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Fabiano Gontijo e a homossexualidade no carnaval do Rio

prosa online, 23/2/2009


Enviado por Miguel Conde

 

No carnaval, as máscaras que encobrem também revelam. A liberalidade da festa põe em cena práticas e valores nem sempre aceitos no tempo ordinário da vida cotidiana. O antropólogo Fabiano Gontijo passou anos estudando bailes e escolas de samba cariocas para entender como os rituais desse período influenciaram a constituição e circulação das identidades homossexuais no Rio de Janeiro. Frequentando ensaios, bailes e festas, realizou diversas entrevistas para pesquisar, como ele diz, o que o carnaval significa para pessoas que mantêm relações sexuais preferencialmente com pessoas do mesmo sexo. Os resultados da pesquisa estão no recém-lançado "O Rei Momo e o arco-íris" (Garamond). Por e-mail, Gontijo conversou com o blog sobre o livro.

 

 

O que se pode aprender sobre a homossexualidade no Rio estudando o carnaval carioca?

Penso que as situações ritualizadas que compõem o carnaval – como, por exemplo, os ensaios e desfiles das escolas de samba, os bailes e festas alternativas carnavalescas e as "saídas" dos blocos e bandas –, ao se desenvolverem num quadro de permissividade, contribuem de certa forma para a tomada de consciência, por parte dos indivíduos confrontados simbolicamente uns com os outros, das oposições e dos conflitos latentes da vida ordinária e, por conseguinte, ajudam a minimizá-los. Se essas situações ritualizadas forem entendidas como "dramas sociais", pode-se chegar, a meu ver, através delas, à reivindicação de integração plena e de cidadania (cultural?) pelos grupos estigmatizados, podendo-se falar então de direito à diferença e à indiferença.



O que é carnaval? Como entender esta festa que parece interromper as atividades cotidianas no Brasil a cada ano, por alguns dias, durante os quais escolas de samba competem entre si com enredos caríssimos e efêmeros, enquanto, numa licenciosidade ímpar, homens e mulheres se rendem aos prazeres da carne?

Realizei uma vasta pesquisa etnográfica ao longo da década de 1990 para corroborar a ideia de que o carnaval é ritual: observando-se o estado de êxtase que se instala, para alguns indivíduos, durante a passagem de uma banda, num desfile ou ensaio de escola de samba ou, enfim, num baile ou festa alternativa e os contrastes entre o espaço-tempo ordinário e o espaço-tempo extraordinário, acabei empreendendo um trabalho mais aprofundado sobre a vivência das homossexualidades em período de carnaval no contexto carioca. Assim, em vez de procurar o que significa para o conjunto da sociedade, o trabalho tentou mostrar o que o carnaval significa para "pessoas que mantêm relações sexuais preferencialmente com pessoas do mesmo sexo". O leitor pode estranhar essa frase descritiva, nada elegante, mas ela é absolutamente necessária para uma análise fundada no axioma anti-essencialista de que as identidades não são feitas na natureza, mas produzidas historicamente. Ela permite manter clara a distinção teórica fundamental entre desejos e práticas sexuais, por um lado, e as identidades, por outro.

Carnaval, tempo suspenso? Sim, mas tempo histórico, que corre de maneira linear e trivial e que agarra em sua passagem todos os que se encontram em seu caminho. Carnaval, espaço redimensionado? Sim, mas espaço de dimensões materiais, no qual se reproduzem as impurezas da vida cotidiana. Carnaval, rito de inversão, cuja principal inversão é a dos sexos? Talvez assim o seja para uma grande parte dos homens e das mulheres. Mas para homens que mantêm relações sexuais preferencialmente com homens, o carnaval parece ser muito mais um momento de permissividade, momento de tornar visível para o outro o que se faz em tempos ordinários longe de outros olhares. Carnaval, rito de inversão, cuja principal inversão é a da hierarquia social? Talvez assim o seja para uma grande parcela da população, um momento em que o plebeu se torna rei. Mas para homens que mantêm relações sexuais preferencialmente com homens, o carnaval parece ser muito mais um momento em que eles podem conhecer outros "mundos", romper algumas barreiras instituídas da vida ordinária, ainda que preservando uma "distância" social mínima. "O Rei Momo e o arco-íris" trata dessas questões.



