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'Seus contos estão entre os melhores'

ESTADO DE SP
29 JUNHO 08
"Infâmia, escárnio, loucura, oportunismo e ironia não faltam aos personagens machadianos. Em um conto como A Parasita Azul, há um jogo social que passa pelo casamento e pelo favor, uma ironia mais refinada, o sonho delirante de um personagem. A composição da narrativa é mais ousada e antecipa certos recursos usados nos romances da segunda fase." Ubiratan Brasil

 Meu primeiro contato com Machado de Assis se deu com os contos de Histórias da Meia-noite. O primeiro que li foi A Parasita Azul. Ainda bem que comecei pelos contos, aos doze ou treze anos é difícil, senão impossível, encarar um romance do Bruxo. Lembro que li esse conto com prazer e curiosidade. Queria saber como ia terminar aquela história de amor, mais um triângulo amoroso, em que os amigos Camilo e Soares disputam Isabel. Esse conto tem um forte lado romanesco, as peripécias vão de Paris ao interior de Goiás: do paraíso ao inferno. Mas é no inferno da província que Camilo herda a fazenda do pai e apaixona-se por Isabel (a namoradinha da juventude). Ele esquece Paris e a mulher por quem se apaixonara, uma "princesa moscovita", que de princesa e de moscovita não tem nada. Na verdade, ela não passa de uma ladra vulgar, uma grande pilantra. No fim, Camilo faz ao amigo e rival Soares uma proposta bem machadiana: um cargo político como uma compensação pela perda da amada. O rival e ex-amigo diz:

"A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava juntar-lhe o escárnio."

Infâmia, escárnio, loucura, oportunismo e ironia não faltam aos personagens machadianos. Acho que esse conto marca uma inflexão na prosa de Machado. Nele há um jogo social que passa pelo casamento e pelo favor, uma ironia mais refinada, o sonho delirante de um personagem, as relações entre o centro (Europa) e um país colonizado. A composição da narrativa é mais ousada e antecipa certos recursos usados nos romances da segunda fase.

Um grande livro é um convite à releitura. Certamente é o caso dos quatro últimos romances de Machado, além de vários contos. Na releitura você descobre relações que estavam escondidas, disparates que adquirem sentido, pois nada é gratuito na obra machadiana. Nas Memórias Póstumas há alucinações e delírios memoráveis. Por exemplo, no capítulo Visão do Corredor, Brás Cubas, ainda jovem, dá à namorada Marcela um pente com diamantes. A moça tem um leve sobressalto e logo "paga o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos". Quando Brás sai da casa da mulher, ele olha para o teto do corredor e murmura: "Um anjo!" O leitor sabe que Marcela é uma cortesã. Logo depois , "como um escárnio", ele percebe que o olhar de Marcela "chispava de cima de um nariz, que era ao mesmo tempo o nariz de Bakbarah e o meu. Pobre namorado das Mil e uma noites!" O que vem em seguida é um pesadelo ou uma alucinação: uma cena de violência em que Marcela é desancada por três correeiros. O corredor de Marcela se confunde com uma rua de Bagdá, mas na verdade são o pai e o tio que agarram Brás Cubas e o levam ao intendente de polícia e depois ao navio que parte para Lisboa. Há outros capítulos incríveis, de uma crueldade sem limite, como D. Plácida. Há milhões de Plácidas no Brasil de hoje. O inusitado nas Memórias não é apenas o fato de ser narrado por um "defunto autor", mas também o fato de o leitor acreditar nesta farsa. A inovação formal deste romance reitera uma afirmação de Borges: "Os gêneros literários dependem menos dos textos que do modo de que estes são lidos".

Quais as cenas criadas por Machado de Assis que mais o marcaram?

Além da cena anterior, uma passagem do conto O Espelho, em que o alferes Jacobina fica sozinho no sítio da tia e encontra sua "alma exterior" quando veste a farda da guarda nacional e se olha no espelho. "Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugidia com os escravos, ei-la recolhida no espelho".

Que personagens são tão marcantes que ganharam vida própria na sua imaginação de leitor?

Muitos, até os personagens secundários são consistentes. Alguns dos mais relevantes e terríveis são dois loucos: Simão Bacamarte e Fortunato. A loucura é um dos grandes temas de Machado de Assis.

Qual livro dele mais o fez pensar?

Memórias Póstumas de

Brás Cubas.

Para qual dos seus livros você escreveria um prefácio?

Memorial de Aires.

Há algum texto de Machado que você considere injustiçado?

Memorial de Aires e Esaú e Jacó deveriam ser mais lidos. Gosto muito deste último, que foi uma das fontes literárias do Dois Irmãos.

Em Dom Casmurro, você acha que Capitu traiu Bentinho?

Acho que ambos atraíram os leitores e depois os traíram comuma dúvida eterna.

Entre os contos de Machado de Assis, quais você destacaria? Por quê?

Machado foi um dos maiores contistas desta América. Sem exagero, os melhores contos de Machado podem ser comparados aos melhores contos europeus. Depois de Parasita Azul, ele escreveu pequenas obras-primas: O Espelho, A Causa Secreta, Missa do Galo, Um Homem Célebre, Uns Braços, O Caso da Vara, Pai Contra Mãe... O conto Evolução é muito atual, traduz a baixeza do ambiente político brasileiro. Machado foi o antecessor brasileiro da obra de Jorge Luis Borges. E os dois foram grandes escritores neste subúrbio do mundo. Mas ambos provaram que o subúrbio, às vezes, pode ocupar um lugar central na literatura. Seria uma boa idéia criar o Instituto Machado de Assis em algumas capitais da Europa. Machado de Assis merece.

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