A importante obra de Mário de Andrade ganha nova  edição, revelando um artista inquieto e inquietante, sempre brilhante por  apontar novos rumos da  cultura  
Ubiratan  Brasil  
Era um homem muito peculiar - alto, lábios  grossos, queixo proeminente, testa larga que revelava uma calvície avançada,  gestos amplos, voz forte, Mário de Andrade (1893-1945) tinha o dom de reunir as  pessoas. De corpo presente, nas inúmeras cartas que trocou ou em sua vasta obra,  o escritor compartilhava sentimentos, alegrias e ansiedades, permitindo um  enriquecimento intelectual mútuo. Se nem sempre criou textos excepcionais, Mário  foi sempre brilhante por apontar novos rumos, como comprova a reedição de sua  obra, trabalho agora assumido pela editora Agir.
Serão 29 títulos,  iniciados por três essenciais: a rapsódia Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter,  o idílio Amar, Verbo Intransitivo e as crônicas reunidas em Os Filhos da  Candinha. 'Até o final do ano, outros oito livros serão relançados', conta Paulo  Roberto Pires, diretor editorial da Ediouro (da qual a Agir faz parte),  lembrando que cada volume só chega às livrarias depois do trabalho realizado  pela Equipe Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB),  verdadeiro santuário onde o arquivo do escritor está guardado, sob a coordenação  por Telê Ancona Porto Lopez. O grupo fez vários cotejamentos com as edições  publicadas com o autor ainda vivo para, assim, estabelecer a versão definitiva.  'Creio que dificilmente teremos edições mais próximas da vontade o Mário do que  estas', comenta Pires.
A disposição dos familiares do escritor em  reeditar a obra (da qual apenas alguns volumes esparsos são ainda encontrados  nas livrarias) facilitou o trabalho da Agir, que enfrentou uma pequena  concorrência de outras editoras até conquistar o direito de dispor dos títulos.  Para se medir a importância de tal vitória, um evento vai marcar oficialmente o  lançamento dos três primeiros livros.
A partir das 19 horas de  segunda-feira, a Livraria Cultura do Conjunto Nacional será palco de uma  homenagem a Mário de Andrade. O ator Pascoal da Conceição, cuja semelhança  física já o levou a participar tanto de um comercial do Imposto de Renda como da  minissérie Um Só Coração interpretando o escritor, vai comandar a festa. Ele  também vai ler trechos dos livros.
Para lembrar a imensa e valorosa  correspondência que Mário trocou com inúmeros artistas (e que não faz parte  deste pacote da Agir), escritores como Marcelino Freire e André Laurentino vão  ler seus e-mails fictícios para o autor, como uma homenagem. Os textos são  divertidos e confessionais: 'Este é o segundo e-mail que escrevo a você. O  outro, apaguei. Sinto que nele eu estava fazendo pose. Numa carta, você mesmo  disse, não se deve fazer pose. Devemos estar inteiros em cada sílaba', escreve  Laurentino.
Todas as mensagens estarão disponíveis no site em homenagem  ao autor de Macunaíma (www.mariodeandrade.net), que entra no ar na noite de  segunda. Finalmente, o grupo A Barca apresenta um pocket show, baseado nos  registros feitos pelo escritor ao longo de sua vida e durante a Missão de  Pesquisas Folclóricas, de 1938. 
 
