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'Brasil está destinado a ficar estacionado'

March 25, 2007  -  Estadão

'Brasil está destinado a ficar estacionado'

Desencantado com o País, príncipe francês dizia em 1838 que aqui só a natureza prestava

Lilia Moritz Schwarcz

O Brasil sempre significou um bom espelho invertido a atazanar a imaginação dos franceses. Enquanto 'eles' tinham muita 'civilização e pouca natureza', 'nós' éramos o local da 'grande flora, mas da falta de civilização'. Por isso, a narrativa de viajantes setecentistas, como Léris, Gandavo ou Thevet, acabou por germinar todo um imaginário acerca dessa colônia perdida na América; uma espécie de paraíso perdido. Tal simbologia tenderia a se arraigar ainda mais quando Rousseau, pautado na leitura dos viajantes do 16 e no ensaio de Montaigne, chamado Os Canibais - verdadeiro tratado elogioso sobre a maneira como os tupinambás faziam a guerra -, cunhou a idéia do 'bom selvagem'. É fato que esse era um modelo e não uma realidade empírica, mas a imagem romântica colou-se ao nosso território, associado à idéia do sublime e do maravilhoso. Sublime era a natureza, porém estranhos eram seus homens - nus e de costumes bizarros, ou ainda misturados em suas crenças e raças.

A vida dos franceses nesses trópicos americanos não seria, porém, fácil. Com a vinda de d. João ao Brasil em 1808 e com a declaração de guerra à França no mesmo ano, os compatriotas de Napoleão passaram a ser tratados como inimigos e sofreram, eles sim, um bloqueio transcontinental. A situação só começaria a mudar a partir de meados de 1814, quando, após o Congresso de Viena, o príncipe regente português anunciava que as relações entre os países seriam, a partir de então, 'amigáveis'; o que permitiria o livre trânsito de franceses em Portugal e também na rica colônia americana. Data desse momento o começo das novas relações oficiais franco-brasileiras, assim como se aceleram as trocas culturais, econômicas, científicas e comerciais entre as duas nações.

Entrariam no Brasil de d. João, de Pedro I e, sobretudo, de Pedro II viajantes, naturalistas e curiosos franceses que pareciam querer redescobrir um país descoberto há muito tempo. Para os franceses, que conheciam a América espanhola por intermédio de Humboldt mas desconheciam o Brasil, esse era o país mais 'exótico' do continente - com canibais, serpentes e natureza singular - mas, paradoxalmente, o mais 'civilizado': uma monarquia cercada de repúblicas.

É imbuído do desejo de entender uma nação tão particular que aporta no Rio, em 1838, o terceiro filho do rei-cidadão Luis Filipe de Orleáns; monarca que governou a França de 1830 a 1848. François Ferdinand Filipe Louis Marie d'Orleáns, futuro príncipe de Joinville, era na época um jovem tenente da marinha, e com apenas 20 anos mal sabia que, no futuro, iria se casar com a irmã de Pedro II, d. Francisca, que nesse momento achou desengonçada e com dentes horríveis.

Esta primeira viagem ao Brasil foi talvez aquela que causou maior impacto ao príncipe. François esteve no País de 1º de janeiro de 1838 a 22 de fevereiro e relatou as impressões da estada em um livro que está sendo lançado pela José Olympio, Diário de um Príncipe no Rio de Janeiro (84 págs., R$ 19). Nele, legou um relato espirituoso e escrachado, correspondente à atitude do viajante que traz sempre em sua mala os próprios costumes e traduz tudo a partir de suas lentes culturais, que o fazem oscilar entre o deslumbramento, o choque, a imaginação e a rejeição.

E no caso de nosso príncipe não seria diferente. No ano em que François desembarca, vivíamos a maior das crises regenciais. Feijó se demitira em 1837 e fora substituído interinamente por Pedro de Araújo Lima, que não dera conta de debelar as rebeliões do período: a Cabanagem no Pará, a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Revolta dos Malês na Bahia, além da Sabinada que eclodira em novembro daquele ano na mesma província. Não sem uma ponta de sarcasmo, Luis François refere-se a d. Pedro como 'o pequeno imperador', lamenta o estado de 'abandono e isolamento' do futuro monarca e de suas irmãs, assim como aposta que o País não ficaria integrado e coeso por muito tempo. 'As províncias comerciais do Pará, de Pernambuco e da Bahia vão separar-se, a do Rio Grande do Sul já se libertou e Santa Catarina seguirá seu exemplo. Restará então um império composto do Rio, São Paulo, Goiás e Matocross (sic) e alguns lugares cujo nome esqueci.'

François conhecia pouco mas julgava muito. Já na chegada, começa a debochar do jovem d. Pedro dizendo que, desde que havia sido anunciada sua visita, o futuro rei todo dia alertava as irmãs: 'Vistam-se depressa que o príncipe vem aí.' E a recepção do nobre francês não seria das melhores: um calor insuportável, 'negros pavorosos de raça cafre ou moçambicanos horrorosos', ameaças de tempestade e nuvens de mosquitos por todos os lados. A visita ao Paço de São Cristóvão também não o impressionou. Ao contrário, quando François desembarcou diante do Palácio Imperial, 'uma multidão enorme aí se comprimia, pois nesse país não há nenhum traço de polícia'. Isso sem esquecer da nota de escárnio diante do fraco cerimonial da corte: 'Uma carruagem atrelada a seis mulas escolta uma cavalaria cujas trombetas produzem sons como de chifres de boi.'

