Assim diz Fernanda Montenegro em entrevista à Folha Ilustrada, publicada em 19 de maio de 2009. Sincera, autêntica, de uma verdade quase desafiadora. E fico me perguntando, no meio da atual alienação, qual atriz poderá chegar a essa idade com esse porte? É uma geração, essa a de Fernanda, que infelizmente não deixará seguidores. Espero que algum aprendizado. Bela, Fernanda.
*LUCAS NEVES* da *Folha de S.Paulo*
"O ator é o demônio que dá passagem a outra entidade esquizofrênica dentro dele", costuma dizer Fernanda Montenegro, 79, aos jovens intérpretes que lhe perguntam como se constrói um personagem.
Quem a vê em cena, no monólogo "Viver sem Tempos Mortos", na pele da porta-voz do feminismo, Simone de Beauvoir (1908-1986), e depois conversa com ela "à paisana" sobre a peça que estreia em São Paulo nesta quinta entende perfeitamente a descrição. Sob o sol forte da tarde de outono, há em Fernanda um rastro palpável da filósofa francesa.
A ternura com que, no palco, Beauvoir recorda os primeiros encontros com o futuro companheiro Jean-Paul Sartre é análoga à de Fernanda ao falar, num sorriso saudoso, do começo do casamento com Fernando Torres, morto em 2008.
"Numa pensão na rua Rui Barbosa [em São Paulo], em 54, comendo bife estorricado com folha de alface e vinagre, a gente sonhava com uma companhia de teatro", lembra a atriz. As percepções da maturidade também são espelhadas. Em cena, Beauvoir se surpreende com a impressão de não ter envelhecido, embora se sinta "instalada na velhice". Com maquiagem sóbria, Fernanda observa que "seria mentiroso dizer que me sinto melhor do que quando tinha 20 anos", mas "os anos dão uma consciência que não tem preço".
Na entrevista a seguir, ela defende a atualidade do discurso de Beauvoir. Na política, acha que o Brasil está pronto para ter uma mulher na Presidência --sem endossar a candidatura de Dilma Rousseff. E afirma que se faz hoje no país apenas o "teatro possível", por conta das dificuldades de financiamento. Veja a íntegra.
*Folha - Oito anos separam sua última peça, "Alta Sociedade" (2001), de "Viver sem Tempos Mortos". A que se deve esse longo hiato?*
Fernanda Montenegro -* Há dez anos, "Central do Brasil" estourou. Não tinha como ficar pensando em projeto. Depois, seguiram-se quatro filmes. Mas nunca deixei de vê-los como trabalhos teatrais, com origem no que vivi em cena. E também passei a gostar de cinema. Mas ainda não sei fazer.
*Folha - Como o projeto de montar, com o ator Sergio Britto, uma peça sobre Anton Tchecov (1860-1904) se transformou em um monólogo sobre Simone de Beauvoir?*
*Fernanda -* Fomos pelos caminhos mais malucos. Queríamos primeiro fazer um texto sobre as cartas do Tchecov para a [atriz] Olga Knipper [mulher do autor]. Soubemos que havia dois textos, ambos na mão de alguém. Aí o Sergio se lembrou do Sartre e da Simone, porque tinha saído o livro "Tête-à-Tête" [biografia do casal]. E são duas personalidades ligadas à nossa memória mais jovem. Comecei a organizar esse material, e o tempo correu: Sergio estreou com sucesso "A Última Gravação de Krapp/Ato sem Palavras 1", de Beckett. De repente, nos separamos. Fiquei com a Simone, ele com o Beckett.
*Folha - Em que momento entrou o diretor Felipe Hirsch?*
*Fernanda -* Tenho um papo com ele de dez anos para fazermos algo juntos.Já passamos pela Hannah Arendt, pela Clarice Lispector. Achei que era o momento de chamá-lo para me conduzir. Trouxe sua gloriosa equipe [Daniela Thomas na cenografia e Beto Bruel na iluminação]. O problema maior era se ele via possibilidade naquele texto, porque era uma compilação de uma
compilação, sem nenhuma ambição de esgotar o assunto ou academizar o processo. Era um pequeno trabalho de uma loja da esquina. Quando ele disse que o texto daria não um espetáculo, mas uma encenação sensibilizada --que era por onde eu tinha ido quando "compilei a compilação"--, vi que estávamos harmonizados. Aí veio o processo de achar a encenação. Pusemos mesas, máquinas, cigarro, uísque, remédio... Esperei a intuição do Felipe. E ele
foi dizendo: "Olha, acho que isso está sobrando...". Um dia, ele chegou: Vou radicalizar, vou tirar tudo". [A montagem] É mais uma voz, um roçar, um arranhar a vida intensa e inesgotável que foi a dessa mulher.
