eu gosto muito desse menino: MÁRIO QUINTANA
Entrevista de Mario Quintana no programa “As músicas que fizeram a sua cabeça”. Entrevistadora: Ivete Brandalise Data: 2 de janeiro de 1990 Rádio FM Cultura
Ivete – Ele nasceu no Alegrete e vive em Porto Alegre, felizmente. É o homem que escolhemos para iniciar este ano de 90. O grande poeta do Rio Grande do Sul. Nós vamos conhecer as músicas que fizeram a cabeça de Mario Quintana. Mario, este homem que faz poema, que faz música com suas palavras, que músicas que foram incorporadas ao seu patrimônio afetivo ?
Quintana – Eu não gosto de músicas só com açúcar. Eu não gosto de música de ópera.
Ivete – Por que não?
Quintana – Porque parece namoro de gato, não termina nunca e não deixa a gente dormir.
Ivete – Que músicas fazem a tua cabeça ?
Quintana – A 4ª sinfonia de Maler, pois ela é uma música angustiada e eu como todos neste fim-de-século estamos angustiados. Gosto também de Cânticos Peregrinos de Wagner e a Canção dos Barqueiros do Wolga.
Ivete – Tu falaste na angústia de Maler. Tu achas que a angústia de ajuda a criar ? Quintana – A angústia ajuda a criar porque um poema sempre se faz num estado de inquietação, que não deixa de ser angústia. Embora não seja uma angústia de desespero, mas uma angústia que traz esperança.
Ivete – Um poema é como uma gota d’água bebida no escuro?
Quintana – Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Ivete – Em termos de música, o que mais te impressiona na música ?
Quintana – É a força.
Ivete – E a música que tu fazes com as palavras ? Como tu classificas ?
Quintana – O pessoal sempre me tem como um poeta suave. Cheguei a ser chamado de anjo poeta. Eu tenho todos os sons, desde as coisas mais amorosas, as mais suaves até as coisas mais violentas. Eu tenho um poema por exemplo que começa assim: “Estou triste. Não dessa tristeza envergonhada dos que ao invés de se matarem, fazem poemas. Estou triste porque vocês são burros e feios, e não morrem nunca”.
Ivete – Foi feito para os imortais da Academia de Letras ?
Quintana – Não, eu simpatizo muito com os imortais da Academia de Letras. Me lembro quando eu fui pedir o voto para eles. Quase todos moravam em ipanema. Eram tão amáveis, pareciam uns garotos.
Ivete – E aquele garoto que morava em Alegrete e ajudava a aviar receitas médicas. Aquele garoto gostava de música ?
Quintana – Sim, gostava de música. Não havia TV, só rádio. Eu fui para Alegrete porque fui reprovado. E pára não repetir o ano, o meu pai (Celso) me disse: - Já que você não ser se formar, eu pra vagabundo não te quero. Vem trabalhar aqui comigo na farmácia”.
Ivete – Tu fazias poesia nesta época ?
Quintana – Desde que eu me entendia por gente, eu começava a escrever umas coisas que achava a ser poesia. O primeiro poema é sempre o mais belo do mundo, porque a sua descoberta no mundo da poesia é o seu encontro com a poesia.
Ivete – e estes primeiros poemas, estão guardados, foram editados ou estão perdidos? Quintana – Não, estão perdidos, espalhados. Sabe como é.
Ivete – Quando é que tu deixaste o balcão da farmácia e viste para Porto Alegre ? Quintana – Depois que o meu pai faleceu em 1928. Comecei e trabalhar no Estado do Rio Grande do Sul, dirigido por Raul Pilla.
Ivete – Foi fácil o começo ?
Quintana – Como o que eu gostava de fazer era escrever, não foi difícil. Minha profissão é jornalista. Poeta é o estado, assim como o estado de graça ou estado de coma, conforme o poeta.
Ivete – Onde é que surgia a poesia ?
Quintana – Quando a gente escreve um poema, a gente fica dentro de uma redoma de silêncio, por mais barulho que haja entorno.
Ivete – E o sucesso com as mulheres ?
Quintana – Ora, era uma coisa natural. As minhas namoradas sempre foram formidáveis. A bem amada era um pretexto para a poesia.
Ivete – Quais foram as tuas musas ?
Quintana – eu não posso dizer, se não vai dar dor de cotovelo nas outras.
Ivete – No jornal, tu sempre pode escrever o que queria ou tinha que seguir ordem do patrão ?
Quintana – Não, eu não seguia ordem de patrão. Por exemplo, lá no Estado do Rio Grande, eu botava título nas coisas, mas o pessoal gostava de botar o número exato de letras na manchete. Eu achava aquilo bobagem e não seguia esta norma. Eu fazia a coisa ao inverso. Nos títulos em 3 colunas, eu botava 12 sílabas, no segundo título decassílabo, no terceiro título, um setissílabo. Uma vez, Uma vez eu fiz um título que parecia um poema. Fiquei contentíssimo. O meu chefe Raul Pilla chegou lá e perguntou: - Quem foi que escreveu este título ? Eu me levantei muito (...) anjo e disse: - Fui eu Dr.Pilla. E ele disse: - Seu Mario o seu título está em pleno desacordo com a orientação dos jornais, o senhor precisa ler os meus editoriais. Aí eu disse para ele: - Mas eu escrevo aqui uma seção onde faço o resumo dos jornais do Rio, para que fazer o resumo do seu. Mas o Pilla era o patrão, ele disse aquilo de uma maneira jocosa (engraçada), se não ele podia me botar na rua.
