Roberto DaMatta
'Vovô - perguntou umas das minhas netas  -, por que a gente vê e acompanha as novelas?' A indagação se endereçava não  tanto ao avô que, sendo professor, autor de livros e 'antropólogo-antropófago'  (de idéias, é claro), tinha a obrigação de saber a resposta, mas a todo grupo  que, de olhos vidrados, assistia a mais um capítulo de Paraíso Tropical em  mágica sincronia com milhões de outras pessoas.
De fato, tirante a  novela, o carnaval, o futebol e os eventos não previstos pelas rotinas - como a  visita do papa que faz o mais empedernido materialista dialético e o mais  enfurecido ateu virar 'católico' -, só o vergonhoso cotidiano dessa atividade  contraditória que chamamos de 'política', faz com que alguém entre em sincronia  com seus semelhantes no Brasil.
Achei a pergunta pertinente porque ela  deixava de lado o julgamento de valor. O seu centro não era saber se a novela  era boa ou ruim, se diminuía ou elevava os espíritos (como gosta de colocar a  esquerda estrelada que odeia, mas vive da televisão; e agora vai montar uma  indefinível 'TV pública'), mas queria discutir o poder de atração dessa forma de  narrativa feita de situações em série, ligada entre si por meio de ganchos  retóricos repetitivos, como o arcaico folhetim, mas contada por meio de imagens  sucessivas e planos rápidos, palavras, gestos, montagem e música, como o moderno  cinema.
Respondi que a novela atraía e enredava porque - como o Brasil  das pessoas comuns, o nosso Brasil - ela contava muitas histórias ao mesmo  tempo, combinando múltiplas vidas, profissões, personagens, destinos, relações e  situações. São tantos contextos e personagens que alguma coisa acaba nos  agarrando, promovendo uma densa identificação. Seu poder de 'dar o que falar' e  de agregar o público era proporcional aos dilemas que ia apresentando paulatina,  ciclicamente. De modo que quando um caso de amor terminava, a narrativa  desvendava um ato criminoso, e assim por diante. Era uma forma de arte que  simultaneamente prometia as certezas que aliviam e sustentam o voyeurismo, mas  não deixava de garantir o inesperado, que é o sal da boa trama.
Por causa  disso - acrescentei entusiasmado como sempre, mas sem ver que ninguém estava  prestando a menor atenção ao que dizia, pois continuavam colados a telinha -, há  em toda novela um núcleo articulador - uma rede central de intrigas - que serve  de referência ao que se passa ao seu redor. Tal núcleo, ou centro dramático,  pode ser uma academia de ginástica, uma empresa, um casarão, uma fábrica ou um  clube, mas dentro desse quadro, o miolo é sempre uma família. Um grupo  construído por laços de carne e sangue, atribuído pelo destino (ou por Deus), e  dado a cada um de nós por nascimento. Esses laços - enfatizei olhando firme para  dentro dos olhos de minha neta - que, no Brasil, são vistos como indestrutíveis  e baseados em lealdades perpétuas, estão em oposição permanente com as relações  individuais fundadas em escolhas, feitas fora da casa, por meio daquilo que se  chama de liberdade.
É o conflito entre essas lealdades de sangue (dadas  pelo nascimento), e os interesses individualizados, descobertos pelo amor e pelo  erotismo que, com suas ricas variações, forma o tema central das novelas. A  história é velha como um mito, todo mundo sabe o seu final e, no entanto, como  ela é contada (e não vivida), como é algo a ver visto de fora para dentro (e não  ao contrário), todo mundo assisti com interesse.
Ora, completei, esse  embate entre a obrigação (que tem a ver com o dever para com a família) e a  escolha individual (que promove riscos, pois está centrada num distanciamento do  grupo em que se nasce) é muito brasileiro. Fala de como os laços de sangue são  tão poderosos quanto as tais 'empresas' ou 'grupos' empresariais que, não apenas  na novela, mas no Jornal Nacional, fazem manchete com seus conflitos sucessórios  e suas sagas matrimoniais.
Deste modo, novela vai, novela vem, e o drama  é sempre o de honrar os laços formados na casa e de ser, na rua, um indivíduo  bem-sucedido. Coisa complexa quando sabemos que as normas da rua promovem uma  apreciação igualitária das ações e, as da casa, o contrário. Assim, o mandão  hierarquiza; mas seus filhos, mulher ou empregados são governados pela  igualdade.
'Mas vovô, isso acontece em todas as histórias...' - retorquiu  minha neta.
Sem dúvida... Mas em outros trópicos, o ponto todo é romper  com a família e individualizar-se completamente, entrando de cabeça num mundo no  qual não se tem nenhuma relação pessoal. Mas na novela, tudo pode ocorrer, menos  cortar relações. Nosso romance não é biográfico. Não narra a saga de um  descobrir-se individualmente, como as histórias inglesas e alemãs. Nele, a regra  é o equilibrar-se no fio de navalha constituído pelo individualizar-se sem, em  nenhum momento, livrar-se desses laços de família que são leves como as penas de  um pardal, mas pesam como chumbo. 
ESTADO DE SP,
16 de maio de 2007
 
 
 
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