*Folha - Muito se fala hoje em pós-feminismo, em conquistas femininas consolidadas, espaços sociais e profissionais ganhos. O discurso de Beauvoir sobre a igualdade entre os sexos não parece anacrônico?*
*Fernanda -* Acho que não, porque o discurso da liberdade e do autoconhecimento nunca será algo fora de cogitação. Esse conceito de liberdade, que é complexo --até onde você se aprisiona na sua consciência ou na sua neurose?--, traz um mistério que uma teoria radicalizada muitas vezes não quer ver.
*Folha - Em Beauvoir, por trás do discurso emancipacionista e da defesa do
amor livre, parece haver traços de romantismo. Digo isso porque, em "Viver
sem Tempos Mortos", a personagem comenta a relação com Jean-Paul Sartre
desta maneira: "Nossa vida não tinha sentido para além do nosso amor".*
*Fernanda -* Mas será que é romântico? Ela diz uma coisa que eles cumpriram: o amor estava acima das vidas, e nada modificaria isso, nem uma possível separação, nem futuras paixões, nem a guerra. Portanto, não acho que seja uma visão romântica. A não ser que, toda vez que se fale de amor, a gente vá lá e o derrube com esse rótulo. Ela estava falando de um amor acima de
futura separação, de futuras paixões e mesmo de uma guerra. E isso eles cumpriram, mesmo sem mais nenhum interesse sexual. Acima da relação sexual. Só se for uma visão romântica à la Schiller, Goethe, lá nos primórdios da conceituaçao do romantismo.
*Folha - Beauvoir defende que a mulher seja entendida segundo parâmetros próprios, e não masculinos. Num país como o Brasil, em que ainda resiste o machismo, é possível pensar em uma mulher presidente?*
*Fernanda -* Ah, completamente. Não que eu esteja endossando ou não a [candidatura da ministra da Casa Civil] Dilma [Rousseff]. É interessante não quando a mulher vem para o poder no velho esquema, de substituir o homem no seu temperamento de agir. A gente está esperando que as mulheres que chegarem ao poder tenham pelo menos o sentimento do feminino à frente de
qualquer outra coisa, e não que sejam imitações acentuadas, mais contundentes do homem.
*Folha - E qual seria essa marca do feminino no poder?*
*Fernanda -* É um sentimento. Tem algo na mulher que é o seu olhar para as entranhas. O homem é um pau levantado para o horizonte. A mulher, não. Ela é incubada, obrigada a entrar em contato com o interior do seu sexo todo mês, tem esse ventre. Isso não quer dizer que vá ser mole, que a delicadeza não possa ser absolutamente poderosa.
*Folha - O compêndio sobre Beauvoir e Sartre feito pela sra. recebeu algum verniz dramatúrgico antes de ir à cena?*
*Fernanda -* Não. Tenho uma longa experiência de lidar com textos de alta dramaturgia. Fiz por dez anos um teleteatro em que todos do grupo cortavam, dinamizavam os roteiros. No rádio, redigi um programa literário, adaptando contos, romances, crônicas. Mas, talvez por uma fidelidade ao palco, nunca quis me dispersar em algo que não fosse a interpretação mesma. O único momento em que saio disso é nas oficinas de leitura dramática [que conduz em várias partes do país]. Penso em um dia talvez dirigir alguma coisa com qualidade literária. Mas não tenho ambições de montagem, por exemplo. Sempre acho que, em teatro, menos é mais. O excesso, o ruído cenográfico só perturba.
