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Letras expressas

Dois dicionários bilíngues recém-lançados vertem provérbios e palavrões da língua inglesa e apontam para a maior profissionalização do setor no Brasil

IVO BARROSO



No eruditíssimo prefácio que escreve para o "Dicionário de Provérbios Inglês-Português/Português-Inglês", de Roberto (e Helena da Rosa) Cortes de Lacerda, o lexicógrafo Agenor Soares dos Santos discorre sobre a abrangência do conceito de provérbio, mostrando as áreas limítrofes com seus afins: os adágios, as frases feitas, as máximas, os anexins, as expressões idiomáticas, os símiles e as metáforas.
Mesmo ignorando as sutis distinções entre esses termos, a verdade é que, para o leitor de língua estrangeira e mais ainda para o tradutor, é preciso que a campainha do "desconfiômetro" funcione sempre ao surgir um deles, para que não se entenda ao pé da letra tudo o que vem escrito e se encontre um equivalente, um substituto, uma correspondência em nossa língua, que restitua ao termo ou frase o verdadeiro tom e sentido com que se apresenta no original. O sábio Antônio Houaiss chamava de "isotopias" essas substituições às vezes audaciosas para criar ou encontrar, em outra língua e sob outra forma, a correspondência tradutória perfeita de uma frase, conceito ou expressão.
Assim como nos manuais didáticos os tradutores aprendem que as citações bíblicas não devem ser traduzidas diretamente, mas transpostas segundo uma edição autorizada da Bíblia, também no caso dos provérbios incumbe encontrar um referencial compatível para essas transposições. Cabe dizer que esse manual de consulta se tornou agora disponível, ficando o problema da tradução de provérbios em inglês amplamente resolvido com a ferramenta indispensável deste dicionário.

Esforço de pesquisa
Sua origem, ou talvez sua seqüência lógica, pode ser encontrada em outra obra dos mesmos autores (coadjuvados por Estela dos Santos Abreu e Didier Lamaison): o "Dicionário de Provérbios Francês-Português-Inglês", lançado em 1999 pela Lacerda e ampliado em 2004 numa edição da Unesp. A reformulação ou a criação dessa nova estrutura lexical, no entanto, ganhou "momentum" para quem lida apenas com o idioma inglês -"a língua predominante do mundo moderno", nas palavras do prefaciador -ao propiciar mais agilidade e objetividade na forma de dicionário reversível.
Com o campo lingüístico circunscrito a um único idioma -decerto não pelo vezo itamaratiano de "eliminar" o francês-, a consulta se faz, no caso, imediata, dispensando o passeio inicial pelo espantoso elenco levantado por Dider Lamaison ou a prévia consulta aos índices complementares, que dão às outras edições um caráter de abrangência compatível com trabalhos de maior envergadura.

