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GUARDAR - um conto de Victor Paes



Guardar

Naquele momento havia para Túlio dois horários. O primeiro deles cumpria em uma sala de persianas, dentro de um arquivo onde só uma das mãos folheava, a outra atravessada em um caco de vidro. A mulher perguntou sobre aquele lenço e ele mentiu a mão. O outro horário cumpria, ao mesmo tempo, em outra sala, do outro lado da rua, onde a mão continuava a folhear, embora pouco houvesse para folhear, apenas um envelope de onde não saiu nada que lhe desviasse a atenção de mais um outro horário. Nesse horário a mão ferida era a outra.

Em ambos os horários não havia almoçado nem tomado um banho nas últimas quarenta e oito horas.

Um terceiro horário: após tantos anos de informações quase apenas bibliográficas sobre o historiador pesquisado, havia agora recebido da própria família, em seu bicentenário, acesso a um material pessoal que até agora estava guardado apenas em boatos. Então, tomaram chá, com perguntas e apertos de mão. Ele não sabia às vezes qual das mãos oferecer.
– Túlio, por favor, só não faça missa de minha família...

"Missa" para Madame Haendel era qualquer tipo de "atenção controlada". Nesse caso, se referia ao suicídio de Maurice e principalmente a seus motivos. Ela o queria confortável entre carreira, família, viagens e que até se mencionasse algumas de suas péssimas fixações... Mas que ninguém comprasse uma letra por isso. O desenho a nanquim estava em um envelope preto e ele já o abria.
Outro horário: subitamente, invadia uma varanda, desmontava uma porta, talvez um museu. Lá dentro, tanta escuridão, preferia mais açúcar no chá.

Desistiu de abrir o envelope, pois se frustraria com o último esclarecimento dessa pesquisa, mais do que com o primeiro: O primeiro, em palavras de Maurice:"O estudioso deve estar distraído sempre, a cada vez que algo lhe exija a atenção. Porém, deve estar também sempre um degrau abaixo de todo solo (e o rosto que lhe olhem seja somente um vulto do seu) para que possa ver sem ser visto. Esta deve ser uma metáfora de sua insônia."

Tanta distração, que Maurice acabou por começar a conversar com pessoas imaginárias. E deu a elas tanta atenção, que começou a estudá-las. O que mais o fascinava era o fato de saber sempre que eram imaginárias e, ainda assim, nunca lhes negar sua simpatia. Pela manhã, cumprimentava-as antes do café.

Um quinto horário: Túlio lê em uma cafeteria, roubando para si a autoria, um poema de Maurice, que nem escreveu poemas:
"Balaústre de nuvens
Teu céu, teto de cair
Sobre minha testa antes
Que tuas sombras me cubram
Desse abismo de que és feito"
Dentro do museu, Túlio tateou o escuro, esculturas negras, armas e móveis negros, telas negras. Até que acendesse a lanterna.

As luzes se apagaram, e ele, com o papel na mão, foi aplaudido.

Mesmo na claridade o envelope era negro. Decidiu abri-lo em sua sala. Se tivesse uma, faria isso.

Na sala, decidiu de novo abrir o envelope.

Em sua casa, Maurice estava em cada gaveta, mesa ou folha no chão.

Em sua casa, Maurice escrevia melhor, rodeado e ouvindo suas próprias personagens (como ele
as queria chamar).
"Contam-me sobre si, agradáveis de si, embora circunspectas em algumas palavras. Jamais me estorvam quando não são o objeto da pesquisa. Quando me volto para o passado, não me seguem... recolhem-se nas sutilezas desse presente e já estão de novo ocultas."

Maurice publicou dois volumes sobre elas: um sobre suas histórias (aceito como ficção) e o outro sob o respaldo de um estudo de seres elementais, nos quais acreditava ainda menos. Um terceiro volume levou consigo ao saltar do penhasco. Trecho encontrado em seus guardados, segundo se acredita, pertencente a esse volume:
"... pois ele me foi especialmente caro. Seus gestos deixaram de ser confundidos com as linhas dos objetos de minha sala, como era o costume com os outros, e agora pareciam movimentos destes próprios objetos. Em pouco tempo me vi defendendo-me de braços de cadeiras. Há nele uma fúria material, como se estivesse negando-lhe minha atenção por eu estar à vontade em minha própria casa. Todos nos sentimos hostilizados e alguns quase mais não falam. Culpo-me por lhe ter feito crer que sou abnegado. Pois não sou. Às vezes quase me esqueço de que ele não existe..."

Outro trecho, de alguns meses depois:
"... e não existe... no entanto, a cada segundo me adivinha o que farei no próximo segundo... me grita o porvir e já não sei o quanto desse porvir veio realmente... a pouca saúde que me estava aceitavelmente pendendo por essa matemática de absurdos já não tem mais qualquer sustento... não há mais matemática... ele agora quase quer existir... assombramo-nos mutuamente..."

Maurice fez missa de si um dia depois.

No palco, um amigo de Túlio recita:
"Túlio tirou o caco de vidro
da mão o mais rápido
que não pudesse
ver"

Túlio abre o envelope. O desenho a nanquim tem a assinatura de Maurice Haendel. Atrás da folha, o nome do desenho: "Túlio em minha cadeira".
Imagem Nude over the bed, Thomas Kelly

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