Obra traz lições de vida e arte
Mário de Andrade trava um diálogo franco com o futuro em seus escritos
Ubiratan Brasil
Se o palco do  Teatro Municipal de São Paulo era assolado por vaias e assovios naquela noite de  15 de fevereiro de 1922, no saguão imperava o silêncio. Enquanto prosadores e  poetas tentavam ler trechos de suas obras modernistas em meio a gracejos dos  adeptos da arte acadêmica e da poesia parnasiana, Mário de Andrade usava de sua  voz grossa e gestos amplos para tentar explicar, na ante-sala do teatro, as  tendências artísticas contemporâneas. Aqueles dias formaram a hoje conhecida  Semana de Arte Moderna, que abriu o caminho para artistas provocadores como  Mário de Andrade que, naquele instante, iniciava um destino: o de esclarecer,  durante anos, o sentido e os caminhos atuais de diversas artes.
Mário foi  um homem irrequieto - prosador, escreveu romances e contos com a dicção do texto  modernista; crítico, apontou caminhos estéticos para outros artistas de áreas  diversas; pesquisador, viajou pelo Brasil buscando traços folclóricos e musicais  de todas as regiões, desconhecidos dos grandes centros. Foi ainda um importante  poeta. 'Era um intelectual que se preocupava com os assuntos nacionais, mas sem  se limitar ao nacionalismo', observa Paulo Roberto Pires, da Ediouro. 'Mário não  tinha preconceito do meio em que vivia e, mandamento número 1 do bom  intelectual, era extremamente curioso.'
Macunaíma, por exemplo, 'livro de  pura brincadeira escrito na primeira redação em seis dias ininterruptos de rede,  cigarros e cigarras', como descreveu o autor em um prefácio, é fruto da união  dos melhores elementos da cultura nacional. O herói sem nenhum caráter foi  inspirado nas pesquisas do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg , interessado  nos costumes e na tradição oral dos índios que habitam a região onde hoje se  delimita a fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. Foi a partir das lendas  dos índios daquela área, os taurepang e os arekuna, que Mário criou  Macunaíma.
O escritor sempre se apressava em afirmar que, por conta de  sua múltipla nacionalidade, Macunaíma não é genuinamente brasileiro. 'É tão ou  mais venezuelano como da gente', escreveu no prefácio, frisando em seguida: 'Não  quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão da cultura  nacional. Deus me livre.' Afinal, acrescenta ele, há ali uma embrulhada  geográfica proposital de fauna e flora. 'Fantasiei quando queria e sobretudo  quando carecia pra que a invenção permanecesse arte e não documentação seca de  estudo.'
Também a imoralidade da história (além de preguiçoso, Macunaíma  tem um insaciável apetite sexual) é rebatida pelo autor. Mário conta que se  baseou nas lendas de primitivos em geral e nos livros religiosos. 'Essas  literaturas rapsódicas e religiosas são freqüentemente pornográficas e em geral  sensuais', defende-se.
Já Amar, Verbo Intransitivo, embora escrito entre  1923 e 1926, foi alvo constante de reescritura até 1944. Na história de um rico  industrial que contrata uma professora de alemão cuja função, acima de ensinar a  língua, é iniciar sexualmente Carlos, o filho adolescente, Mário incomodou-se  com a análise freudiana feita pelos críticos quando do lançamento do livro.  'Carlos não passa de um burguês chatíssimo do século passado (retrasado). É  apenas uma apresentação, uma constatação da constância cultural brasileira',  escreveu, no prefácio.
Os Filhos da Candinha, por outro lado, reúne  crônicas sobre diversos assuntos. Mário o considerava o seu livro mais bem  escrito, comparando-o ao 'estilo poético-heróico de Macunaíma'. De fato, embora  o crítico e o cronista estejam intimamente entrelaçados, aqui se sobressai o  último. 
(SERVIÇO)Serviço Lançamento da Edição Definitiva da Obra de Mário de Andrade. Teatro Eva Herz - Livraria Cultura (166 lug.). Av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional.2.ª feira, 19 h. Entrada franca
Os livros, por Mário de Andrade
MACUNAÍMA:  'Depois de pelejar muito verifiquei uma coisa me parece que certa: o brasileiro  não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a  minha conclusão é (uma) novidade pra mim porque tirada da minha experiência  pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não,  em vez, entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos  costumes, na ação exterior, no sentimento, na língua, na História, na andadura,  tanto no bem como no mal.'
AMAR, VERBO INTRANSITIVO: 'O livro está gordo  de freudismo, não tem dúvida. E é uma lástima os críticos terem acentuado isso,  quando era uma coisa já estigmatizada dentro do próprio livro. Agora o interesse  seria estudar a maneira com que transformei lirismo dramático a máquina fria de  um racionalismo científico.'
OS FILHOS DA CANDINHA: 'As crônicas juntadas  neste livro foram escolhidas de preferência entre as mais levianas que publiquei  - literatura. Faço sempre assim porque me parece mais representativo do que foi  a crônica para a minha aventura intelectual.' 
19 de janeiro 2008,  estado de  sp
 
 
 
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