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SOBRE LORCA

 
FOLHA DE SP, 27 DE JULHO 2008

O Mundo Alucinante

PUBLICADO EM 2002, "GARCÍA LORCA E CUBA - TODAS AS ÁGUAS" PERMANECE VIRTUALMENTE DESCONHECIDO DOS CRÍTICOS; AUTOR EXPLICA QUE NÃO TEVE ACESSO À INTERNET E QUE FEZ SUA PESQUISA PELO CORREIO, DURANTE DOIS ANOS


Lorca se entusiasmou com o sotaque da ilha e exerceu uma liberdade sexual como jamais havia conhecido; ele foi muito livre aqui; não há registro de nenhuma reprovação a sua conduta sexual


Dusam Zidar/Shutterstock
 

Praça da Catedral, em Havana, uma das cidades visitadas pelo poeta surrealista espanhol Federico García Lorca durante os três meses que passou em Cuba, em 1930, vindo dos Estados Unidos

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A MATANZAS(CUBA)

 

Não há lugar no mundo que mais cultue a lembrança de Federico García Lorca (1898-1936) do que Cuba. O prestígio do poeta e dramaturgo andaluz do "verde que te quiero verde", que foi assassinado por militantes franquistas logo depois da deflagração da Guerra Civil Espanhola, resiste na ilha dos irmãos Castro.
É o escritor estrangeiro mais lido e representado, apesar da declarada preferência dos hierarcas comunistas pelo americano Ernest Hemingway (1899-1961), que chegou a morar na ilha.
Lorca passou meros três meses na ilha, no ano de 1930. Nas palavras do pesquisador Urbano Martínez Carmenate, 54, professor de língua e literatura hispano-cubana da Universidade Camilo Cienfuegos de Matanzas, foi uma visita que "contaminou o país" -tão intensa, com o poeta vivendo em tanta liberdade e gozando de tanto sucesso, que já se disse que, em Cuba, cada um tem o seu Lorca.
"García Lorca y Cuba - Todas las Aguas" (264 págs., 16,80), de Martínez Carmenate, tenta explicar a recíproca fascinação a partir do que chama de "biografia de uma visita".
Para isso, o pesquisador vasculhou a correspondência entre Lorca e intelectuais cubanos, refez o percurso do escritor pela ilha, reconstruiu, a partir da cobertura da imprensa, o entusiasmo local com as conferências e récitas do poeta.
A Folha encontrou Martínez Carmenate em seu apartamento, um quarto e sala inundado de livros e luz, na tarde quente e úmida em Matanzas (100 km a leste de Havana), conhecida como a "Atenas cubana" por sua intensa vida cultural.
Um computador recém-retirado da caixa brilhava novinho em folha na sala (a universidade tinha acabado de entregá-lo). "Não terá acesso à internet", ele me explica, sem parecer incomodado com o fato de a ilha ainda ser um dinossauro em termos tecnológicos. "Mas conseguirei me ligar à intranet de Cuba", diz.
Martínez Carmenate explica que "Todas as Águas" só foi possível graças a amigos e ao Patronato Cultural Federico García Lorca de la Diputación de Granada, que, da Espanha, mandavam-lhe pelo correio convencional livros e cópias de documentos e jornais.
Tudo foi sendo meticulosamente anotado a lápis em fichas e, daí, sistematizado no original manuscrito. Provavelmente como o próprio Lorca e seus contemporâneos fariam.
Ao lado da poltrona do escritor, vê-se um grande cinzeiro transformado em recipiente de borrachas e lápis.
O livro foi publicado pelo Patronato, na Espanha, e pelo Centro de Investigação e Desenvolvimento da Cultura Cubana Juan Marinello, em Havana. Embora seja um dos mais abrangentes estudos já feitos sobre a estada do poeta andaluz em Cuba, permanece praticamente ignorado, pelo difícil acesso à obra e ao escritor.
Martínez Carmenate trabalha no Museo Provincial Palacio de Junco, em Matanzas, e é presidente do Consejo Científico de la Dirección Provincial de Cultura.
Ele também dá aulas de cultura cubana na Escola de Arte (nível médio) de Matanzas. Só saiu de Cuba uma vez, para trabalhar em Angola, entre 1988 e 1989. Nunca foi à Andaluzia de Lorca.
Leia a seguir trechos da entrevista.