E era chegada a hora de encontrar a família imperial: 'Finalmente percebo uma figura miudinha, da altura da minha perna, empertigada, emproada: é sua Majestade!!' O pior é que a conversa não andava - 'nada o divertia'. Até o regente, percebendo o constrangimento, tentou puxar conversa com o príncipe francês. Parece que ninguém se entendia: o príncipe brasileiro falava sem parar, o francês respondia 'a torto e a direito' e nada descontraía o ambiente. 'Voltei como vim', escreveu o príncipe de Joinville, desfazendo do jovem rei, segundo ele, louro e miúdo como a família austríaca, 'mas com modos de um homem de 40 anos'. A visita a d. Pedro terminara: 'Logo me retirei cheio de piedade por essas pobres crianças abandonadas a quem dão apenas aquilo que é preciso para viver e que são perseguidas por uma nuvem de gente sem moral que deixa o país que lhes foi confiado dividir-se e cair em uma rápida decadência.'

Os costumes também faziam rir a esse representante da Monarquia de Julho. No baile que recebeu, estranhou as roupas da nobreza, e as danças lhe deram uma 'vontade inextinguível de rir'. O jeito foi ficar sentado no sofá, 'morrendo de tédio'. O príncipe só dava sinais de apreciar, mesmo, a vegetação local; na verdade, sua grande missão nessa viagem. Partiu com muita bagagem ('porque num país como este é preciso levar tudo'), viu matas admiráveis cheias de pássaro, o Pão de Açúcar, o Corcovado, atravessou rios de água fresca e montanhas arborizadas, além de ter praticado a caça; atividade dileta dos Orléans. O Brasil lhe parecia, sob esse ângulo, 'um país virgem', o que só fazia aumentar sua saudade da França.

Também não deixou de reparar 'na diferença de cores de toda essa gente'. O império americano era mesmo um 'laboratório de raças' aos olhos desses viajantes. Entabulou conversa com alguns proprietários de terra a respeito do tratamento, castigo e governo dos escravos e, aí sim, desfez dessa 'pobre civilização'. Por essas e por outras é que asseverou que 'o País, por causa de sua situação, população e personalidade dos habitantes, estava destinado a ficar estacionado por muito tempo'. Tudo lhe parecia indecente: estradas, roupas, os negros que dançavam com lascívia, a escravidão e a preguiça. E a conclusão era uma só: 'A viagem foi interessante, me fez conhecer bem o Brasil, mas me desencantei ...'

No entanto, até que a viagem trouxe rendimentos pessoais. François saiu do Brasil levando um leão que crescia e a cada dia ficava mais dócil; um gato tigrado; um sarigueia com seus filhotes no bolso; gazelas; macacos; papagaios; coelhos; uma preguiça e seu filho: 'O animal mais incrível que jamais vi.' Nosso príncipe virou feriado, ganhou medalha com a imagem de um índio ao centro e mereceu uma chuva de fogos de artifício. Essa gente era provinciana, mas sabia se divertir de vez em quando. François até que aproveitou de seu baile de despedida e dançou até as 4 e meia da madrugada, quando d. Pedro já se encontrava, faz tempo, embaixo dos lençóis: 'Dançamos um cotilon no meio do qual soltamos o leão dancei até cair morto.' Não obstante, partiu dizendo que daqui só a natureza prestava.

Mas vida de príncipe também é sujeita a reviravoltas. François acabaria por mudar de opinião, ao menos com relação à (outrora desengonçada) irmã de d. Pedro: d. Chica virou beldade. Por sinal, ele teve de esperar muito para que seu pedido de casamento fosse atendido e voltou mais duas vezes ao País. O bom humor do príncipe também seria afetado pelo destino da 'Monarquia de Julho' e pela destituição da dinastia de Luís Felipe de Orléans, que terminou seus dias com a revolução de 1848, a qual levou toda a sua família ao exílio na Inglaterra. O mundo andava convulsionado e também a civilização dos franceses não era lá essa coisas.

Diário de um Príncipe no Rio de Janeiro é um monumento ao bom humor. Pena que nessa edição faltem os desenhos, aquarelas, estampas e caricaturas que compõem o documento original; que pode ser encontrado no Museu de Petrópolis. Ninguém vê com olhos livres e sem filtros e nosso príncipe estava coberto deles. Mas esse diário não só testemunha a crise que viveu o Império durante as regências, como é original na sua escrita divertida; oposta aos documentos sisudos, que sempre legam uma visão enaltecedora e oficial. Nesse caso, tudo é palco para o deboche.

No fundo, nosso príncipe gozador só pretendia passar pelo Brasil: seu destino sempre foi a França. Diz ele na despedida: 'Velas ao vento, presentes a serem distribuídos e um baile à francesa a me esperar, assim como a honra nacional e nossa bela família.' Quem diria que todo esse cenário iria desabar em menos de 10 anos. Castelos são muitas vezes cenários frágeis.

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia e autora, entre outros, de As Barbas do Imperador


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