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As negas malucas de Mia Couto

JORNAL DO BRASIL, 14 DE JUNHO 2008

Entrevista | Mia Couto

Em novo romance, 'Venenos de Deus, remédios do Diabo: as incuráveis vidas de
Vila Cacimba', o escritor moçambicano fala de incesto, religião e saudade
Mariana Filgueiras

Os moradores da Vila Cacimba, onde se passa o novo romance do escritor
moçambicano Mia Couto -Venenos de Deus, remédios do Diabo - poderiam viver
parede e meia com os da Vila do Meio-Dia, do lendário musical Gota d'água,
de Paulo Pontes e Chico Buarque. Poderiam até ter organizado protestos em
grupo. Fosse Atlântico o oceano que banha o lado da África onde fica Maputo,
Deolinda, a mulata do romance africano, poderia até ter trocado segredos com
Esmeralda, a mulata de Mar morto, de Jorge Amado. A familiaridade das
histórias contadas pelo escritor, em que um médico, Sidónio Rosa,
apaixona-se pela bela Deolinda, em meio à sua conturbada ausência, é
instantânea. Faz lembrar a proximidade que há entre Brasil e os países
lusófonos, não só pela língua - agora ainda mais, pelo acordo ortográfico -
mas também pelos temas. Mia venceu a guerra civil moçambicana e evolui em
uma trama repleta de universalidade: incesto, política, religião, dores de
saudades.
De onde vieram Bartolomeu, Munda, Sidónio Rosa, Deolinda... Como as
histórias sopraram-lhe o ouvido?
- Nunca sabemos onde se localizam os personagens que criamos. São vozes, são
ecos que moram no fundo de nós, moram na fronteira entre sonho e a
realidade. No meu caso, estes personagens corporizam alguns fantasmas
relacionados com o sentimento do tempo e o facto de, pela primeira, tropeçar
naquilo que se chama "idade".
A aproximação com a oralidade, neste Venenos de Deus, remédios do Diabo, é o
traço mais forte da sua literatura, hoje?
- A oralidade é dominante na sociedade moçambicana. Mas não é o território
da oralidade, em si mesmo, que me interessa. È a zona de fronteira entre o
universo da escrita e a lógica da oralidade. Essa margem de trocas é que é
rica.
Você diz que já é mais velho que o próprio país independente. Neste romance,
o tema colonial é o pano de fundo das "incuráveis vidas da Vila Cacimba". A
colônia deixou de ser personagem?
- A colônia nunca foi personagem. Eu creio que, não apenas na literatura,
mas no imaginário dos moçambicanos, esse passado colonial foi bem resolvido.
É preciso pensar que a independência de Moçambique se deu como resultado de
uma luta armada que criou rupturas de cultura bem sedimentadas.
O tema da guerra civil esgotou-se? (Não é uma cobrança, só uma
provocação...)
- Já antes a guerra civil se havia esgotado. No O Outro pé da sereia ele já
surge.
No fundo, você sempre escreve sobre o mesmo tema?
- Escrevi 23 livros, todos tratam de temas diversos. Existe, sim, uma
preocupação central em toda a minha escrita: é a negação de uma identidade
pura e única, a aposta na procura de diversidades interiores e a afirmação
de identidades plurais e mestiçadas.
De que maneira percebe o ranço colonial na literatura dos países lusófonos?
- Não há ranço. O passado está bem resolvido.
O romancista é o historiador do seu tempo?
- Em certos momentos, sim. Por exemplo, depois da guerra civil os
moçambicanos tiveram um esquecimento colectivo, uma espécie de amnésia que
anulava os demônios da violência. Os escritores visitaram esse passo e
resgataram esse tempo, permitindo que todos tivéssemos acesso e nos
reconciliássemos com esse passado.
"As formas de expressão usam-se quando se tem medo de dizer a verdade", diz
a sabedoria bruta de Munda, personagem do livro. O escritor diz a verdade?
- O escritor é um mentiroso que apenas diz a verdade. Porque ele anuncia
como uma falsidade aquilo que é a sua obra.
Um brasileiro, ao ler um romance de Moçambique, ganha riquezas sobretudo de
linguagem. Você acha que a língua portuguesa tem a perder com o acordo
ortográfico?
- As línguas nunca perdem. Os acordos apenas tocam numa camada epidérmica,
num lado convencional que não é o coração do idioma.

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