FOLHA - Como é possível hoje em dia escrever um livro de pesquisa sem a ajuda da internet?
URBANO MARTÍNEZ CARMENATE
- Meu método de trabalho foi, em primeiro lugar, buscar toda a bibliografia, tudo o que foi escrito pelos contemporâneos cubanos sobre o impacto da visita de Lorca. Escreveu-se muito sobre o que aconteceu em Santiago de Cuba, em Havana, sobre a viagem a Cienfuegos.
Sobre Matanzas quase não se disse nada.
Houve necessidade de levantar tudo o que saiu na imprensa. Surgiram novas cartas, recém-descobertas, na Espanha. E assim como era epistolar o contato entre Lorca e seus amigos, também foi epistolar o contato com meus informantes e colaboradores.
Sempre que saía algo novo sobre Lorca, eu escrevia a meus amigos na Europa e lhes pedia que me enviassem. Vinha pelo correio.
Esse trabalho foi feito de segunda a segunda; manhã, tarde e noite, durante dois anos. Sem computador, escrito a lápis. O computador só chegou aqui em casa há um mês e meio -e não tem conexão com a internet.
Só tenho o que se chama de intranet.

FOLHA - Por que García Lorca foi para Cuba?
MARTÍNEZ CARMENATE
- A atração entre o poeta e Cuba é bem anterior a sua chegada a Havana, em 7 de março de 1930. O intelectual cubano Juan Marinello (1898-1977) lembrava-se de escutar Lorca lhe contar sobre o fascínio que tinha, ainda criança, pelas tampas das caixas de charutos cubanos que chegavam a Fuentevaqueros (onde Lorca nasceu) para abastecer o negócio de seu pai, que era importador.
As litogravuras coloridíssimas carregadas de palmeiras, plantações, céus pintados de turquesa, medalhas de ouro o faziam sonhar com uma Cuba distante e onírica.
Além disso, havia as famosas "habaneras", o primeiro ritmo autenticamente cubano a ser exportado para a Europa e que o menino Lorca escutava nas vozes de uma tia e uma prima.
Cuba era a ilha do sol ardente, da sensualidade e do ritmo.
E houve o contato, já na juventude, com intelectuais cubanos, entre os quais se destava José Maria Chacón y Calvo, que se tornou um amigo querido e que o colocou em contato com poetas da ilha.

FOLHA - Como ele chegou aqui?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Ian Gibson, o mais importante biógrafo de Lorca, diz que o poeta saiu da Espanha naquele ano de 1929 muito desesperado do ponto de vista amoroso -estava apaixonado por um pintor, em um relacionamento muito tumultuado, e decidiu sair.
Depois de um período curto na Inglaterra e na França, chegou a Nova York, onde estudou na Universidade Columbia, fez conferências e andou pelos bairros miseráveis da cidade pós-tragédia social do crack na Bolsa de Nova York.
Uma experiência intensa, que serviu de base para "Poeta em Nova York", que ele provavelmente concluiu durante sua estada em Cuba.
Foi um convite da Instituição Hispanoamericana de Cultura para apresentar-se em Havana que levou Lorca à ilha. Chegou mais calmo do que estava ao sair da Espanha.

FOLHA - "Poeta em Nova York" é, entre outras coisas, uma denúncia contundente da opressão capitalista, principalmente aquela é exercida contra os negros. Em sua opinião, qual é a contribuição da estada de Lorca em Cuba para sua obra e sua visão de mundo?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Existe um mito envolvendo essa viagem: o de que Lorca teria fugido dos EUA e ido para Cuba porque se sentia oprimido naquela que ele mesmo chamou de "cidade mais atrevida e mais moderna do mundo".
Chamo de mito, mas, na verdade, é apenas uma idéia demasiadamente simplista. Lorca envolveu-se com aquela "babilônia trepidante": "Em três de seus arranha-céus, caberia Granada inteira", disse.
Ele viu a tragédia social acontecendo, em particular com os negros. Mas Lorca sabia, antes de ir para os EUA, aonde estava indo. Em carta a um amigo, disse: "Nova York me parece horrível, mas por isso mesmo vou para lá". A viagem a Cuba, assim, não foi uma fuga, mas uma escala a mais.

FOLHA - Mas em que essa estada em Cuba influiu sobre ele?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Era um sonho conhecer Cuba -o mesmo que acontecia com muitos espanhóis. Ele se entusiasmou com o sotaque da ilha e exerceu uma liberdade sexual como jamais havia conhecido. Lorca foi muito livre aqui. Não há registro de nenhuma reprovação a sua conduta sexual.
E veja, em Cuba, como na Espanha, vivia-se um período de forte anti-homossexualismo, de repressão e machismo puro.
Mas, ambígua como sempre foi a sociedade cubana, ninguém se intrometia com ele, ninguém o discriminou.