Tom proverbial
Além do minucioso esforço de pesquisa e compilação, louve-se nos autores a capacidade de ter criado provérbios "semelhantes" em português sempre que não encontravam uma equivalência preexistente, o que permitirá aos tradutores manterem o tom proverbial das citações, em vez de transcrevê-las literalmente, o que em geral só empobrece o texto.
É o caso, por exemplo, de "better the devil you know than the devil you don't know", que o prefaciador viu traduzido por um inexpressivo "melhor o diabo conhecido que o diabo desconhecido" e para o qual os autores conseguiram cunhar o belo símile: "Mais vale estrada velha que vereda nova". A ele, pois, tradutores e leitores em geral: mais vale um dicionário de provérbios à mão que dez suposições voando.
O aliciante mercado que se escancarou para os tradutores brasileiros com a multiplicação dos canais de TV a cabo -pelos quais transitam cerca de 1.500 filmes por mês, fora documentários, entrevistas, séries cômicas e quejandos provocou, a princípio, uma onda de ofertas de mão-de-obra não-qualificada que por uns tempos empulhou e confundiu os telespectadores.
Oferecendo-se a preços de liquidação, estudantes e aposentados, com sumárias noções de inglês, passaram a traduzir para esse novo mercado, que lhes parecia pouco exigente, o que provocou uma inundação de impropriedades, traições, absurdos, que atestavam o grau de incapacidade desses tradutores e o nível de aceitação pacífica do público. A velha Birmânia desapareceu do mapa dando lugar a Burma; Gênova, a terra de Colombo, aparecia então como Gennes; o rio Reno tornou-se o Rhin, e até o velho Platão aplastou-se num anônimo Plato.
Sem falar nos descalabros da tradução de frases idiomáticas ou em construções semânticas mais rebuscadas, que eram transpostas ao pé da letra ou simplesmente omitidas ou massacradas pelos tradutores. Nas legendas dos filmes passou de repente a "chover gatos e cachorros" no Brasil e, numa peça de Shakespeare, por exemplo, a palavra "subject" (súdito) surgia como "um sujeito", pouco faltando para ser transposta como "um cara".
Por sorte, houve a reação de telespectadores mais exigentes e da crítica especializada de televisão em geral, e hoje pode-se dizer que o nível das traduções (de filmes, por exemplo) é bastante boa e, em alguns casos, até mesmo elogiável. E louve-se a iniciativa (prática que já vinha sendo utilizada na Europa há decênios) de colocar nos créditos o nome do tradutor das respectivas produções, o que lhe atribui ao mesmo tempo o mérito e a responsabilidade do que foi traduzido.
Um problema, no entanto, persiste: o da gradação ou tom do vocábulo empregado. Como andamos numa onda de liberação geral, os nossos "legendários" resolveram pegar pesado e traduzir, com todas as letras, palavras que eram antes consideradas tabus. É claro que não estamos mais nos tempos em que precisávamos grafar m... ou nos referirmos a Cambronne para traduzir a "shit" que aparece na linguagem vulgar do cinema.
Mas há que atentar para a adequação do termo no contexto em que é empregado, pois em muitos casos esse "shit", por exemplo, corresponderá simplesmente a "droga!", e não à hoje (de)liberada merda. Carregar de propósito nas tintas, engrossar as falas mais do que se comportam na língua original é incorrer nos grosseiros deslizes dos tradutores que chovem cachorros ou fazem vênias aos sujeitos reais.

Terreno pegajoso
O "Dicionarinho do Palavrão & Correlatos Inglês-Português/Português-Inglês", de Glauco Mattoso, que acaba de sair em edição revista e aumentada, é um laborioso trabalho de pesquisa num terreno no mínimo escorregadio e pegajoso e, sem dúvida, um prato feito para os tradutores de filmes apimentados. Seguramente, todos os palavrões de ambas as línguas foram ali arrolados, com suas dezenas e mesmo centenas de sinônimos e variantes.
Seu manuseio, no entanto, requer algum cuidado. O tradutor dispõe ali de um fornecimento, por assim dizer, "no atacado", mas compete à sua experiência e sensibilidade proceder à necessária triagem e seleção para encontrar a equivalência de tom compatível com o que traduz.
Não se trata de puritanismo démodé, mas nada é mais desagradável do que ouvir um personagem dizer uma palavra quase banal em inglês e encontrar na legenda uma tatarana flamejante. Um dicionário sem dúvida útil aos tradutores, já que em geral essas palavras não se encontram compendiadas nos léxicos tradicionais. Mas, cautela!, diante dessa ampla varredura de Mattoso, vocês podem escorregar em ouriços que nem os mais desbocados millers e bukowiskis ousariam perpetrar.


Ivo Barroso é poeta e crítico, autor de "A Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.

Dicionário de Provérbios Inglês-Português/ Português-Inglês
537 págs., R$ 99,00 de Roberto Cortes de Lacerda e Helena da Rosa Cortes de Lacerda. Ed. Campus/Elsevier (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, CEP 20050-006, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/3970-9300).
Dicionarinho do Palavrão & Correlatos Inglês-Português/ Português-Inglês
315 págs., R$ 23,90 de Glauco Mattoso Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).
ESPECIAL PARA A FOLHA - 3 abril 2005

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