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CLARICE LISPECTOR - CARTAS

Lausanne, 13 de julho de 1946
Elisa, Tania,
escrevo de Lausanne, sentada no parapeito do lago Leman. Perto tem uma orquestra com uma mulher tocando violino, uma marcha meio valsa, meio militar. Junto tem um hotelzinho estreito chamado Hotel du Port. Há montanhas a pique na outra margem do lago. Há uma fontezinha dividida em três ramos sobre uma bacia de pedra. Há uma criança comendo um biscoito. Uma mulher de chapéu branco num barco. Vocês quase que podem adivinhar que é sábado de tarde. O lago é de água doce e tem um cheiro gostoso de água. O lago é enorme e transparente. Junto de mim é esverdeado. Mas do meio para o fim está da cor do céu e a montanha mesmo está da cor do céu. Hoje à noite vai ter uma festa noturna no lago, sobre um barco. No banco está sentada uma mulher com o chapéu preto e fita branca enterrado até os olhos como em 1920 e tanto, lendo jornal. Isso que eu estou sentindo pode-se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor. Compreendo que ontem em Berna, quando recebi carta de vocês, ficasse tão aflita. Talvez fosse de alegria - e de não poder dar esta mesma alegria naquele mesmo instante. Um momento muito forte como o de ontem sempre arrasta tudo para ele: arrastou todos os meus pecados que Deus não precisa castigar porque neles mesmos vem o castigo. Pecado de egoísmo, de indecisão, pecado de deixar morrer gente de fome e comer, pecado de não entender o mundo, pecado de amar demais, pecado de não saber amar. Vi um filme idiota onde o rapaz dizia: eu gosto de você. E a moça dizia: eu sei, mas não gosto do jeito pelo qual você ama as pessoas. Eu sei, é preciso dar muito mais do que eu dou. É também de minha natureza carregar aos ombros a culpa do mundo. Se todos sentissem isso talvez saísse um novo mundo. Uma pessoa só pode apenas sucumbir. Foi isso que fiz chorando no cinema e aliviando uma mágoa confusa. O início disso tudo foi a carta de vocês que eu botei junto do coração para sentir o calor dela e dormi assim, e mesmo agora, sentada junto do lado, tenho a carta na mesma posição, com o envelope me arranhando um pouco. Não incomoda, é como um aperto de mão um pouco mais forte. Agora tem um passarinho se aproximando da fonte. E dois meninos passaram, me olharam e continuaram a falar em francês. Fomos há pouco ver uma exposição de pinturas holandesas, de Van Gogh para cá. Eu estava vendo pacificamente com a cabeça. De repente, vi um pequeno quadro Vers le Soir , de um pintor chamado Karsen. Entendi muito bem o que você disse, Tania, sobre a paisagem que se misturou com você. Esse quadrinho finalmente me dominou. É uma casa no cair da noite. Não posso descrever. Tem umas escadas, umas heras, o branco é azulado e tudo um pouco escuro; tem umas estacas - é um fim de caminho com mato. Gosto de muitas coisas; mas de repente uma coisa é o que a gente está vendo e acima dela não existe mais nada, pelo menos por um instante; não sei se estou explicando bem.
Toda esta carta foi uma tentativa malograda de tirar um retrato deste lugar junto ao lago Leman, porque esqueci de trazer a máquina. E aproveitei a ausência da máquina para tirar o retrato deste momento também. Que Deus abençoe vocês e lhes dê uma alma luminosa. A paz esteja com vocês, minhas queridas.
Clarice.





CLARICE LISPECTOR


Berna, 5 de maio de 1946 – 4 horas e domingo
Minhas queridas:
É uma pena eu não ter paciência de gostar de uma vida tão tranqüila como a de Berna. É uma fazenda. No Domingo, como hoje, passou um grupo do Exército da Salvação, homens e mulheres cantando em coro, com voz bem calma e afinada, sem vergonha. Às vezes se vêem camponesas de alguma cidadezinha perto , vestidas com os trajes regionais, o rosto vermelho, honesto, com olhos azuis – os olhos são tão honestos que nem parecem observar. E os camponeses com roupa de ombros estreitos, nariz corado. E o silencio que faz em Berna – parece que todas as casas estão vazias, sem contar que as ruas são calmas. Dá vontade de ser uma vaca leiteira e comer durante uma tarde inteira até vira noite um fiapo de capim. O fato é que não se é a tal vaca, e fica-se olhando para longe como se pudesse vir o navio que salva os náufragos. Será que a gente não tem mais força de suportar a paz?
(Clarice Lispector, carta para suas irmãs)

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