ser estudado interdisciplinarmente, e nesse caso a mudança é um elemento fundamental.
Em momentos de crise, como o atual, há sempre uma tentativa de se recorrer às "lições da história". Pensando na era moderna, a que o senhor tem se dedicado, saberia dizer afinal que lições são essas?
BURKE: Nada que se possa facilmente reunir num conjunto de proposições. Mas se você estuda o passado, desenvolve essa sensibilidade à diversidade humana. Ela pode ser útil para orientar nossa ação política. Um dos problemas de hoje é que a maioria dos líderes políticos não percebem o quão diversamente as pessoas pensam e se comportam. Por isso sua política externa é um desastre e, quando o país em questão é uma sociedade multicultural, sua política doméstica também.
Inversamente, de que maneira o presente nos ajuda a entender a reflexão histórica? O senhor poderia falar sobre a historicidade do trabalho do historiador?
BURKE: Nos ajuda a entender algumas coisas e impede que entendamos outras. Por isso é importante reescrever a história a cada geração. Cada geração, vivendo com os problemas do presente, interroga o passado pensando em suas próprias questões. Quando houve a grande inflação nos anos 1920, as pessoas começaram a história dos preços, quando houve ansiedade sobre explosão populacional nos anos 1950, começou a história demográfica, agora a história do meio ambiente está decolando. Mas ao mesmo tempo que usamos o presente para formular perguntas, temos que deixar o passado dar suas próprias respostas.
Até que ponto o historiador pode escapar de seu tempo?
BURKE: Eu acredito, e para alguns isso talvez seja uma heresia, que há um lugar para o anacronismo quando se escreve a história. Você tem que fazer comparações com o presente para que as pessoas entendam o passado. Tem que ficar lembrando o leitor que o passado não é como o presente, que é um país estrangeiro, mas ele precisa entender por que as pessoas agiam daquela maneira. E às vezes pode ser útil fazer um paralelo com algum movimento moderno pode ser útil. Quando era estudante, as pessoas gostavam de fazer comparações entre os calvinistas e os comunistas. Hoje, essa não é mais uma explicação muito útil. Mas o historiador escreve para o seu tempo, consciente de que uma próxima geração vai fazer seu trabalho de outra maneira.
O senhor disse uma vez que alguns procedimentos narrativas da literatura do século XX poderiam ser úteis à escrita da história, e que no entanto os historiadores em sua maioria continuavam presos a um modelo narrativo do século XIX. Como está a situação hoje?
BURKE: O movimento existe, mas é relativamente pequeno. Talvez os antropólogos estejam abertos há mais tempo do que os historiadores para a idéia de experimentos narrativos. Eu diria que vamos ver mais disso nos próximos anos. O crucial, eu acho, é que não se trata simplesmente de fazer isso porque Proust fez, mas porque nos ajuda a fazer o que desejamos fazer. O ponto de vista múltiplo, por exemplo, é absolutamente crucial. Os historiadores costumavam narrar de um ponto de vista fixo e hoje percebemos que você não pode tornar os conflitos inteligíveis a não ser que ache espaço para todas as vozes envolvidas. Por isso acho é bom que os historiadores leiam Mikhail Bakhtin e pensem sobre polifonia, diálogo, e é bom que leiam romances como "Ponto e contraponto", de Aldous Huxley, ou "O som e a fúria", de William Faulkner.
E qual a importância da Internet hoje para o trabalho do historiador?
BURKE: Ela é importante no momento principalmente para a consulta de informações. Se esqueço por exemplo quando Charles Dickens nasceu, posso consultar a data no Google, ou na Wikipedia, em vez de ir até minha estante. A Wikipedia é muito interessante, não apenas por seu volume de informação, mas também por ser uma empreitada coletiva, o que acho que é único na história das enciclopédias. Claro que isso gera problemas, porque há colaboradores que não sabem tanto de história, ou usam as fontes de modo não-crítico, ou têm fortes preconceitos - coisas que também acontecem em livros - mas num segundo momento eles estão se organizando para cuidar desses problemas. Você abre um verbete e há avisos sobre a necessidade de de rever alguns pontos do artigo, ou de fornecer referências para uma afirmação. Eles estão se tornando mais acadêmicos. Mas, enfim, a Internet hoje é útil para checar informações, pois ainda é ínfimo o percentual de fontes históricas disponíveis online. Esse é um trabalho que vai levar tempo. Eu costumava trabalhar com os arquivos italianos. Em apenas uma cidade da Itália, Veneza, há quilômetros de artigos sobre o século XVII. Quem terá tempo e dinheiro para botar isso na internet. E quanto tempo vai levar?
Qual sua próxima pesquisa?
BURKE: Tenho duas ou três idéias sobre o que fazer a seguir, mas o mais provável é que eu escreva uma continução de "História social do conhecimento". Eu terminei o livro no meio do século XVIII e depois pensei que isso era um pouco de covardia. Eu me interessei pelo tema por que vivemos numa sociedade do conhecimento, então por que parar tão longe? Estou pensando num segundo volume, em vez de Gutemberg a Diderot, da Enciclopédia à Wikipedia, algo assim.
*entrevista concedida ao GLOBO e ao Globo Universidade
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