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EUCANAÃ FERRAZ

HABITARE
 
I
Mais que nenhuma outra:
casa.
 
Mais que nenhuma outra:
branca.
 
Mais inteira que possa:
sem porta, sem tranca.
 
Ei-lo: ovo
(Parthenon, barraco).
 
II
Estranho granito, estranha guarita.
Gradil compacto, excêntrica parede.
 
Chão, teto, dobradiça: é tudo.
Ostras habitam o outro da casa.
 
Porém, sobre o pátio prosaico da mesa,
carapaças, capas-pedras de livros nunca abertos,
 
quando abertas mostram glândulas,
tripas, transístores, dentros
 
de um dentro sem
mistérios.
 
SENTENÇA
 
Na canção, perdoar.
Deixar que os inimigos durmam
 
na canção, enquanto caminhamos
à cata de comida, de pátria, de beleza.
 
Na canção, tentar não morrer,
tentar não estar mudo.
 
Aceitar o acorde ruim,
dormir ao relento, ter um filho,
 
dar a outra face ao silêncio
da canção, na canção.
 
NÃO SÃO
 
Podem vir abruptas, íngremes, arrevesadas.
Podem ser afabilidade e pele.
Podem ser inflamar-se,
Podem ser guarida.
 
Acontece: chegam inteiras,
toda justeza cada sílaba,
definitivas, despóticas
ou privam-se do silêncio em que vivem, livres,
para serem acaso e litígio
no unto de páginas
e telas de computador,
à espera de alguma dignidade.
 
Não há obstetrícia certa
para com elas.
Palavras não são
farinha do mesmo saco.
 
POR ISSO
 
Se quer dedicar-se à pintura
deve começar por cortar a língua.
 
Matisse, penso nele, sempre,
que cismava Tolouse-Lautrec.
 
Quer dedicar-se à poesia?
Inicie com abrir os olhos.
 
Leve, obediente, a mão: não deve
a criada tornar-se patroa.
 
Aprender, aprender, aprender,
encontrar, descobrir,
 
até que um dia se possa afirmar:
finalmente, já não sei fazer.
 
VIAGEM
 
Não levaremos a alma.
Entraremos descalços
ali
 
onde visível anel tudo alinhava
e o corpo se descubra mais contente.
Alma nenhuma.
 
Nada que não caiba na fome.
A carne cantará docemente
de não sabermos quem somos.
 
RELOJOARIA
 
Dizem
diante de quem morre:
chegou sua hora. Hora que,
 
certa e da qual não se foge,
não é grão n'ampulheta,
o digital não desenha,
 
barco algum espera e,
pulso nenhum, oco,
é à prova de cronômetros.
 
Mais que marco
do instante em que
se quebrou a máquina, é ela,
 
a hora, que, inexorável,
gasta, morde, rói
e rompe a corda.
 
 

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