*Folha - A sra. acompanha o trabalho de novos autores?*
*Fernanda -* Na medida do possível, porque o Brasil todo produz teatro, o país todo tem grupos, alguns de excelente qualidade, como o Galpão (MG), o Piollin (PB), o Ponto de Partida (MG). Sei da voltagem teatral que o Brasil tem, sem nenhuma demagogia. É interessante que já houve época em que [os grupos] tentavam vir mais para o eixo Rio-São Paulo. Hoje, querem ficar nas
suas cidades e de lá se projetarem por meio dos festivais.
*Folha - O que mudou no ofício de ator desde que a sra. começou no radioteatro (em meados dos anos 40)?*
*Fernanda -* Sou do tempo do ensaiador português, cujo primeiro conselho é: o ator tem de começar aprendendo a ouvir o ponto [o auxiliar de cena que,escondido do público, lembra aos atores suas falas]. A fase áurea foi a chegada à América do Sul de encenadores europeus que tinham boa formação acadêmica, como Zbigniew Ziembinski, Eugenio Kusnet, Gianni Ratto e Maurice Vaneau. Eles nos transmitiam uma logística de como se aproximar de um texto
dramático. Todos tiveram assistentes brasileiros, como o Antunes Filho. Formaram uma frente de encenadores com capacidade de ir a uma outra geração além deles. Nos ensinaram a ler textos do ponto de vista social, existencial. Somos essa geração que tem por volta de 80 anos. Os encenadores que foram assistentes estão passando adiante o que eles trouxeram. É claro
que, a partir de uma hora, com a contracultura e o domínio de uma segunda geração, aquela disciplina de corpo de balé, de companhias ensaiando 12 horas por dia, repetindo até morrer foi perdendo força. Havia grupos falando de si mesmos, uma criatividade mais comunal, um jogo menos acadêmico. E aí começou a haver uma mescla de experiências. Hoje, por causa do processo econômico do teatro, temos o teatro que se pode fazer. Alguns grupos corajosamente são grandes, mas vão buscar seus recursos de sobrevivência em outros trabalhos, pois ali é apenas o prazer do jogo teatral. Para se concretizar o processo de presença artística, vamos para os monólogos. Não se faz isso porque a gente queira estar sozinho em cena. Faz-se isso porque esse é o teatro possível.
*Folha - Os atores Rodrigo Santoro e Alice Braga estão em ascensão em Hollywood, cenário em que a sra. transitou na esteira do sucesso de "Central do Brasil". Que caminho eles devem buscar ali?*
*Fernanda -* São dois atores com muito bom senso. Somos sul-americanos contaminados pela visão mexicana que o americano tem de toda a América Latina. Lá fora, não saímos disso. É importante ter essa consciência. Inventaram a raça latina: agora tem branco, amarelo, negro e latino. É isso que nos cabe ali. O que puderem aproveitar desse espaço, ótimo. São jovens
talentosos já com excelentes resultados em seus papeis, maiores ou menores. Mas há um destino cravado, que é a latinidade. Não adianta se iludir.
*Folha - A sra. recebeu vários convites para papéis desse tipo, não foi?*
*Fernanda -* Sim. Salvadorenhas, chilenas, madrilenas, até uma iraniana. Onde é que isso vai me levar? Não tenho mais 20 anos para ter ilusão hollywoodiana. E Hollywood já não é o espaço mítico que foi nos anos 30 e 40.
*Folha - Com que diretores estrangeiros gostaria de trabalhar?*
*Fernanda -* Nos EUA, queria ter trabalhado com o [Robert] Altman e o [Stanley] Kubrick. Na Europa, com [Ingmar] Bergman, um monstro que mexia com os atores de forma absoluta, os levava a instantes de dimensão interpretativa inalcançável. Sobrou só Pedro Almodóvar, um criador imenso.
*Folha - E brasileiros?*
*Fernanda -* Beto Brant. Os filmes dele têm nervo, inteligência, clareza.