FOLHA - Desse ponto de vista, afetivo e sexual, pode-se dizer que a estada em Cuba serviu como uma liberação, já que o próprio Lorca se referiria ao período como "o mais feliz" de sua vida? Poemas como "Ode a Walt Whitman" podem ser vistos como prova de que ele passou a tratar a homossexualidade mais abertamente após a viagem a Cuba?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Sem dúvida, muito da sensação de estar em casa, que Lorca viveu em sua estada cubana, tem a ver com o contraste com o que ele viveu nos EUA. A sociedade cubana sempre foi mais aberta, e Cuba foi um dos primeiros países a aceitar o divórcio, ainda nos anos 1920. Sempre esteve um pouco adiante em termos comportamentais.
O Lorca que saiu de Cuba era outro em comparação com o que aqui chegou. Isso se deu principalmente em relação a sua homossexualidade. Ele não apenas viveu mais livremente aqui, mas, de certa maneira, se tornou também mais disposto a viver sua homossexualidade.
E concordo com você: "Ode a Walt Whitman" [leia trecho na pág. ao lado] certamente é exemplo disso.

FOLHA - Assim, pode-se ver as viagens a Nova York e a Cuba como complementares e dialéticas -muito crítico com uma, muito condescendente com a outra?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Repito: considero uma politização vulgar, chauvinista, analisar a obra do poeta como se ele fosse um repórter de seu tempo. Antes de tudo, ela deita raízes em questões existenciais.
Veja, em Nova York chegou um homem amorosamente atormentado.
Aqui, Lorca passou apenas três meses, mas foram três meses em que fez maravilhas. Foi a Santiago de Cuba. Foi ao interior, a Cienfuegos, veio até Matanzas, passou por Pinar del Río, freqüentou os salões de Havana: Lorca se moveu muito, sentiu-se à vontade.
Em uma carta endereçada aos pais, escreveu: "Si mi pierdo, que me busquen en Cuba o en Andaluzia". Foi um amor imediato, feito em grande parte de similitudes e paralelos.

FOLHA - Por exemplo...
MARTÍNEZ CARMENATE
- Lorca logo descobriu como a arquitetura de Havana se parecia com a andaluz, com seus solares voltados para pátios centrais. Isso é tipicamente andaluz.
Ele adorava entrar pelos pátios das casas e dizer: "Estou na Andaluzia; estou em Granada, em Cádiz". É uma identidade forte, com origem histórica: a colonização cubana foi grandemente influenciada pelos andaluzes, que aqui chegaram com os catalães e canários.

FOLHA - Como a Cuba de hoje trataria o homossexual García Lorca?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Hoje, existe propaganda pública pela TV, em outdoors, a favor do reconhecimento dos direitos dos homossexuais e contra a discriminação. A própria filha do presidente Raúl Castro [Mariela Castro] é a diretora do Centro Nacional de Educação Social, uma entidade financiada pelo governo, que luta pelos direitos das minorias.
Ela é a primeira defensora histórica dessa causa. Inclusive, propiciou recentemente a celebração da união civil de duas mulheres homossexuais.
Acho que estamos avançando muito rapidamente nessa área.

FOLHA - Como era a vida dele aqui?
MARTÍNEZ CARMENATE
- O que se sabe a respeito é o que ficou documentado na correspondência, nos jornais ou nas recordações de contemporâneos, em geral escritores pertencentes aos estratos da alta burguesia, como o amigo José Maria Chacón y Calvo.
Mas existem grandes lacunas nesse material, sugerindo momentos em que o poeta mergulhou na Cuba dos pobres. Aqui em Matanzas, por exemplo, sabe-se que ele ia freqüentemente a casas de negros.
Essa relação com a gente do povo o encantou. Era a época do movimento "sonero", gênero musical popular mais acelerado que a canção, e que começava a se expandir pela Europa. Fascinado pelo som, Lorca, que tinha sólida formação em música, perdia-se nos chamados "choris", que nada mais eram do que cabarés improvisados, em que se ouvia e dançava música tocada por orquestras de músicos negros. Lorca se impressionou muito e mergulhou nisso.

FOLHA - Como a descoberta da música negra se relaciona com suas experiências vanguardistas?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Cuba já conhecia Lorca. Por isso, ele recebeu o convite do presidente da Instituição Hispano-Cubana de Cultura, que pretendia estreitar os laços entre os dois países. E sua presença aqui foi um sucesso de público.
Ele tinha um encanto muito especial. Apesar de não ser um sujeito bonito fisicamente, tinha graça, era capaz de ver a poesia em qualquer parte (aliás, como era típico dos surrealistas, que conseguiam tirar poesia de qualquer fato).
Já havia nele a tendência progressista, ao chegar a Cuba.
Sempre tomou partido dos pobres -solidarizou-se inclusive com uma greve de telefonistas, que o impediu de manter contato com sua família. Nada mais natural, assim, do que buscar a fusão de sua poesia com a tradição popular.

