Antonio Candido relança clássico e defende rigor do pensamento
da Folha de S.Paulo
O filósofo Paulo Arantes e o crítico Roberto Schwarz estão entre os que chegam a comparar sua importância na crítica literária e no pensamento social brasileiro à de Machado de Assis na literatura. Walnice Nogueira Galvão, professora titular de literatura na USP, considera que o paralelo ainda não expressa a estatura de Antonio Candido, 88.
Professor de gerações dos mais importantes críticos literários e culturais do país, Candido acompanha há dois anos a reedição de seus livros pela editora Ouro Sobre Azul, projeto coordenado por sua filha Ana Luisa Escorel.
Júlia Moraes/Folha Imagem |
Crítico Antonio Candido na biblioteca de sua casa, em São Paulo |
Já ali aparecia a articulação sofisticada entre sociedade e literatura, marca do crítico. Por conta desta capacidade de análise, os escritos de Candido também deram contribuições decisivas à compreensão da sociedade brasileira.
Na entrevista a seguir, Candido fala de alguns aspectos de seu trabalho, como a forma da relação entre condições sociais e obras literárias, e a simplicidade e clareza de sua escrita.
O professor aposentado da USP respondeu às questões em oito páginas datilografadas. Ele diz que prefere não usar vocabulário técnico ou conceitos sociológicos por, "no fundo", não gostar "de termos difíceis, como os que predominaram no tempo da moda estruturalista".
"Freqüentemente eles são um jeito de dar aparência profunda a coisas simples", declara.
Ele afirma privilegiar a "organização interna" dos textos, e diz que o estudo da relação entre a obra e o meio social deve ser feito apenas quando "o texto assim exige".
FOLHA - O sr. usa como epígrafe de seu livro "O Discurso e a Cidade" uma frase de Calvino, em que o escritor italiano diz que não se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve, embora haja sempre uma relação entre ambos. É possível dizer que essa relação (e as formas dessa relação) entre sociedade e literatura está no centro da sua obra e é o que a move?
ANTONIO CANDIDO - De uma parte do que escrevi, sim. Esta frase serve de epígrafe à primeira parte do meu livro, que trata de romances vinculados à realidade social. Ela precisa ser completada pela da segunda parte, que analisa textos marcados pela fantasia, de um ângulo não-realista, e é uma frase de Verdi: "Copiar a realidade pode ser uma boa coisa; mas inventar a realidade é melhor, é muito melhor". Um conceito completa o outro, ambos registrando os pólos da criação literária e, portanto, do trabalho analítico, o que me levou a optar pelo que denomino "crítica de vertentes", ou seja, ajustada à natureza do texto e privilegiando a sua organização interna, não os vínculos externos. Não se trata, portanto, de impor nem rejeitar em princípio o estudo da relação entre a obra e o meio social, mas de praticá-lo quando o texto assim exige. Em geral tenho sido caracterizado com base na posição que assumi no começo da minha atividade, quando era crítico deste jornal e escrevia artigos não só privilegiando a dimensão social, mas, sobretudo, muito politizados. Com o tempo acho que equilibrei melhor os meus pontos de vista, mas conservei o interesse pelos nexos sociais da literatura. Quando se trata destes, procuro não fazer análises paralelas, isto é, descrever as condições sociais e depois registrar a sua ocorrência no texto, o que pode levar, por exemplo, a encarar a criação ficcional como um tipo de documento. Isto pode ser legítimo para o sociólogo ou o historiador, não para o crítico. O que procuro é, quando for o caso, compreender como o dado social se transforma em estrutura literária.
FOLHA - O modo de abordar essa relação já estava plenamente desenvolvido pelo sr. quando escreveu "Formação da Literatura Brasileira" ou há diferenças e desenvolvimentos entre esse livro e os ensaios que escreveu nos anos 60 e 70, como aqueles sobre "O Cortiço" e "Memórias de um Sargento de Milícia"?
CANDIDO - O preparo de "Formação", publicado em 1959, durou 12 anos, entre outros trabalhos. Um dos meus pressupostos era que a literatura é sobretudo um conjunto de obras, mais do que de autores ou fatores. No caso brasileiro, me pareceu que a análise das obras em perspectiva histórica deveria atender tanto à singularidade estética de cada uma quanto ao seu papel na formação da literatura como instituição regular da sociedade. Tratava-se, portanto, de averiguar quando a conhecida trinca interativa "autor-obra-público" se definiu e se prolongou no tempo pela "tradição", constituindo um "sistema", em contraste com as "manifestações literárias" precedentes. Isso me parece ter ocorrido mais ou menos entre 1750 e 1880, entre as Academias de meio-século e Machado de Assis. Por isso delimitei como campo de estudo a Arcádia e o Romantismo.