Historicamente, qual foi a importância do carnaval carioca na constituição e afirmação de identidades homossexuais na cidade?

Até as décadas de 1960/1970, os homens que mantinham relações sexuais preferencialmente com homens, adaptados ao sistema hierárquico de gênero, restringiam suas práticas para passarem mais ou menos despercebidos, iam às festividades carnavalescas "gerais" e, em casos mais raros, adotavam o papel de gênero oposto e freqüentavam as festividades carnavalescas ditas para "enxutos" ou "bonecas", como os bailes dos teatros São José ou República, no centro da cidade e na Lapa.

Nas décadas de 1970 e 1980, o desenvolvimento da "pequena burguesia nova" e da "sociedade de consumo de massa" favoreceram uma maior visibilização das atividades de homossexuais nos centros urbanos brasileiro, em particular, num primeiro momento, os mais afeminados deles. As imagens da travesti/transexual, assim como a dos "transformistas" e das "caricatas" iriam povoar as festividades carnavalescas. A partir da aparição do modelo "gay" norte-americano – o macho man que lutava por direitos iguais para homossexuais e heterossexuais na linha dos movimentos de liberação sexual da década de 1970 – surgiu no Brasil a imagem do "entendido", com seus locais de encontro, bares e restaurantes, boates noturnas, saunas e cinemas "de pegação", o trecho "gay" da praia de Copacabana, os bailes carnavalescos Gala Gay, a Banda de Ipanema e a invasão do universo das escolas de samba dirigidas por carnavalescos como Joãosinho Trinta. O ponto culminante desse período foi a primeira metade da década de 1980, notadamente com a aparente aceitação de homossexuais em todos os níveis da vida social, sobretudo no que diz respeito ao lazer e, particularmente, ao carnaval.

Mas, surge e se difunde a AIDS, principalmente na segunda metade da década de 1980, reforçando, de maneira crescente e contundente, o interesse de jovens e menos jovens pelos cuidados corporais, iniciado já na década anterior – academias e energéticos ajudam a caracterizadores de uma corporeidade mais homogênea. Enquanto isso, as aparências e as imagens de si diversificam-se e heterogeneízam-se em razão da multiplicação das referências culturais e de uma espécie de "excesso" identitário que parecem marcar esse período. Assim, aparece com mais força, na década de 1990, o que chamei de imagens identitárias, visando dar conta da fluidez processual das formulações e das reformulações das aparências e das imagens de si identificadoras.

Mais particularmente, aparecem as imagens identitárias que traduzem, ressignificam e "tropicalizam" o movimento queer norte-americano, associadas ao que designo de "cultura GLS": barbies e drag queens apostam nas aparências mais do que em qualquer outra imagem identitária, notadamente nos bares e nos restaurantes do Baixo Botafogo Gay, num primeiro momento e, em seguida, no eixo ipanemense Farme de Amoedo/Teixeira de Mello. Mas também nas praias de Ipanema e da Barra da Tijuca, nas festas rave realizadas em locais insólitos, onde se escuta música eletrônica e se veneram DJs, nos sites especializados da Internet, nos eventos "alternativos" ou off do carnaval, nas Bandas Carmen Miranda e de Ipanema, nas escolas de samba, como Estácio de Sá, União da Ilha e São Clemente.

As travestis opõem-se às "barbies" como duas extremidades do "mundo gay", reivindicando sua "particularidade" homossocial, às vezes sua "diferença" ou "condição" (retiram-se assim desse "mundo" aqueles que mantêm relações sexuais com homens e vivem num universo heterossocial sem se identificarem como homossexuais). As travestis, tornando extrema a feminilidade, parecem viver entre a homossocialidade de situação e a heterossocialidade desejada. As "barbies", por sua vez, tornando extrema a virilidade, parecem viver entre a heterossocialidade de situação e a homossocialidade desejada. Estruturalmente, travestis e "barbies" acabam por se evitar no cotidiano. As imagens viris mais próximas das travestis são aquelas do "michê" e do "boy", enquanto as imagens femininas mais próximas das "barbies" são as das drag queens. O carnaval lança "pontes" entre as diversas formas de homossocialidades e as de heterossocialidades. Essas "pontes" ou relações seriam o locus das formulações identitárias.

As barbies e os adeptos da "cultura GLS" opõem-se às travestis e aos transexuais, assim como a Banda Carmen Miranda e o bloco Simpatia É Quase Amor opunham-se à Banda de Ipanema e aos Blocos das Piranhas dos subúrbios. Da mesma maneira, as "festas off " e "alternativas" contrapunham-se aos bailes Gala Gay, e os ensaios de escolas de samba de "tipo antigo" (Beija-Flor, Mocidade etc.) opõem-se aos ensaios das escolas de "tipo novo" (São Clemente, Unidos da Tijuca etc.); ou Milton Cunha e Paulo Barros estabelecem confronto estético em relação a Joãosinho Trinta e a Rosa Magalhães...



Existe espaço no carnaval para representações homossexuais que não passem pelo anedótico ou pelo estereótipo?

Sim, claro, mas... o que são estereótipos? Quem os define, senão aqueles que criam e recriam classificações legitimadoras e "deslegitimadoras" para classificar-se, a si mesmo ou aos seus próximos, reclassificando e desclassificando o outro, num processo social incessante bem definido pelo sociólogo e antropólogo Pierre Bourdieu? Como todo ritual, o carnaval, para a construção social e a formulação cultural das identidades ou imagens identitárias, como um desses espaços-tempo de classificação, reclassificação e desclassificação.



Quem são as pessoas que você entrevistou em sua pesquisa, e qual a importância desses relatos para seu livro?

Para a dissertação de mestrado e a tese de doutorado, realizei observações sistemáticas em ensaios e desfiles de escola de samba, bailes e festas alternativas carnavalescas e "saídas" de blocos e bandas. A partir do mapeamento dessas "situações ritualizadas", escolhi algumas pessoas que me pareciam interessantes para meu objetivo – compreender o sentido do carnaval – e fui entrevistá-las. Não entrevistei somente pessoas que se diziam homossexuais, mas também diversas pessoas que, mesmo sem se dizer homossexuais, poderiam me ajudar a entender o sentido do carnaval para os homossexuais. Foram entrevistados, então, desde pessoas que compravam fantasias para desfilar em escolas ou participavam com assiduidade ou não dos ensaios, até organizadores de festas alternativas carnavalescas e criadores de bandas, passando por diretores de alas de escolas de samba, passistas, carnavalescos, etc. As entrevistas eram do tipo biográfico e os relatos das vidas dessas pessoas – alguns deles inseridos no livro – ajudam a delimitar processos de mudança na percepção do carnaval que, a meu ver, têm a ver com mudanças mais globais da sociedade como um todo.



Seria justo dizer que o carnaval é um período de maior visibilidade e aceitação dos homossexuais? Essa liberalidade temporária tem algum significado para além da festa?

Sim, justíssimo! O carnaval parece apresentar-se como um conjunto de situações ritualizadas inseridas num ciclo mais amplo que engloba ritualidades diversas – eu chamei esse ciclo de ciclo festivo do verão. No interior dessas situações ou desses contextos de interação, algumas relações são possíveis, outras impossibilitadas, estando essas relações na base de formulações de ordem identitária. As situações ritualizadas parecem potencializar o encontro de "mundos" diferentes que, através desse encontro, forjam e reforçam o que os torna diferentes, variados, heterogêneos e até mesmo complementares. Então, o carnaval pode ser visto como um conjunto ritual de integração que permite e torna possível simbolicamente a participação de todas as camadas sociais e de todas as formas de "marginalidade" ou "alteridade" em uma quantidade maior de "mundos", situações e contextos de interação, para além daqueles aos quais elas estão submetidas na vida ordinária – homens que mantêm relações sexuais preferencialmente com homens podem participar de manifestações que os tornam visíveis a todos sem que, dentro de certos limites, isto seja "chocante" ou "malvisto" pelos demais participantes. A integração se faz, portanto, no interior de certos limites temporais e espaciais. Mas a partir daí estariam sendo lançadas as bases de uma mudança constante de ordem política mais global. Afinal, todo ritual cria experiência.

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