FOLHA - Como fez isso?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Derivada do vanguardismo, a poesia de Lorca estava passando sua etapa de experimentação concreta, para desembocar no chamado neopopularismo, cuja idéia era sair em busca dos elementos populares -os "Poemas Gitanos" são exemplo disso, a partir dos elementos da cultura tradicional cigana.
Em Cuba, essa experimentação serviu de inspiração para a busca dos componentes negros da cultura cubana -ia-se em busca da extração "negrista", "afro-cubana" ou "mulata", típica da cultura cubana.

FOLHA - Como esse "negrismo" se manifestou na poesia?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Lorca ficou impressionado com a poesia de Nicolás Guillén (1902-89), que publicou "Los Motivos de Son" no mesmo ano em que ele chegou a Cuba. Nos "Motivos", os negros falavam com suas próprias vozes (e não por acaso: o próprio Guillén era mestiço e conhecia o modo de falar do negro pobre cubano).
Para Lorca, foi um deslumbramento a aventura de transformar o som em poema. No poema chamado "Negro Bembón", por exemplo, Guillén escreve:
"¨Po qué [ele fala "po qué",
em vez de "por que"] te pone
tan brabo,/
cuando te disen negro
bembón,/
si tiene la boca santa,/
negro bembón?"
Guillén penetrou no modo de expressão dos negros, expressando-se como eles, fazendo dela uma forma de poesia.

FOLHA - Quem é García Lorca para o cubano médio? Suas poesias e suas peças são ensinadas na escola?
MARTÍNEZ CARMENATE
- Sim, as escolas ensinam Lorca. Mas, mais do que isso, Cuba vive Lorca. Comprovadamente, ele tem mais edições em Cuba do que Ernest Hemingway.
Até a década de 1990, o Gran Teatro de La Habana se chamava Federico García Lorca, uma homenagem incrível. Nem a Espanha tinha um teatro chamado García Lorca. Depois de uma reforma, a principal sala de danças do Gran Teatro recebeu o nome do poeta.
E seus poemas também ficaram muito populares porque vários deles receberam melodias feitas por músicos cubanos. Lorca ainda hoje é o dramaturgo estrangeiro mais representado em Cuba.
No centenário de seu nascimento, comemorado em 1998, republicaram-se muitos livros dele. Ele é sempre alvo de um vivo interesse em Cuba.

FOLHA - O sr. descreve com estranhamento um aspecto da Cuba dos anos 30: "Os produtos mais anunciados levam nomes de fonética estrangeirizante: "Flit", contra mosquitos e baratas; navalhas "Kirby Beard"
ou "Gillette", para "o barbear perfeito'; "Colgate", creme dental; relógio "Westclox" (...)" e outros.
MARTÍNEZ CARMENATE
- (interrompendo) Já sei. Você vai me dizer que é assim em qualquer lugar do mundo ocidental, não é? OK. Mas eu sou cubano.


 
 
 
 
 
Leia trecho de
"Ode a Walt Whitman",
de Federico García Lorca
 
 

Nova York de lama,
Nova York de arame e de morte.
Que anjo levas oculto na face?
Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?
Quem o sonho terrível de tuas anedotas manchadas?

Nem um só momento, velho formoso Walt Whitman,
deixei de ver tua barba cheia de mariposas,
nem teus ombros de veludo gastos pela lua,
nem tuas coxas de Apolo virginal,
nem tua voz como uma coluna de cinza;
ancião formoso como a névoa
que gemias como um pássaro
com o sexo atravessado por uma agulha,
inimigo do sátiro,
inimigo da vide
e amante dos corpos sob o grosseiro pano.
Nem um só momento, formosura viril
que em montes de carvão, anúncios e ferrovias,
sonhavas ser um rio e dormir como um rio
com aquele camarada que poria em teu peito
uma pequena dor de ignorante leopardo.

Nem um só momento, Adão de sangue, macho,
homem só no mar, velho formoso Walt Whitman,
porque pelas açotéias,
agrupados nos bares,
saindo em cachos dos esgotos,
tremendo entre as pernas dos chauffeurs
ou girando nas plataformas do absinto,
os maricas, Walt Whitman, te sonhavam.

Também esse! Também! E se despenham
em tua barba luminosa e casta,
louros do norte, negros da areia,
multidões de gritos e ademanes,
como gatos e como as serpentes,
os maricas, Walt Whitman, os maricas
turvos de lágrimas, carne para chicote,
bota ou mordedura dos domadores.



Poema que faz parte de "Poeta em Nova York" (em"Obra Poética Completa"). Tradução de WILLIAM AGEL DE MELLO.





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