*Folha - No cinema brasileiro, o ano tem sido marcado pelas ótimas bilheterias de comédias rasgadas, como "Se eu Fosse Você 2" e "Divã". Como vê o sucesso desse gênero?*
*Fernanda -* Acho fundamental. Precisamos ter uma diversificação de programação no nosso cinema. Eles [os filmes] podem ser crucificados por uma crítica mais purista, mas qualquer cinema do mundo se fez mesclando gêneros, propostas, genialidades e banalidades. É a história do cinema americano, francês, italiano. Não há uma indústria cinematográfica feita só de
criadores exponenciais
*Folha - A sra. disse certa vez que o salário da televisão lhe havia permitido voos cegos no teatro. Foi possível em algum momento fazer esses voos cegos na própria TV?*
*Fernanda -* Arriscamos na novela "Guerra dos Sexos" (1983). Achavam que aquele humor daria só para um mês, que era preciso haver uma história melodramática, séria para servir de porto seguro quando a graça afundasse. E foi o que não funcionou durante seis meses, ou funcionou só como espaço de passagem: "Vamos dar uma passadinha ali e vamos já cair na farsa". E com o
Luiz Fernando Carvalho [com quem trabalhou em "Renascer" e "Hoje É Dia de Maria"], é sempre um salutar voo cego, altamente produtivo e comovente.
*Folha - O que pensa das telenovelas de hoje? Há quem veja um esgotamento do
gênero.*
*Fernanda -* Acompanho, na medida do possível, "Caminho das Índias". É tão kitsch que vejo. É um pulo no abismo, sem rede. Vejo que os atores começaram estranhando as roupas, os cenários. Mas, meses depois, já não têm mais problema, aceitaram um tipo de jogo. Estão plenos. Vejo o trabalho do Tony Ramos, por exemplo, que, como um danado de um ator que é, está pleno. E os moços estão lá, dando conta e aprendendo o seu ofício. Nas outras novelas,
às vezes, eu acho que tem um pouco de clipe demais. Mas vejo que uma pessoa como o João Emanuel Carneiro [roteirista de "A Favorita"] tem tutano, coragem.
*Folha - Por que, nos últimos 20 anos, os produtores culturais brasileiros passaram a depender tanto de patrocínios e leis de renúncia fiscal?*
*Fernanda -* No início, era possível ir ao banco, contrair uma dívida --fosse um espetáculo contestador ou de consumo--, e a bilheteria era nosso aval. Assim se viveu por 30 anos. Veio a mudança da capital, uma grande inflação, a impossibilidade de se manter elencos fixos por ano. Houve renúncias. É impressionante como não se estuda isso no Brasil: o que todo esse movimento que vem desde a morte de Getúlio até agora --esse mundo político inseguro, com jogadas de sobrevivência ideológica, censura e perseguições-- custou para a cultura brasileira, principalmente as artes cênicas. Porque você pode tocar sua clarineta que está tudo bem, pode dar 10 mil passos de balé que tudo bem. Agora vá para a cena e fale um texto que o
militar lá acha que é contra o regime. Falou o que não tinha de ser falado, está cassado. Diante de um Brasil que se industrializou, essas companhias com agrupamentos à la século 19, de 20, 30 pessoas em torno de um espetáculo foram sobrevivendo amadoristicamente. Ou então se fazia o teatro de produções certas, por um período curto, que é o modelo que vigora até hoje. Isso foi industrializando o produto teatral. Isso e a censura nos levou para o atendimento cultural governamental.A primeira Lei Sarney [de 1986, que implantava o sistema de renúncia fiscal no patrocínio à cultura] precisava de apenas algumas tarrachas. Mas aí resolveram acabar com a lei e fizeram uma outra, a Rouanet [1991]. E essa era tão fiscalizante que não funcionava. E veio o Collor, que acabou com todo o processo cultural do país. Tudo cada vez mais indo para o colo do
governo. Hoje, estamos, talvez envergonhadamente, estatizados. Alegam que os que têm
nome vão e recebem os patrocínios. A maior parte das empresas que você visita diz que não têm lucro. Não se sabe direito os critérios das comissões que selecionam projetos. Acho justíssimo que se faça prestação de contas de uma agulha, uma caixa de fósforos. Só gostaria que todos os ministérios tivessem o grau de exigência que o Ministério da Cultura tem com o ato cultural brasileiro, quando este passa por uma lei do governo. Que todos tivessem o mesmo pente fino, a mesma acuidade com o dinheiro público que o MinC exige de quem leva dinheiro público.
