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Índios gays são alvo de preconceito no AM

 
Índios gays são alvo de preconceito no AM

Jovens da etnia ticuna, que vivem em aldeia em Tabatinga, são agredidos com pedras e garrafas e chamados de "meia coisa"

"Isso é novo para a gente", diz administrador da Funai; Darcy Ribeiro registrou homossexualidade entre índios desde o século 19

KÁTIA BRASIL
DA AGÊNCIA FOLHA, EM TABATINGA (AM)

FOLHA DE SP 27/07/2008


Entre os índios ticuna, a etnia mais populosa da Amazônia brasileira, um grupo de jovens não quer mais pintar o pescoço com jenipapo para ter a voz grossa, como a tradição manda fazer na adolescência, nem aceita as regras do casamento tradicional, em que os casais são definidos na infância.
Esse pequeno grupo assumiu a homossexualidade e diz sofrer preconceito dentro da aldeia, onde os gays são agredidos e chamados de nomes pejorativos como "meia coisa". Quando andam sozinhos, podem ser alvos de pedras, latas e chacotas.
Três ticunas da aldeia Umariaçu 2, na região do Alto Solimões, em Tabatinga (1.105 km de Manaus), contaram para a Folha como é a vida dos homossexuais indígenas na fronteira com a Colômbia e o Peru.
A população ticuna no Alto Solimões soma 32 mil índios. Na aldeia Umariaçu 2, que fica no perímetro urbano de Tabatinga, vivem 3.649 índios ticunas, 40% com menos de 25 anos. Entre esses jovens, pelo menos 20 são conhecidos como homossexuais assumidos.
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), há registros de gays também nas aldeias de Umariaçu 1, Belém do Solimões, Feijoal e Filadélfia.
"Isso é novo para a gente. Não víamos indígenas assim, agora rapidinho cresceu em todas as comunidades. São meninos de 10, 15 anos", disse Darcy Bibiano Murati, 40, que é indígena da etnia ticuna e administrador substituto da Funai.
Marcenio Ramos Guedes, 24, e seu irmão, Natalício, 22, pintam o cabelo e as unhas e fazem as sobrancelhas. Trabalham como dançarinos em um grupo típico ticuna que se apresenta nas cidades da região.
Marcenio diz que brigava muito com o pai e que saiu de casa aos 15 anos. "Fui para Tabatinga trabalhar como "empregada doméstica". Eu fazia comida, passava roupa, lavava."
Ao voltar para casa, uma construção de madeira com dois cômodos, onde mora com quatro dos sete irmãos e os pais, Marcenio resolveu cuidar dos afazeres domésticos. O grupo de dança foi criado em 2007, com apoio da família.
"Não sofro discriminação por dançar, todo mundo respeita, assiste. Sofro preconceito [de outros jovens] na aldeia. Se falo alguma coisa, querem me bater, jogar pedra, garrafa."
Natalício diz que tem medo de andar sozinho. "Vou sempre com um colega", afirma.
O ticuna Clarício Manoel Batista, 32, é professor do ensino fundamental e estuda pedagogia na UEA (Universidade Estadual do Amazonas), em Tabatinga. Ele foi um dos primeiros a assumir a homossexualidade na aldeia Umariaçu 2. "Alguns me discriminam -indígenas daqui, não-indígenas também. Fico calado, não falo nada. Eu não ligo para eles", diz.
Clarício disse que contou aos pais que era gay aos 16 anos. "Meu pai não me maltratava porque sempre gostei de estudar, sempre fiz tudo em casa: limpeza, comida, lavar louça."
Questionado se foi pelo trabalho doméstico que ganhou respeito em casa, ele confirmou. "Na verdade, eles [os pais] não queriam que eu fosse assim [gay]. Eles não gostam. Dizem: ninguém gosta desse jeito."
O antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) escreveu que há registros de homossexualidade entre índios desde ao menos o século 19. Em Mato Grosso, ele estudou os cadiuéus, que chamavam o homossexual de kudina -que decidiu ser mulher.
O cientista social e professor bilíngüe (português e ticuna) de história Raimundo Leopardo Ferreira afirma que, entre os ticunas, não havia registros anteriores da existência de homossexuais, como se vê hoje.
Ele teme que, devido ao preconceito, aumentem os problemas sociais entre os jovens, como o uso de álcool e cocaína.
"Isso [a homossexualidade] é uma coisa que meus avós falavam que não existia", afirmou.

 

 

 

Assunto não é tabu, diz antropóloga

DA AGÊNCIA FOLHA, EM TABATINGA

 

Antropólogos como Pierre Clastres (1934-1977) e Darcy Ribeiro (1922-1997) registraram em artigos a existência de casos de homossexualidade nas tribos indígenas do Brasil. Mas, sobre os índios gays contemporâneos, não há pesquisas.
A antropóloga da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) Helena Rangel diz que a homossexualidade é tão antiga quanto a humanidade e que, no mundo indígena, alguns mitos fazem referência a essa opção sexual. "Na sociedade indígena, há uma divisão muito clara do trabalho entre homens e mulheres, então, se um homem quer ser mulher, assume o trabalho feminino. Não é um assunto tabu nem absurdo."
Sobre a maior visibilidade dos homossexuais atualmente, Rangel diz que acredita ser um fenômeno mundial e que não pode comentar especificamente sobre os ticunas. "A homossexualidade tem se tornado um fenômeno mais explícito", disse.
Com relação ao preconceito enfrentado pelos indígenas, ela afirma que a discriminação hoje pode ser maior do que a enfrentada anteriormente, devido à maior aproximação dos índios com a moral ocidental-cristã.
(KB)

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