Ivete – Mario, tu costumas escrever ouvindo música ou no silêncio ?
Quintana – Em qualquer parte. Não pára nunca de escrever. Preparo o diário poético. Já estou fazendo o diário poético de 1991.
Ivete – Que frase tem no diário poético de 1990 para o primeiro de janeiro ? Quintana – “O dia da mais antiga esperança do mundo”.
Ivete – O que mais tu estás fazendo ? Alguma coisa para editar neste ano de 90 ? Quintana – Vai ser editado uma tradução. Eu acho que vai sair em 91. Tenho livros traduzidos em inglês, chinês, russo, italiano, francês e para vários países da América Latina.
Ivete – Tu achas que as traduções tem respeitado a tua poesia ?
Quintana – Uma tradução é uma coisa muito difícil, tem que ser uma tradução literária.
Ivete – E a tua poesia está bem traduzida, para o francês por exemplo ?
Quintana – Vou dizer que está (risos).
Ivete - Como é que um poeta sobrevive ?
Quintana – Olha, eu tenho conseguido ganhar dinheiro com os meus livros e com a minha aposentadoria.
Ivete – Eu vou roubar um poema teu pra te fazer uma pergunta. Será que o Brasil é uma verdade que esqueceu de acontecer ?
Quintana – O Brasil é uma verdade que acontece e continuará acontecendo e sempre que não for interrompido por uma revolução.
Ivete – Você teve um contato muito estreito com grandes poetas brasileiros, Bandeira, Vinícius, Drummond. Que poeta te parece mais representativo da poesia brasileira, incluindo a Cecília.
Quintana – Eu acho que a Cecília Meireles é a maior poeta brasileira da primeira metade do século, porque para nós, para disfarçar um pudor de sentimentalismo, a gente se refugia no humor, e ela nunca. Ela sempre foi poeta puro.
Ivete – E a poesia que se faz na música. Neste momento, por exemplo, há quem considere o Chico Buarque um grande poeta. Tu entendes assim também ?
Quintana – O Chico é um bom poeta.
Ivete – O que te encanta no ser humano?
Quintana – É o simples fato de ser humano.
Ivete – E o que te desencanta no ser humano ?
Quintana – Quando ele é desumano (risos).
Ivete – Tu achas que a vida ainda é poesia ou está faltando poesia na vida ? Quintana – A poesia sempre existiu. Não pode deixar de existir a poesia. Enquanto há esperança, há vida. E a gente nunca perde a esperança.
Ivete – Tu achas que neste momento aqui no Brasil estamos fazendo poesia ? Boa ou má poesia ?
Quintana – Acho que estão fazendo uma coisa que não tem nada a ver com poesia. Estão fazendo prosa mal escrita.
Ivete – Mario, estamos chegando ao final deste programa. Alguma coisa que tu queiras acrescentar ?
Quintana – Estou muito contente com os meus 83 anos. Viajei bastante e felizmente a minha saúde está ótima graças a Deus.
Ivete – Mario, pensei que tu fosses acrescentar que tu me amas.
Quintana – Há, mas isto é uma coisa que está na cara.
Ivete – Mario, quando começamos este programa, tu disseste que não gostava de recordar. Por que?
Quintana – Porque dá saudade de mim mesmo.
Ivete - Nós vamos encerrar Mario com uma das músicas que fizeram a tua cabeça. Tu falaste em Milton Nascimento. O que te encanta no Milton, a música ou a letra ? Quintana – A voz.
Ivete – O que tu esperas deste ano de 90 ?
Quintana – Que termine da melhor maneira possível.
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Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel...
Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo,
ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como uma pobre lanterna que incendiou!
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O Mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
(Apontamentos de História Sobrenatural)
Os poemas
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
(Esconderijos do Tempo)
Obsessão do mar oceano
Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças na janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.
(O Aprendiz de Feiticeiro)
Das utopias
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
(Espelho Mágico)
Dos milagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!
(Espelho Mágico)
Do amoroso esquecimento
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
(Espelho Mágico)
A oferenda
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.
Canção de barco e de olvido
(Para Augusto Meyer)
Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
Evolução
O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.
(Caderno H)
Eu escrevi um poema triste
Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
(A Cor do Invisível)
O auto-retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
(Apontamentos de História Sobrenatural)
A canção da vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
(Esconderijos do Tempo)
Os degraus
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
(Baú de Espantos)
Ah! Os relógios
Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...
(A Cor do Invisível)
A grande surpresa
Mas que susto não irão levar essas velhas carolas se Deus existe mesmo...
(Caderno H)
Da discrição
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...
(Espelho Mágico)
Os arroios
Os arroios são rios guris...
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d'água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo...
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios...
(Baú de Espantos)
O pior
O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.
(Caderno H)
Libertação
A morte é a libertação total:
A morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapato
Poeminha sentimental
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
(Preparativos de Viagem)
A vida
Mas se a vida é tão curta como dizes porque que é que me estás lendo até agora?
FONTE: IN http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/
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