*Folha - Não é verdade que os nomes consagrados recebem mais patrocínios?*
*Fernanda -* Não necessariamente. Porque as verbas são entregues ao diretor do setor de marketing. Tanto o consagrado quanto o alternativo recebem um "não". Para dividir e poder reinar, criou-se a expectativa de que o consagrado chega e abre todas as portas. Isso não é verdade. Falo por experiência própria.
*Folha - Os artistas consagrados levam tantos "nãos" quanto os grupos de
pesquisa?*
*Fernanda -* O diretor do grupo experimental não vai ser alugado como o nome dito consagrado, que tem de dar autógrafo para todo o sistema de atendimento daquele andar [da gerência de marketing da empresa], para o presidente da organização, para a mãe, a mulher.
*Folha - E como vê o debate atual sobre a reforma da Lei Rouanet?*
*Fernanda -* É uma reforma que não precisa existir. A lei tem de ter um apuro, ajuste. O Fundo Nacional de Cultura é fundamental, assim como é deixar uma brecha para quem queira atender por fora dele [por renúncia fiscal]. Por que confinar todos num só guichê? É preciso ter mais portas, porque, se todos vão ao fundo, aí é estatizar, por mais que se queira defender o não-dirigismo. Aí toda a cultura brasileira será entregue a uma comissão. Quem são essas pessoas? Que cabeça elas terão no tempo? Você está confinado a uma chancela que pode ter apenas uma visão ideológica, apenas uma visão estética, apenas uma visão existencial. É poder demais.O que se pode fazer para evitar abusos é botar lá um parágrafo dizendo que não pode trazer estrangeiros patrocinados por leis de incentivo à cultura. São esses apuros que já deveriam ter sido feitos desde a Lei Sarney.
*Folha - Os epítetos que lhe foram dados pela mídia, como grande dama do teatro brasileiro, alguma vez interferiram na sua decisão de fazer algum projeto? Já hesitou diante de um convite por medo de comprometer sua reputação, imagem?*
*Fernanda -* Em primeiro lugar, não fui eu que criei isso. Não tenho nada a ver com isso. Nasceu de fora para dentro. Não tenho nada com essa fantasia. Tenho uma vida de trabalho, ofício. O que possa ter da chamada "boa imagem" [aspas da atriz] não é para ser uma imagem, é resultado de uma consciência. Não sei por que só fazem isso com as atrizes. Há um certo debique quando
falam em "grande dama". Isso pode corresponder a uma saudação até honesta, mas também a um certo humor, sarcasmo. Não tenho uma imagem que criei para me defender de algo que eu não sou. Ninguém me faz propostas que me agridam, que seja obrigada a recusar para guardar uma imagem.
*Folha - No fim de "Viver sem Tempos Mortos", a personagem de Simone de Beauvoir diz: "Meu passado é a referência que me projeta e que devo ultrapassar". Com que projetos a sra. pretende ultrapassar o que fez até aqui?*
*Fernanda -* Olha, se disser a você que não tenho projeto nenhum... É que já vivi mais do que possa viver. Quando você tem muito a viver, naturalmente tem projetos. Mas chega uma hora em que o meu projeto primeiro é estar inteira. Para o futuro, tenho uma novela do Silvio de Abreu, um convite do Teatro do Porto (Portugal) para atuar em "A Amante Inglesa", de Marguerite Duras. E o sonho de 50 anos de fazer alguma coisa da Clarice Lispector. Mas sempre tem tantas Clarices sendo feitas que deixo para daqui a pouco. Mas não tenho mais tempo de experimentar o que experimentei, de passar por mais 50 personagens. Então não é uma visão festiva.
*Folha - Isso lhe traz angústia?*
*Fernanda -* Seria idiota se dissesse que não. Seria mentiroso dizer que me sinto melhor do que quando tinha 20 anos. Isso não existe. Os anos dão uma consciência que não tem preço, ou que tem o preço da sua juventude. Mas não sei se trocaria a minha vivência de 80 anos pelo tempo não vivido quando a gente tem 20. Nessa idade, a gente nem se vê vivendo.
Imagem: Sergio Britto e Fernanda Montenegrro em A Volta ao Lar, 1967.
Nenhum comentário:
Postar um comentário