Eu já tinha publicado ensaios sobre o romance como expressão de classe e do momento, mas esses ensaios não focalizavam a estrutura, como os que menciona. De fato, eu não tinha ainda percebido com clareza que o essencial no tocante às relações da ficção com a sociedade era demonstrar (não indicar apenas) de que maneira as condições sociais são interiorizadas e se transformam em estrutura literária, que pode ser analisada em si mesma. É o processo que denominei "redução estrutural". Por outro lado, ainda não tinha refinado a análise de textos poéticos.
Creio que o longo trabalho de preparo da "Formação" me amadureceu em ambos os sentidos, podendo-se tomar como eixo os anos de 1959 e 1960. Foi a partir de então que preparei muitas análises de poemas para os meus cursos, algumas das quais estão em "Na Sala de Aula" e em outros livros. Foi também naquela altura que publiquei o primeiro ensaio do tipo a que se refere, sobre estrutura literária e função histórica, analisando o "Caramuru", de Santa Rita Durão.
FOLHA - Há uma característica interessante em sua obra que é a de não fazer uso direto e transplantado de conceitos sociológicos, de teoria literária ou de filosofia na análise das obras. O raciocínio é exposto com clareza e sem uso de recursos "esotéricos" ou "técnicos". Isso foi uma decisão consciente desde o início do seu trabalho? O que o levou a fazer essa escolha?
CANDIDO - Não há razão para evitar os termos técnicos quando são necessários, mas sempre que possível prefiro usar a linguagem corrente. Digamos que é mais um modo de ser do que uma decisão. Quando era moço li um livro do antropólogo inglês Evans-Pritchard que me confirmou nesta tendência. Ele dizia que a antropologia não é ciência, mas disciplina humanística, de modo que deve usar a linguagem comum. Foi o que procurei fazer quando era assistente de sociologia, à qual estendi o conceito, e foi o que sempre fiz nos estudos literários. Além disso, tenho o hábito didático de ser o mais claro possível, reconhecendo que isto pode ser fator de deficiência, pelo risco de simplificação indevida.
FOLHA - O sr. chegou a ser criticado por esse seu estilo?
ANTONIO CANDIDO - Há muito tempo um colega do Rio disse que sou claro por ser superficial, pois as coisas profundas são necessariamente complexas e só podem ser expressas de maneira equivalente. Quem sabe? É preciso notar que em matéria de estudos literários sou autodidata, formado, não em letras, mas em ciências sociais. Aprendi a fazer crítica na imprensa, sobretudo neste jornal, depois de um início em nossa revista "Clima", de modo que me acostumei à fluência jornalística. Mas no fundo não gosto mesmo de termos difíceis, como os que predominaram no tempo da moda estruturalista. Freqüentemente eles são um jeito de dar aparência profunda a coisas simples.
FOLHA - O sr. acompanhou a quente a produção do que houve de melhor na literatura no século 20, registrando suas idéias e avaliações nos jornais. Como vê o trabalho da imprensa e o espaço da crítica de artes e literatura nos grandes jornais de hoje? A que se devem as diferenças entre esse trabalho na atualidade e na segunda metade do século 20 no país?
CANDIDO - Vou responder apenas a uma parte, ressalvando que não sou muito qualificado no caso, porque leio pouco os jornais e na verdade me limito a dar uma olhada nesta Folha.
Mas acho que na segunda metade do século 20 houve uma modificação acentuada no que se refere à atividade crítica, com o desaparecimento progressivo do "crítico titular", que era como se costumava designar o encarregado de uma seção, situada muitas vezes na parte inferior da página e denominada "rodapé" ou "folhetim". Quase sempre ela tinha um título permanente, abaixo do qual vinha o do artigo do dia, e o encarregado devia fornecer um artigo por semana, tendendo ao tipo ensaio.
Era a velha tradição francesa do jornalismo crítico, que no Brasil teve representantes de qualidade, e a começar por José Veríssimo, prolongando-se por Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins e outros. Essa linhagem assegurava um nível elevado e o leitor se habituava ao critério de um esmo crítico, dando lugar ao que se pode denominar "efeito de continuidade", importante para configurar a atuação cultural da crítica. Neste sentido, é preciso destacar o caso, creio que o único, de um grande crítico, Wilson Martins, que persistiu nesta tradição sem quebra de nível.
09/11/2006 - 09h39
fonte http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u65898.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário