Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Ser que nunca fui
Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem nunca ter partido
para o norte aceso
no arremedo da esperança
Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais
Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava
Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
( em "Raiz de Orvalho e outros poemas")
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
Mia Couto
de 'Raiz de Orvalho e outros poemas'.
Agosto 1979
ÂNSIA - Mia Couto
Não me deixem tranqüilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma
As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos tivéssemos trocado
para morrer vivendo
Novembro, 1981
O verso...
O verso
une o verso,
universo em página única
de um só lado, sem verso.
A parte,
então, parte o colar
missanga entre palavras: nasce o particular.
Assim,
no bulir da vida,
o abolir da morte.
Com um físico... de Mia Couto
Com um físico destes
nem posso ser metafísico?
Com tanta treva
só quero que ela se atreva.
E me traga
um búzio para deitar o meu vazio
um baton para o astrolábio
uma semi-pedra preciosa
um clandestino destino, já sem clã
Poema da despedida
Não saberei nunca
dizer adeus
Afinal,
só os mortos sabem morrer
Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser
Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo
Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos
Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca
Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo
Raiz de Orvalho - Mia Couto
Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
Árvore
cego
de ser raiz
imóvel
de me ascender caule
múltiplo
de ser folha
aprendo
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo
In “Despedida”
Companheiros
quero
escrever-me de homens
quero
calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho
e quando ficar sem mim
não terem escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados
deixo
a paciência dos rios
a idade dos livros
mas não lego
mapa nem bússola
por que andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me
às vezes
viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça
por ora
basta-me o arco-íris
em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros
Fundo do mar
Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados
Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço
In “Despedida”
Manhã
Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo
Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar
Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos
Educadamente mortos
In “Despedida”
Morte silenciosa
A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação
Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida
Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada
In “Despedida”
Nocturnamente
Nocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo
Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
In “Despedida”
Palavra que desnudo
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
Para ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que falhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida
In “Despedida”
Quissico
1.
Deixei o sol
na praia de Quissico
De bruços
sobre o Verão
eu deixei o Sol
na extensão do tempo
Molhando, quase líquido,
o dia afundava
nas fundas águas do Índico
A terra
se via estar nua
lembrando, distante,
seu parto de carne e lua
2.
Não o pássaro: era o céu
que voava
O ombro da terra
amparava o dia
A luz
tombava ferida
pingando
como um pulso suicida
um minhas ocultas asas
In “Despedida”
Saudades
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés
Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas
Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta
Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono
In “Despedida”
Ser que nunca fui -
Começo a chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem nunca ter partido
para o norte aceso
no arremedo da esperança
Nessas noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais
Faltou-me viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava
Houve lágrimas que não matei
porque me fiz
de gestos que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
( em "Raiz de Orvalho e outros poemas")
ÂNSIA - Mia Couto
Não me deixem tranqüilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma
As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos tivéssemos trocado
para morrer vivendo
Novembro, 1981
minha ferida...
Minha ferida é só
estar vivo
Minha alegria
é o sono de uma nuvem
O verso... O verso
une o verso,
universo em página única
de um só lado, sem verso.
A parte,
então, parte o colar
missanga entre palavras: nasce o particular.
Assim,
no bulir da vida,
o abolir da morte.
Com um físico...
Com um físico destes
nem posso ser metafísico?
Com tanta treva
só quero que ela se atreva.
E me traga
um búzio para deitar o meu vazio
um baton para o astrolábio
uma semi-pedra preciosa
um clandestino destino, já sem clã
In “Despedida”
Manhã
Estou
e num breve instante
sinto tudo
sinto-me tudo
Deito-me no meu corpo
e despeço-me de mim
para me encontrar
no próximo olhar
Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão
Nada me alimenta
porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira
A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos
Educadamente mortos
In “Despedida”
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Morte silenciosa
A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave a inquietação
Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida
Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada
In “Despedida”
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Palavra que desnudo
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
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Para ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que falhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida
In “Despedida”
-------------------------------------------------------------
Só a lava...
Só a lava
lava o vulcão
O uivo
é o cão
chorando a ausência de um cão.
--------------------------------------------------------
Sotaque da terra
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol
In “Despedida”
---------------------------------------------------------------
Trajecto
Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher
In “Despedida”
--------------------------------------------------------------------------
Despedida
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores
Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo
Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal
E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe
Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne
Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve
In “Despedida”
-------------------------------------------------------------------------
(Escre)ver-me
nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios
a vida tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
--------------------------------------------------------------
Raiz de orvalho
Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram
Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada
De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens
Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância
Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno
In “Despedida”
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