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DUBITO ERGO SUM - Millor Fernandes sobre Dom Casmurro

DUBITO ERGO SUM
Machado de Assis
O OUTRO LADO DE DOM CASMURRO
Millôr Fernandes

Publicado em Veja, 26 de janeiro de 2005

Quando se fala cada vez mais de Machado de Assis, a pretexto do cinema,
permito-me, com o desrespeito que Deus me deu (inclusive em relação a Ele
próprio) falar do Bruxo. Como não sou dos maiores e nem mesmo dos menores
admiradores do fundador da Academia Brasileira de Letras ("a Glória que
fica, eleva, honra e consola", eu, hein?) não vou discutir a maciça,
impenetrável, inexpugnável web que se criou em torno dele. Nem polemizar com
a desconfiança que os maiores erúditos (com acento no ú, por favor) e
curiosos têm pra relação equívoca entre Capitu, a "dos olhos de ressaca"
(que Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre) e Escobar, o
mais íntimo amigo de Bentinho, narrador e personagem principal do livro.
Essa desconfiança vem desde 1900, quando Machado de Assis publicou Dom
Casmurro. Afinal Capitu deu ou não deu pro Escobar? Dom Casmurro é ou não é
corno, palavra cujo sentido de infâmia - ainda mantendo bastante de sua
força nesta época de total permissividade - na época de Machado era motivo
de crime passional, "justa defesa da honra", e outros desagravos permitidos
pela legislação e pelos costumes. A palavra corno era tão infamante que
mesmo o sangue não lavava honra nenhuma. O cara era corno e, lavasse ou não
lavasse o brio dos seus chifres com todos os sabões e explicações, o
universo dos olhares convergia, pelo menos ele assim sentia, pra sua
infamada testa.
Curioso que, ontem como hoje, o epíteto "corna" não se grudou às mulheres.
Ela é tola, idiota, "não sei como suporta isso!", "corneia ele também!", mas
o epíteto não colou. Mas Dom Casmurro sofre da dor específica umas 50
páginas do romance, envenenado pela hipótese da infidelidade da mulher.
Eu, porém, ao contrário dos erúditos, não tenho hipótese. Capitu deu pra
Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca até o DNA
de seu (do Escobar, claro) filho porque ainda não havia DNA, que atualmente
está acabando com o romance "policial" e a novela passional.
Mas Bentinho/Machado fica humilhado, desesperado mesmo, à proporção em que o
filho vai crescendo e mostrando olhos, mãos, gestos e tudo o mais do amigo,
agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na cama
conjugal).
Essa é a intriga principal do livro. Mas, curiosamente, pela nossa eterna
pruderie intelectual, ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de
relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho
e Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do
pecado "que não ousa dizer seu nome".
Mas, olhe, não estou afirmando nada. Leiam estes destaques (da edição da
Editora Nova Aguilar), que colhi no original, e julguem. Quem fala é
Bentinho/Machado:
(pág. 868)
Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um
pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.
(mesma página)
Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do
quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os
lados, muita luz e ar puro... Não sei o que era a minha. Mas como as portas
não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as
e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou....
(pág. 876)
Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes
também e Escobar mais que os rapazes e os padres.
(pág. 883)
Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e
lisa. A testa é que era um pouco baixa... mas tinha sempre a altura
necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.
Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino
e delgado.
(mesma página)
Fui levá-lo à porta... Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do
ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao
longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.
(mesma página)
Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e
afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.
- É o Escobar, disse eu.
(pág. 887)
- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você
é a pessoa que mais me tem entrado no coração...
- Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça...
Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro,
e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.
(pág. 899)
Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se
não me visse desde longos meses.
- Você janta comigo, Escobar?
- Vim para isto mesmo.
(pág. 900)
Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí,
mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio;
lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria
acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza
parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.
(pág. 901)
Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude
deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa
efusão: um padre que estava com eles não gostou...
(pág.902)
Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os
dedos.
(pág. 913)
Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se
tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.
(pág. 914)
A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao
ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto;
estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com
grande força.
(pág.925/26)
(Depois da morte de Escobar)
Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé,
sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita
metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo
e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória,
escrita embaixo, não nas costas do cartão: "Ao meu querido Bentinho o seu
querido Escobar 20-4-70".

Mas, pros que ainda tenham qualquer dúvida, reservei para o fim a moral da
história de Bentinho/Machado, a cena e a frase conclusivas. Está na página
845 do fúlgido romance. Bentinho, ele próprio, ficou pasmo com seu feito de
bravura, quando conseguiu dar um beijo (na verdade apenas uma bicota) em
Capitu. É ele próprio quem fala, cheio de entusiasmo, na página 845:

"De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de
orgulho: - Sou Homem!"

Em Millôr Online - enfim um escritor sem estilo!

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